Terra dos justos

 Coletivo sacudindo nas vias urbanas, por volta de 7:30  da manhã de uma quarta-feira e Alzira  já estava a bordo, carregando no colo um vaso de plástico preto, cheio de cravos coloridos. Ela é morena, aí pelos seus sessenta e poucos, baixa e circunspecta. Seus óculos de lentes grossas escondem olhos tímidos e um olhar perdido nas paisagens lúcidas de abril que passam pelo vidro lateral do ônibus. Quando não olha para fora, mira apenas seu vaso de flores, alimentando-as com suas expectativas. Não é dia santo nem finados, não é feriado, não é nada, não é nada... Mas hoje completa o primeiro ano da passagem do Reginaldo. 

Segue o ônibus pela via, sempre com aquela delicadeza habitual dos motoristas modernos. A cada novo ponto, pára bruscamente, acelera até o máximo de primeira e segunda marchas, então subitamente pára de novo, metendo o pé no breque e sacudindo os passageiros impacientes que reviram o estômago antes das 8 da manhã. Uma buzinada daqui, uma reclamação de um outro motorista de lá, os passageiros com cara de poucos amigos. O ônibus lotado ainda tão cedo, estudantes, empregados uniformizados, vendedores ambulantes e caronistas eventuais sacudindo-se no caixote sobre rodas pela via central mal pavimentada de Cruz das Almas, 20 km em direção à cidade mais próxima, Docilândia , que oferecia as melhores escolas e empregos.

Reginaldo fora o grande amor de Alzira, na juventude. Como tudo que acontece de importante na vida não tem regra, manual de instruções nem de "como proceder em caso de emergência", eles não se casaram, é claro. Reginaldo era muito boêmio, músico violeiro sem rendimento fixo, e Alzira acabou desposando mesmo foi o auxiliar de mecânico Joaquim Fernandes, o "Quim da oficina", de onde vieram Anielson, Mário, Terêncio e Joaquim Fernandes Júnior, o " Moleque Quinzinho". Estiveram juntos por mais de trinta anos anos e criaram os filhos meio bicho, meio gente, enrolados na leis do mundo. Nenhum deles conseguiu terminar a escola, por conta das dificuldades financeiras enfrentadas pela família, e todos iniciaram a vida de trabalho ainda muito cedo. Anielson ajudava o pai na oficina e gostava de briga de galo. Mário morreu ainda jovem, caindo de um caminhão a caminho da pedreira. Terêncio cumpria pena na penitenciária estadual por assassinato  e Joaquim Fernandes Júnior, "Quinzinho" perdera-se no mundo, sem mandar notícias. Quim até que era homem trabalhador, mas após consumado o casamento, mostrou-se em sua verdadeira magnitude a Alzira: entupia-se de cachaça no bar do Celsão nos feriados e nos domingos de tarde depois do jogo. Testemunhas mudas do pós-jogo quando o time do coração perdia, as marcas roxas frequentes nas costas de Alzira e uns tabefes abafados entre travesseiros não era nada que ela não pudesse aguentar, ou nada que não tivessem aguentado sua mãe e duas de suas irmãs, também conhecedoras dos efeitos colaterais do excesso de aguardente. A vida era sempre vida. Alzira tinha medo de Quim, que ameaçou matá-la se pedisse a separação. Além disso, ela se sentia em cumprimento de um dever e precisava cuidar dos filhos até que fossem maiores.

Notícias de Reginaldo. Ele se mudara de Cruz das Almas para Fervedouro, assim que terminou tudo com Alzira, e casara-se depois de um tempo com Adélia, num casamento de muitos filhos, cada um de um jeito e com sua graça própria: um ruivinho, sorridente. Outro moreninho, sisudo, outra saiu mais alta com olhos claros, todos saudáveis e felizes mas nenhum com a sua cara. Descoberta finalmente a falta de coincidência na dessemelhança da sua desconhecida linhagem, Reginaldo partiu para o mundo novamente. Daí, depois de um bom período rodando de boteco em boteco atrás da melhor cachaça e da melhor roda de viola, estancara o coração despedaçado no colo de Lindalva, constituindo logo logo uma nova família. Finalmente os filhotes pareciam mini-Reginaldos, saindo um por um, ano após ano, como produção em série até inteirar cinco, e o violeiro agora tornado pedreiro se espedaçava para garantir sete pratos com comida no almoço e no jantar. Tudo durou mais ou menos até Lindalva se encantar com o moço encanador, que a levou na calada da noite com mala, perfumes e sapatos numa Kombi azul, para a Vila de Ibitipoca, a mil léguas dali. 

Corações partidos de um lado pela espada afiada do amor, feridas cicatrizadas de outro pela cola indelével do amor. Retornando à sua cidade natal depois de tanto tempo, Reginaldo reencontrou Alzira e lhe fez nova proposta. Depois dela tomar coragem e mandar o Quim pros quintos dos infernos, com direito a barraco, polícia e oficial na porta de casa, amigou-se finalmente com Reginaldo no barracão dezessete do morro da Alegria, onde nasceu Felício há quinze anos atrás. Felício era diferente e em nada lembrava seus meio-irmãos. Estudioso, bom caráter, gostava de jogar bola e tinha muitos amigos.


Finalmente chega o ônibus ao ponto final do Cemitério do "Cantinho da paz", e salta Alzira com suas flores coloridas. Porta aberta, trilha batida até o túmulo de Reginaldo, completando um ano agora de seu novo lar. Ainda se lembrava da lápide simples que mandara talhar, economizada nos escritos sobre mármore bruto porque o granito era muito caro, dizendo: "Ao Reginaldo, amor da minha vida e pai zeloso e cuidador". Era simples chegar lá. Duas fileiras à esquerda, dentro do cemitério, e mais cinco à direita, e pronto. Lá estava, embaixo da grande estátua do Anjo Gabriel, numa grande lápide vertical, em letras bordadas a mão, em granito Silestone luxo preto : " Aqui jaz DOUTOR RIVALDO AMÉRICO DIAS BENFICA DE MANGABEIRA JUSTO (1927-2005): família, esposa, netos e bisnetos registram saudades, etc, com frase de Shakespeare logo abaixo, em versos : "Os covardes morrem várias vezes antes da sua morte, mas o homem corajoso experimenta a morte apenas uma vez". Alzira, é claro, não conhecia Shakespeare nem entendeu nada. No susto, deixou cair o vaso de flores no chão, e tentou refazer o caminho por onde viera. "Duas à esquerda, cinco à direita, perto do pé de jamelão. Mas era aqui mesmo! Ano passado foi aqui que enterramos Reginaldo". Desola-se.... Corre sem flores nem velas ao coveiro e zelador: "Moço! Teve arguma mudança aqui no lugar? Não tô achando o túmulo do meu marido..." O zelador, entre desconfiado e relutante: "Tô sabêno não sinhora...". "Mas com quem que eu vejo isso?". "Dona, só com dotô Ribera, lá na Câmara Municipal". "O vereadô Ribera?" "Sim sinhora! Ele que andô fazeno umas mexida aqui uns tempo atrás. Tudo agora é com ele... Dizque agora o cimitério ficô pras otoridades principais e que agora que nem num é mais pra interrá aqui todo mundo. Que agora é pros parente isperá que tem um cimitério novim que tá pra abri, lá nos Geralzão de Fora. " "Ué, mas lá nos Geralzão não é tudo curral de boi?" "Ué, até que é, mas inté parece que dispois vão fazê um cimitério lá, um ôtro dia desses...". "Mas e os morto que tava aqui inhantes, êis foi pra onde, criatura de Deus? Só tô veno catatumbas chiques, e o resto, pra donde que foi?". "Ué, dona, eu nem num pudia falá com a sinhora esses negócio aí, mais os nôvo difunto estão seno interrado adi por cima dos véi mêmo!... Arguns eu tive que fazê eu mermo, por órdi do dotô Ribera,  e ôzôto foi o Marcelão da pexaria que ajudou!

Esquecendo da pressão alta, das varizes marcadas nas pernas e do coração cansado, despenca Alzira de volta ao centro de Cruz das Almas, a pé mesmo, porque o coletivo só passava novamente por volta de meio-dia, e ela definitivamente não estava com paciência para aguardar por três horas para resolver seu problema. Chegando no centro, foi logo para a Câmara Municipal, ao lado da farmácia Dois Irmãos, e foi informada pela secretária de que a próxima sessão seria apenas na próxima terça à noite, daqui a uma semana. "Mas não tem como eu falar com o vereador? Tenho que saber o que aconteceu com o túmulo do meu marido...". "Sinto muito, senhora. Só na terça à noite". 
Chegada a terça, toca Alzira para a Câmara Municipal. Lá chegando, com uma hora de antecedência, foi colocada numa poltrona com mais outras vinte , aguardando pra falar com Doutor Ribera e alguns de seus outros ocupados colegas. Nas intermináveis e importantes duas horas que durou a sessão, Alzira acompanhava pela divisória de vidro os acalorados e essenciais debates que se conduziam no recinto. Importantes nomes de ruas da cidade eram escolhidos, não sem antes ser dada a chance à palavra a pelo menos meia dúzia de parlamentares, alguns a favor , outros contra, e uns outros mais aduzindo seus próprios nomes preferidos para as ruas. Passada a fase da escolha de nomes de ruas, cujo desfecho foi deixado para a sessão seguinte por falta de convergência e falta de quorum, passou-se quase que imediatamente, após um cafezinho, para outra pauta ainda mais importante: o registro de cidadãos honorários que estava atrasado, uma vez que aproximava-se a festa anual da cidade, e não era prudente chegar a tal magnífica data sem antes haver sido designado os imponentes nomes que seriam homenageados na abertura do evento. 

Após novo debate sem consenso, novamente adiado para a pauta seguinte por falta de quorum e em virtude do adiantado da hora, havia a menção de se iniciar novo assunto de interesse geral do município, agora acerca da decisão sobre o local adequado para a instalação futura de uma fábrica de fertilizantes que manifestara seu interesse em migrar para a região. Foram apresentados vários locais propícios, alguns em baixada, outros em planaltos, e desta vez parece não ter havido maiores problemas para a votação que seguiu bem rápida e sem apartes, porque uma vez que todos os terrenos sondados eram mesmo da família do atual prefeito, parecia bastante lógico que não houvesse contraditórios consideráveis. Aprovou-se com rapidez o local mais benéfico, com empolgados elogios e fraternas congratulações entre os parlamentares presentes, ao final da sessão.
Como já não havia mais tempo depois da última pauta, os cidadãos que aguardavam para ser atendidos na sala de espera foram reagendados para a semana seguinte, e assim sucessivamente. Alzira frequentou assiduamente a Câmara Municipal por mais dois meses sem que conseguisse falar com ninguém mais além da secretária que agendava as pautas. Pelo que ia vendo dos demais pretendentes  sentados a seu lado, era problema de tudo que é jeito. Era problema de saúde, de falta de escola, ou falta de ônibus para levar as crianças à escola, problemas de saúde, uma vez que no município não tinha nem hospital nem pronto socorro, era problema de energia elétrica, falta d'água, era problema de calçamento de rua que só existia no papel, era problema de filho desempregado, etc. A cada semana, surgiam sempre mais dez ou vinte pessoas procurando ser atendidas, da mesma forma que ela,e a fila a cada vez crescia mais.
Alzira não se importava com a espera nem as dificuldades e cada terça-feira estava lá, na sessão. Depois de seis meses, foi informada que um dos vereadores, condoído pelo seu caso, abriria um pedido de investigação, e para isso, proporia ao parlamento municipal a criação de uma comissão mista, que por sua vez designaria uma subcomissão para cuidar do processo e análise do pedido, mas apenas após a inclusão da previsão orçamentária e a publicação do ato no diário oficial e é claro, da confirmação das diárias especiais para os membros componentes. Alzira então assinou com o polegar um requerimento de cinco linhas, em 04 vias, depois encaminhado ao chefe  de sessão, que despacharia para a mesa analisar a pertinência da inclusão em  pauta, e uma vez que a mesa julgou a não urgência do pedido de D. Alzira, decidiu depois de três meses devolver o pedido ao setor de protocolo  que encaminhou de volta à Secretaria, com pedido de providências, informando que embora a comissão tivesse sido formada, com membros e diárias aprovadas e pagas, D. Alzira deveria trazer num abaixo assinado pelo menos o nome de mais cinco mil pessoas, todas moradoras da cidade, que contava mais ou menos com sete mil ao todo, se somadas as crianças.
Orientada pelo seu Giuseppe Italiano, do "Bar do Canecão", a procurar o Ministério Público que ia "finalizar questa porca miséria", Dona Alzira foi informada pela assistente secretária da câmara, que era prima-irmã da cunhada do Vereador Ribêra que seu processo misteriosamente havia desaparecido ontem mesmo dos arquivos da Câmara Municipal, mas que isso não ficaria assim, porque o próprio presidente da Câmara garantira que novo processo seria aberto imediatamente, assim que retornassem os parlamentares do recesso do fim de ano, para apurar as responsabilidades, e para isso estava mais do que certa a criação de uma nova comissão mista, que por sua vez indicaria uma subcomissão para instaurar o inquérito administrativo pertinente. A par dessa notícia, Alzira recebeu outra, de que tramitava simultaneamente contra ela, na justiça comum, um processo por difamação e calúnia, de número 0000000776-8886-88871/99991-2914, movido pelos vereadores que se sentiram injuriados quando souberam que ela estava questionando seu questionamento da inquestionável atuação da douta Promotoria Estadual. Alzira agora seria intimada para comparecer em juízo para se defender e se explicar sobre as suas atitudes de cidadania deslavada.
O tempo passara sem solução do problema, e Alzira aguardava, enquanto isso, os rumos do processo movido contra si pela Câmara Municipal, do qual não sabia direito quem era o autor, o motivo nem exatamente a quem se deveria repotar na hipótese remota de elaborar uma defesa. Enquanto isso, passou-se outro ano e chegou novamente a semana de homenagear o segundo ano da passagem do Reginaldo. Alzira acorda resoluta, olha para seu filho e manda: "Filício, meu fio, agora ocê pega da marreta, da pá e do cinzel e vem com sua mãe, que hoje nóis vão disincavá uns difunto...." 




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editado em 12-07-15