O homem que queria ser letra
(reeditado em 19-08-15)
De tudo que eu um dia quis ser na vida, de tudo quanto é vocação, tendência, destino ou moda, ser gente é o que mais me entedia. Por isso, enjoado de ser gente, enjoado da humanidade e de suas possibilidades mesquinhas, um dia decidi ser letra. Mas não queria ser letra comum, igual, repetida ou banal. Pra eu me tornar letra tinha que ser assim, Letra mesmo, com inicial maiúscula, espírito e forma, letra comprida, continuada, com sentido, abstração e uma imprevisível conexão do tipo que não faz parágrafo para mudar meus assuntos à medida em que evoluo. Letra do tipo em que não faz ponto pra respirar entre uma montanha e outra, do tipo que cria títulos que podem ou não ser lidos por pessoas ou deslidos por não-pessoas, reinventados por crianças esses eternos criadores (o que importa?) Na missão-nova de ser letra não quis ser mais uma igual, ainda que exemplos belos não me faltassem, ainda que não faltasse também admiração por eles, os criadores absolutos de palavras que salvam a vida de ser menos vida. Faltava-me mesmo era ousadia para copiá-los ou tenacidade para ser igual. Na falta disso, o orgulho dominante insistiu na originalidade de tentar ser outro com voz própria no meio da multidão (Fazer o quê? A velha ilusão da alteridade). Na busca de ser cada vez mais letra, arvorei-me em cada vez mais textos, poesia, conto, crônica, teatro, comédia, romance, falas usurpadoras ou consonantes, filosofias narcóticas, eloquentes ou insones, dinâmicas ou agarradas ao rés da terra, o que eu queria mesmo era dissolver-me em estrofes não complementares, díspares, heterogêneas e incomunicáveis. Sorver no líquor o patinar da vida. Porque ser gente, além de ser chato, é o exercício banal da mediocridade e do excesso de limitações. Não ter garras e presas é trágico, não ter escamas e não poder viver solto no mar é cruel, e finalmente não ter asas não é algo que possa ser jamais perdoado, não é algo que possa ser admitido ou ao menos imaginado. O espássaro-superior-do-ar, onde o vento faz morada, alcançado apenas pelas aves e besouros ousados, é o único lugar que valeria a pena ser habitado. Não sendo bicho de asas, jamais me contentaria em estar tão próximo das minhocas, aqui neste lodaçal. Imaginar-me flutuando sobre o chão foi o que fiz a maior parte da minha vida. (Mas isso tudo foi antes de eu querer me tornar letra). Agora que sou letra, agora que sou líquido e fluido, e meus braços e pernas se insinuam em qualquer passagem, eu me derramo por zilhões de páginas em branco, viajo por todo lado sem precisar carona, desmaterializo-me a qualquer tempo sem ordem ou máquina, surjo em qualquer lugar e posso testemunhar qualquer coisa que exista nisso a que todos chamam planeta, em qualquer de suas épocas ou lugar. Do tédio de ser gente e andar preso à minha roda de sísifo inafastável, fiz um estilingue metafísico a lançar humanos e a mim mesmo em outra dimensão. Provo, agora, do mal-estalado gosto ácido e doce do tempo sem ter um corpo sólido e morrendo de felicidade por isso, e sem necessariamente ter que sentir nada quando eu não quiser. Agora sou letra, sou texto, sou poemas e cartas de amor. Sou notícias de jornal, boas ou ruins, sou redação e provas de colégio de quem está começando a escrever, sou o be-a-bá do mundo com todos os seus defeitos e qualidades. Sou filosofias de compreensão ou inaceitação da vida e não preciso razões. Só não sou relatório, estatísticas nem contas porque tornar-se letra é, voluntaria e decididamente um ato de rebeldia contra qualquer número. Toda letra é, por definição, um "não-número" e assim deve ser , para glória das civilizações que nunca existiram mas que como diria Jorge, o argentino, ainda guardam segredos relevantes. A ciência de ter uma alma e se tornar letra é exercício de disciplina e método praticado como a arte do samurai por toda uma vida, e não admite falhas. Ser número é opção de vida a excluir-se automatica e definitivamente da possibilidade incomensurável e rendentora de ser letra. Não há perdão nesse campo, e todos os insurgentes serão decapitados sumariamente. Suas vírgulas serão eliminadas e seu ponto final também será acrescentado imediatamente, em qualquer período em que estejam se desenvolvendo , e aos que têm o azar de não serem decapitados, serão deportados em definitivo para as tabelas, máquinas de calcular e extratos bancários da vida sem volta. Estamparão anúncios de compra e venda, promoções, explorações do homem sobre o homem, do homem destruindo a natureza por ganância financeira e além de tudo, estamparão ações de desapropriação de lares onde há famílias inteiras morando, declarações fiscais de bancarrotas, pescoços amarrados em corda e quedas livres de enormes precipícios instalados nas vinte e quatro horas diárias ininterruptas em que não hiberna o sistema. Sentindo-me muito mais forte após estabelecer o corolário e os axiomas dessa importante distinção, percebo que enquanto me aumento na arte vital de me tornar cada vez mais letra, e assim meus parágrafos crescem, minhas rimas melhoram e os títulos (esse malditos!!...) finalmente ganham mais sentido no conteúdo do meu texto corporal, algo estranho começa a atacar meus períodos, uma praga vinda não sei de onde. Das frases e estrofes que me alimentam a alma a cada página, sinto cair ora uma rima, ora um ponto, e tantas vezes as vírgulas se tornam mais apagadas, as conjunções se estranham com as frases e de repente sou tomado de um espanto inadmissível para a perfeição de qualquer matéria que um dia tenha se tornado sonho ou amargo pesadelo: percebo, para meu desgosto, surpresa e desespero que depois de tanto tempo afinando-me no lavor de tornar-me letra, e constando como seria de bom tom em todos meus registros os sucessos ou fracassos esporádicos do meu empreendimento surreal também condicionado pela vida, (esses absurdos pretensiosos e hilários que redescrevo e que me fazem tão bem), eles começam, radicalmente contra a minha melhor vontade, a acertar estilhaços em algum lugar na cabeça dos humanos cujos corpos eu fiquei tão feliz em espalhar pelo caminho. Penso comigo mesmo, em tom repreensivo: devia ter destruído as cabeças, claro que sim! Nessa hipótese, seus corpos inanimados não reviveriam jamais. Eu sabia mas fingi que não, por mera preguiça. Agora, tarde, fecho os olhos e tento voltar no tempo para ver qual o importante e fatídico erro que eu poderia ter cometido desde que iniciado para minha enorme felicidade o momento em que decidi finalmente me transformar em letra, e não consigo simplesmente ver quando foi. Falando em algum lugar sobre crianças, tornei-me também infante brincando com os resultados e armando meus personagens como bonecos a viver histórias, e não apenas satisfeito com isso, insuflei vida sobre os bonecos, pensamentos, insatisfações, riso e desaforo como toda criança. Rabiscando pensamentos impunes sobre o amor, tornei-me paixão, amei e impunemente fui amado (só agora sei), variei meus temperamentos, tendências e fortes emoções entre as fases da lua ou entre as horas que compõem o espaço assustadoramente rápido entre a noite e o dia. Lançando meus apontamentos intimoratos sobre a velhice, senti o cansaço sobre minhas pernas, o prazer da dor física a habitar meu corpo inteiro, a pulsação eclipsada de flertar com a morte todas as noites ao beijar o travesseiro e vivi as rugas precoces de um momento futuro. Fiquei mais sábio e mais calado quando velho, mesmo isso (as duas coisas: sabedoria e silêncio) sendo constatações contra a minha natureza Oswaldianamente antropofágica, verborrágica. Sendo homem, jovem e decidido também dividi meus versos entre ódio e incompreensão, fui mais fundo no sentido humano de existir sem ter uma razão, e espraiando como o sol a generosidade de dividir meus raios e meu calor com as plantas e bichos, entendi por fim a última arte e talvez a mais difícil: a virtude do ser-mulher e do ser-mãe, quando vi meus textos darem à luz novas formas de vida, novas possibilidades originais e intocadas de sentir o mundo de revés por diversos olhares inauditos. A humanidade insólita que eu havia cuspido com volúpia agora retornava a mim com tanta violência que tive que virar o rosto e me reportar imediatamente aos outros seres ignóbeis com quem antes convivia, e de que há muito tempo não ouvia mais falar. Eu os via novamente se alimentando e se transformando de alguma forma em partes de minhas partes que agora eram sorvidas com sofreguidão por suas almas famintas como a minha antes por conhecimento, por aventuras, por um sentido enfim, ainda que miserável para suas vidas. Esses seres rastejantes em busca de viver tornaram-se também letras, e por meio delas, viviam o mesmo fenômeno que aconteceu comigo, apenas com uma diferença momentânea de "status". Enquanto eu saía do processo ao final da jornada, desfazendo-me de verbo em carne, eles faziam o caminho contrário e início da aventura, transformando-se de ossos em histórias. O fato que eu não conseguia mais controlar e somente agora começava a entender, para minha perplexidade, era que a minha humanidade que se perdera de mim agora retornava com força maior depois da transmutação dos elementos por essa experiência de pura alquimia. Em algum lugar dessa trajetória tão querida, insidiosamente meu texto, ou fagulhas luminosas dele, contra minha vontade espargiram-se para fora do seu invólucro e foram contaminando aqui e ali alguns humanos que restavam à beira do caminho. Distraído com minha nova vida, e tornando-me letra a cada dia mais um pouco, não pude ver quando é que esses humanos agora contaminados por partes minhas que estavam a meio metabolismo entre carne e sonhos, entre gente e letras, agora também tornavam-se mais letra do que gente, enquanto comigo era o contrário que ocorria. Depois de tantas eras em segredo, apurando em silêncio como a arte dos cogumelos em florescer sem nenhuma luz, pude descobrir para meu terror que as partes que deixei para trás, consolidadas como as melhores letras que eu poderia ter produzido, agora tornavam-se também gente, e partes do meu próprio corpo que há poucos segundos eram meus amados paragrafórios, minhas alinhavadas histórias, minhas respirações virgulatórias e meu sono pontualístico, agora se transformavam de novo num corpo, e esse corpo tinha gosto, cheiro, volume e sentia dor quando eu me beliscava novamente. Raios! Lendo meus textos, lendo meu corpo palavratório, humanos tornaram-se texto como eu, e eu, que prezava tanto em ser texto, tornei-me mais gente no processo. No caminho de retornar agora a ser gente, percebo com angústia e contra minha vontade que meu maior desejo fora apenas uma ilusória cápsula lisérgica escrita com a melhor das intenções. Eu também havia provado do verde absintho complexo de não ter razão e sentia pelos poros como a vida também havia me contaminado desde o início por vias tortas, apesar de minha primeira avaliação ter me dito exatamente o contrário. Afirmava, quando pensava negar o impulso vital de viver. Materializava, em comunhão com esses pares perdidos de humanóides, quando pensava dissolver. Eu também, afinal, no remoinho da grande revelação, descobrira que era fruto de ter lido antes e de ter experienciado primeiro do que a vil casta desprezível da mortalidade que eu não levava a sério toda a riqueza daqueles alfarrábios e pergaminhos que o tempo felizmente ainda não levara. Desfrutara princesas, construíra castelos, lutara na Gália com os exércitos de César, navegara com todos os piratas dos sete mares e dormira com vento e cinzas sem cobertor nas bordas do Vesúvio fumegante por mais de uma vez, relegado ao ácido sereno. E apesar de tudo isso, eu era também um reles mortal como tantos outros que até então eu gostaria de ver pelo avesso, apenas com as vísceras penduradas no meu varal. As vísceras no varal penduradas sempre foram na verdade as minhas e havia sem querer me tornado mais humano do que os homens por ter comido um pedaço da humanidade de alguém que veio antes de mim e plantou seu veneno nos meus olhos e nos meus ouvidos desde tenra criança, quando ainda não podia ler nem escolher mas já ouvia, sentia e queria saber de tudo. Compreendia histórias. Ver a beleza e não tocá-la, sentir seu perfume e não pegá-la para si, contemplar suas lânguidas curvas e seu temperamento selvagem, chegar perto o rosto ao espaço mínimo de um beijo e recusar no último momento, no instante exato por não querer ser seu dono, não desejar mais ter a sua posse, porque agora eu sabia. Sentir o calor frio da chuva no rosto quente escorrendo como as lágrimas do acidente feliz de ter nascido e atestar a condição universal e essencial mais amarga para o humano, contemplar o que não pode ter. Saber da beleza e não ter que pegar nas mãos. Atitude que no primeiro momento simula fraqueza, mas representa na verdade uma imensa força que permite a vida, porque vem de um convencimento superior e difícil que pressupõe a idéia perfeita de que a beleza só existe enquanto não é tomada, não é materializada. Como presente de Zeus, evanesce no próprio ar se for materializada para minhas mãos ignóbeis. Mas os gregos estavam certos, e Sileno estava errado, preso há muito tempo sem vinho na sua floresta macabra. A falta de vinho, como sempre ocorre, prejudicou seu discernimento e destruiu seu humor. Portanto, a máxima de entender a condição humana como "não nascer, ou uma vez nascido , morrer bem depressa" torna-se inadvertidamente, alçar-se à altura de perceber o que há de belo no terror de estar vivo, e uma vez eleito para ter essa visão privilegiada sobre a verdadeira teia invisível que tece o tecido da vida, saber que não possuir essa beleza mas saber que ela existe é o maior de todos os dons. A vida para me dar uma lição, armadilhou-me mais uma vez em morte, tampou meus olhos com a mais escura venda para que enfim eu pudesse enxergar a luz: Na metamorfose insólita de minhas palavras vazarem sem minha ordem e conhecimento para o mundo , derramando suas dores e alegrias sobre a terra e deixando assim meu mundo conhecido textual palavrante para decididamente invadir a vida, tocando aqui e ali o que tinha restado do conceito incomum de pessoas, a vida me forçou novamente a ser gente, decididamente contra a mais forte das minhas vontades, usando meu próprio texto como remédio para todos os meus próprios venenos. Perdendo-me aos poucos no processo de me espalhar veneno-contra-pessoas, agora inadvertidamente me reencontro nelas porque carrego humanidades partilhadas em minhas costas no retorno para minha eterna casa da palavra. Amargamente, contraditoriamente, desesperadamente, assustadoramente, humanizei-me e humanizo-me inadvertidamente no tempo presente, novamente deixando de ser letra enquanto o contato com o mundo se estabelece no terror de uma certeza pelas minhas próprias palavras traiçoeiras. Tento desfazer-me agora, novamente, do que me retornou de humanidade, mas vejo que é sem sucesso, porque ao passo que me esforço cada vez mais a cada segundo pulsante de vida no afã de deixar de ser esse mísero corpo e me tornar de novo metafísicamente letra, colaboro cada vez mais para que o processo contrário se instaure, e meus pés são cimentados no chão das gentes junto com mais outros que de uma forma ou de outra nutrem o mesmo propósito, mesmo que nunca o saibam.
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texto dedicado ao Oráculo de Buenos Aires
De tudo que eu um dia quis ser na vida, de tudo quanto é vocação, tendência, destino ou moda, ser gente é o que mais me entedia. Por isso, enjoado de ser gente, enjoado da humanidade e de suas possibilidades mesquinhas, um dia decidi ser letra. Mas não queria ser letra comum, igual, repetida ou banal. Pra eu me tornar letra tinha que ser assim, Letra mesmo, com inicial maiúscula, espírito e forma, letra comprida, continuada, com sentido, abstração e uma imprevisível conexão do tipo que não faz parágrafo para mudar meus assuntos à medida em que evoluo. Letra do tipo em que não faz ponto pra respirar entre uma montanha e outra, do tipo que cria títulos que podem ou não ser lidos por pessoas ou deslidos por não-pessoas, reinventados por crianças esses eternos criadores (o que importa?) Na missão-nova de ser letra não quis ser mais uma igual, ainda que exemplos belos não me faltassem, ainda que não faltasse também admiração por eles, os criadores absolutos de palavras que salvam a vida de ser menos vida. Faltava-me mesmo era ousadia para copiá-los ou tenacidade para ser igual. Na falta disso, o orgulho dominante insistiu na originalidade de tentar ser outro com voz própria no meio da multidão (Fazer o quê? A velha ilusão da alteridade). Na busca de ser cada vez mais letra, arvorei-me em cada vez mais textos, poesia, conto, crônica, teatro, comédia, romance, falas usurpadoras ou consonantes, filosofias narcóticas, eloquentes ou insones, dinâmicas ou agarradas ao rés da terra, o que eu queria mesmo era dissolver-me em estrofes não complementares, díspares, heterogêneas e incomunicáveis. Sorver no líquor o patinar da vida. Porque ser gente, além de ser chato, é o exercício banal da mediocridade e do excesso de limitações. Não ter garras e presas é trágico, não ter escamas e não poder viver solto no mar é cruel, e finalmente não ter asas não é algo que possa ser jamais perdoado, não é algo que possa ser admitido ou ao menos imaginado. O espássaro-superior-do-ar, onde o vento faz morada, alcançado apenas pelas aves e besouros ousados, é o único lugar que valeria a pena ser habitado. Não sendo bicho de asas, jamais me contentaria em estar tão próximo das minhocas, aqui neste lodaçal. Imaginar-me flutuando sobre o chão foi o que fiz a maior parte da minha vida. (Mas isso tudo foi antes de eu querer me tornar letra). Agora que sou letra, agora que sou líquido e fluido, e meus braços e pernas se insinuam em qualquer passagem, eu me derramo por zilhões de páginas em branco, viajo por todo lado sem precisar carona, desmaterializo-me a qualquer tempo sem ordem ou máquina, surjo em qualquer lugar e posso testemunhar qualquer coisa que exista nisso a que todos chamam planeta, em qualquer de suas épocas ou lugar. Do tédio de ser gente e andar preso à minha roda de sísifo inafastável, fiz um estilingue metafísico a lançar humanos e a mim mesmo em outra dimensão. Provo, agora, do mal-estalado gosto ácido e doce do tempo sem ter um corpo sólido e morrendo de felicidade por isso, e sem necessariamente ter que sentir nada quando eu não quiser. Agora sou letra, sou texto, sou poemas e cartas de amor. Sou notícias de jornal, boas ou ruins, sou redação e provas de colégio de quem está começando a escrever, sou o be-a-bá do mundo com todos os seus defeitos e qualidades. Sou filosofias de compreensão ou inaceitação da vida e não preciso razões. Só não sou relatório, estatísticas nem contas porque tornar-se letra é, voluntaria e decididamente um ato de rebeldia contra qualquer número. Toda letra é, por definição, um "não-número" e assim deve ser , para glória das civilizações que nunca existiram mas que como diria Jorge, o argentino, ainda guardam segredos relevantes. A ciência de ter uma alma e se tornar letra é exercício de disciplina e método praticado como a arte do samurai por toda uma vida, e não admite falhas. Ser número é opção de vida a excluir-se automatica e definitivamente da possibilidade incomensurável e rendentora de ser letra. Não há perdão nesse campo, e todos os insurgentes serão decapitados sumariamente. Suas vírgulas serão eliminadas e seu ponto final também será acrescentado imediatamente, em qualquer período em que estejam se desenvolvendo , e aos que têm o azar de não serem decapitados, serão deportados em definitivo para as tabelas, máquinas de calcular e extratos bancários da vida sem volta. Estamparão anúncios de compra e venda, promoções, explorações do homem sobre o homem, do homem destruindo a natureza por ganância financeira e além de tudo, estamparão ações de desapropriação de lares onde há famílias inteiras morando, declarações fiscais de bancarrotas, pescoços amarrados em corda e quedas livres de enormes precipícios instalados nas vinte e quatro horas diárias ininterruptas em que não hiberna o sistema. Sentindo-me muito mais forte após estabelecer o corolário e os axiomas dessa importante distinção, percebo que enquanto me aumento na arte vital de me tornar cada vez mais letra, e assim meus parágrafos crescem, minhas rimas melhoram e os títulos (esse malditos!!...) finalmente ganham mais sentido no conteúdo do meu texto corporal, algo estranho começa a atacar meus períodos, uma praga vinda não sei de onde. Das frases e estrofes que me alimentam a alma a cada página, sinto cair ora uma rima, ora um ponto, e tantas vezes as vírgulas se tornam mais apagadas, as conjunções se estranham com as frases e de repente sou tomado de um espanto inadmissível para a perfeição de qualquer matéria que um dia tenha se tornado sonho ou amargo pesadelo: percebo, para meu desgosto, surpresa e desespero que depois de tanto tempo afinando-me no lavor de tornar-me letra, e constando como seria de bom tom em todos meus registros os sucessos ou fracassos esporádicos do meu empreendimento surreal também condicionado pela vida, (esses absurdos pretensiosos e hilários que redescrevo e que me fazem tão bem), eles começam, radicalmente contra a minha melhor vontade, a acertar estilhaços em algum lugar na cabeça dos humanos cujos corpos eu fiquei tão feliz em espalhar pelo caminho. Penso comigo mesmo, em tom repreensivo: devia ter destruído as cabeças, claro que sim! Nessa hipótese, seus corpos inanimados não reviveriam jamais. Eu sabia mas fingi que não, por mera preguiça. Agora, tarde, fecho os olhos e tento voltar no tempo para ver qual o importante e fatídico erro que eu poderia ter cometido desde que iniciado para minha enorme felicidade o momento em que decidi finalmente me transformar em letra, e não consigo simplesmente ver quando foi. Falando em algum lugar sobre crianças, tornei-me também infante brincando com os resultados e armando meus personagens como bonecos a viver histórias, e não apenas satisfeito com isso, insuflei vida sobre os bonecos, pensamentos, insatisfações, riso e desaforo como toda criança. Rabiscando pensamentos impunes sobre o amor, tornei-me paixão, amei e impunemente fui amado (só agora sei), variei meus temperamentos, tendências e fortes emoções entre as fases da lua ou entre as horas que compõem o espaço assustadoramente rápido entre a noite e o dia. Lançando meus apontamentos intimoratos sobre a velhice, senti o cansaço sobre minhas pernas, o prazer da dor física a habitar meu corpo inteiro, a pulsação eclipsada de flertar com a morte todas as noites ao beijar o travesseiro e vivi as rugas precoces de um momento futuro. Fiquei mais sábio e mais calado quando velho, mesmo isso (as duas coisas: sabedoria e silêncio) sendo constatações contra a minha natureza Oswaldianamente antropofágica, verborrágica. Sendo homem, jovem e decidido também dividi meus versos entre ódio e incompreensão, fui mais fundo no sentido humano de existir sem ter uma razão, e espraiando como o sol a generosidade de dividir meus raios e meu calor com as plantas e bichos, entendi por fim a última arte e talvez a mais difícil: a virtude do ser-mulher e do ser-mãe, quando vi meus textos darem à luz novas formas de vida, novas possibilidades originais e intocadas de sentir o mundo de revés por diversos olhares inauditos. A humanidade insólita que eu havia cuspido com volúpia agora retornava a mim com tanta violência que tive que virar o rosto e me reportar imediatamente aos outros seres ignóbeis com quem antes convivia, e de que há muito tempo não ouvia mais falar. Eu os via novamente se alimentando e se transformando de alguma forma em partes de minhas partes que agora eram sorvidas com sofreguidão por suas almas famintas como a minha antes por conhecimento, por aventuras, por um sentido enfim, ainda que miserável para suas vidas. Esses seres rastejantes em busca de viver tornaram-se também letras, e por meio delas, viviam o mesmo fenômeno que aconteceu comigo, apenas com uma diferença momentânea de "status". Enquanto eu saía do processo ao final da jornada, desfazendo-me de verbo em carne, eles faziam o caminho contrário e início da aventura, transformando-se de ossos em histórias. O fato que eu não conseguia mais controlar e somente agora começava a entender, para minha perplexidade, era que a minha humanidade que se perdera de mim agora retornava com força maior depois da transmutação dos elementos por essa experiência de pura alquimia. Em algum lugar dessa trajetória tão querida, insidiosamente meu texto, ou fagulhas luminosas dele, contra minha vontade espargiram-se para fora do seu invólucro e foram contaminando aqui e ali alguns humanos que restavam à beira do caminho. Distraído com minha nova vida, e tornando-me letra a cada dia mais um pouco, não pude ver quando é que esses humanos agora contaminados por partes minhas que estavam a meio metabolismo entre carne e sonhos, entre gente e letras, agora também tornavam-se mais letra do que gente, enquanto comigo era o contrário que ocorria. Depois de tantas eras em segredo, apurando em silêncio como a arte dos cogumelos em florescer sem nenhuma luz, pude descobrir para meu terror que as partes que deixei para trás, consolidadas como as melhores letras que eu poderia ter produzido, agora tornavam-se também gente, e partes do meu próprio corpo que há poucos segundos eram meus amados paragrafórios, minhas alinhavadas histórias, minhas respirações virgulatórias e meu sono pontualístico, agora se transformavam de novo num corpo, e esse corpo tinha gosto, cheiro, volume e sentia dor quando eu me beliscava novamente. Raios! Lendo meus textos, lendo meu corpo palavratório, humanos tornaram-se texto como eu, e eu, que prezava tanto em ser texto, tornei-me mais gente no processo. No caminho de retornar agora a ser gente, percebo com angústia e contra minha vontade que meu maior desejo fora apenas uma ilusória cápsula lisérgica escrita com a melhor das intenções. Eu também havia provado do verde absintho complexo de não ter razão e sentia pelos poros como a vida também havia me contaminado desde o início por vias tortas, apesar de minha primeira avaliação ter me dito exatamente o contrário. Afirmava, quando pensava negar o impulso vital de viver. Materializava, em comunhão com esses pares perdidos de humanóides, quando pensava dissolver. Eu também, afinal, no remoinho da grande revelação, descobrira que era fruto de ter lido antes e de ter experienciado primeiro do que a vil casta desprezível da mortalidade que eu não levava a sério toda a riqueza daqueles alfarrábios e pergaminhos que o tempo felizmente ainda não levara. Desfrutara princesas, construíra castelos, lutara na Gália com os exércitos de César, navegara com todos os piratas dos sete mares e dormira com vento e cinzas sem cobertor nas bordas do Vesúvio fumegante por mais de uma vez, relegado ao ácido sereno. E apesar de tudo isso, eu era também um reles mortal como tantos outros que até então eu gostaria de ver pelo avesso, apenas com as vísceras penduradas no meu varal. As vísceras no varal penduradas sempre foram na verdade as minhas e havia sem querer me tornado mais humano do que os homens por ter comido um pedaço da humanidade de alguém que veio antes de mim e plantou seu veneno nos meus olhos e nos meus ouvidos desde tenra criança, quando ainda não podia ler nem escolher mas já ouvia, sentia e queria saber de tudo. Compreendia histórias. Ver a beleza e não tocá-la, sentir seu perfume e não pegá-la para si, contemplar suas lânguidas curvas e seu temperamento selvagem, chegar perto o rosto ao espaço mínimo de um beijo e recusar no último momento, no instante exato por não querer ser seu dono, não desejar mais ter a sua posse, porque agora eu sabia. Sentir o calor frio da chuva no rosto quente escorrendo como as lágrimas do acidente feliz de ter nascido e atestar a condição universal e essencial mais amarga para o humano, contemplar o que não pode ter. Saber da beleza e não ter que pegar nas mãos. Atitude que no primeiro momento simula fraqueza, mas representa na verdade uma imensa força que permite a vida, porque vem de um convencimento superior e difícil que pressupõe a idéia perfeita de que a beleza só existe enquanto não é tomada, não é materializada. Como presente de Zeus, evanesce no próprio ar se for materializada para minhas mãos ignóbeis. Mas os gregos estavam certos, e Sileno estava errado, preso há muito tempo sem vinho na sua floresta macabra. A falta de vinho, como sempre ocorre, prejudicou seu discernimento e destruiu seu humor. Portanto, a máxima de entender a condição humana como "não nascer, ou uma vez nascido , morrer bem depressa" torna-se inadvertidamente, alçar-se à altura de perceber o que há de belo no terror de estar vivo, e uma vez eleito para ter essa visão privilegiada sobre a verdadeira teia invisível que tece o tecido da vida, saber que não possuir essa beleza mas saber que ela existe é o maior de todos os dons. A vida para me dar uma lição, armadilhou-me mais uma vez em morte, tampou meus olhos com a mais escura venda para que enfim eu pudesse enxergar a luz: Na metamorfose insólita de minhas palavras vazarem sem minha ordem e conhecimento para o mundo , derramando suas dores e alegrias sobre a terra e deixando assim meu mundo conhecido textual palavrante para decididamente invadir a vida, tocando aqui e ali o que tinha restado do conceito incomum de pessoas, a vida me forçou novamente a ser gente, decididamente contra a mais forte das minhas vontades, usando meu próprio texto como remédio para todos os meus próprios venenos. Perdendo-me aos poucos no processo de me espalhar veneno-contra-pessoas, agora inadvertidamente me reencontro nelas porque carrego humanidades partilhadas em minhas costas no retorno para minha eterna casa da palavra. Amargamente, contraditoriamente, desesperadamente, assustadoramente, humanizei-me e humanizo-me inadvertidamente no tempo presente, novamente deixando de ser letra enquanto o contato com o mundo se estabelece no terror de uma certeza pelas minhas próprias palavras traiçoeiras. Tento desfazer-me agora, novamente, do que me retornou de humanidade, mas vejo que é sem sucesso, porque ao passo que me esforço cada vez mais a cada segundo pulsante de vida no afã de deixar de ser esse mísero corpo e me tornar de novo metafísicamente letra, colaboro cada vez mais para que o processo contrário se instaure, e meus pés são cimentados no chão das gentes junto com mais outros que de uma forma ou de outra nutrem o mesmo propósito, mesmo que nunca o saibam.
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texto dedicado ao Oráculo de Buenos Aires