O riso
Por dois marcantes estados de espírito, o homem frequentemente contempla os deuses, no tempo fugaz de sua singela existência: o trágico e o riso.
O trágico, porque rompe com todos os artifícios, soterrando as futilidades, convenções e aparências características da vida social em todo o planeta, desde que esse tipo especial de primata saiu de suas cavernas coletivas para almejar o domínio da natureza, projeto mais ambicioso para si próprio.
Eliminando a dormência inata do ser, a dor e a prostração inerentes à percepção da tragédia ainda capacitam o olhar e os sentidos hipersensibilizados a experimentarem o sofrimento em sua forma mais pura, trazendo consigo a possibilidade da visão fulgurante, a capacidade do ser absorver o impacto diretamente em seu peito, sem qualquer tipo de anestesia... Toda a força da vida, em sua forma mais bruta.
Naturalmente, isso não é algo desejado, nem do ponto de vista do indivíduo nem muito menos do grupo. A manifestação do trágico é quase sempre temível e insuportável. Muitos perecem neste primeiro golpe, ou se não perecem totalmente, carregam suas sequelas para todo o sempre. Afinal, a vida pode ser bela, mas como sabemos nessas alturas, sem dúvida não é indolor e ainda possui inúmeros efeitos colaterais. Basta estar vivo para saber a inflexão deste axioma, perceber a infiltração de suas raízes até suas últimas consequências.
O que é trágico individualiza o ente, por um lado, pelo alcance inusitado do raio da descontinuidade, do imprevisível e do hediondo sobre o ponto ínfimo, representado por tudo que é humano lançado sobre a imensidão de possibilidades do universo, e que agora é atingido inadvertidamente enquanto desenvolvia sua faina cotidiana. Desse modo, essa luz que mais queima do que ilumina, transforma este ponto insignificante em algo universal, ao elevar essa categoria de dor e desespero à identidade presente no pertencer à humanidade, representada, na prática, pela enorme parcela de pessoas que, diariamente, no planeta, estão sujeitas a idêntica situação, quer sejam eles atingidos diretamente por evento trágico, ou mesmo atingidos indiretamente, e não de forma menos grave, uma vez que tal ocorrência poderá derrubar também seus entes queridos.
O riso, por sua vez, de origem diversa, e desenvolvendo-se por caminhos mais empíricos do que essenciais, desafia o trágico enquanto estado de espírito capaz de alterar de forma mais marcante a percepção e a sensibilidade do homem sobre a vida. O bom humor é, assim, a contestação mais poderosa sobre a sua face mais dura, sobre o lado inóspito . É a superação daquela condição anterior, notadamente trágica, a que somos lançados justamente no primeiro minuto em que viemos ao mundo. Isto, porque, o riso traz em si, nos seus efeitos sobre o corpo e a mente humanas, num primeiro plano, a mutação química, a alteração do estado de ânimo para uma positividade pragmática frente as desventuras da vida, e num segundo momento, se consegue ser mantido apesar da constatação de que o mundo oferece resistência e tenta diminuir seu poder, proporciona também a elevação a uma leveza de espírito e uma premente sensação de felicidade orgânica capaz de solidarizar, plasmar, cimentar de maneira muito mais duradoura o homem à vida.
O homem é o único animal que ri, todos sabemos. Não me venham com aquela história das hienas, das caretas circenses dos chimpanzés ou a algazarra do papagaio da vizinha, porque daí seremos obrigados a consultar a biologia evolutiva e provar, por A mais B, que aquilo ali não é risada, nem é espontâneo. É apenas um grunhido, ou no máximo, uma expressão sonora de reconhecimento do grupo, alguns códigos primitivos. Deixando esse folclore de lado, constatamos que o homem é, de fato, o único animal que ri. O riso não é algo meramente físico, contração brusca do abdómen com extensão ou encurtamento do diafragma, seguida de emissão intensa de vibrações sonoras. Dizer isso é matar qualquer risada de tédio... "O homem é o animal que ri!..." É uma expressão de força, cujo resultado compreensivo está muito além do que sugere a simplicidade da frase. E isso já seria conteúdo suficiente para defini-lo e distingui-lo do restante da natureza, em substituição de atributo historicamente "mais nobre", como "animal racional", "falante", "guerreiro" , não fosse a cultura ocidental delineada pelos atributos da racionalidade, e portanto, porta-voz de um tipo de "seriedade" inimiga dos estados mais leves de espírito.
Ao contrário do choro, que é mais primevo, reação imediata ao estranhamento e primeiro impulso em face do estímulo do sofrimento, o riso é cultural, coletivo, e precisa ser aprendido. O animal homem chora quando nasce. É o reflexo primeiro e mais natural, a dor do ar abrindo seus pulmões, a dor sofrida pelo golpe de um exterior sólido e gelado do mundo, pelo recém-nascido de um ventre materno confortavelmente líquido e aquecido. Só depois de um certo tempo , entretanto, é que começará a sorrir, quando sentir que, entre uma coisa e outra, entre o ardido da condição humana e a sensação, ainda que passageira, de que há um outro olhar sobre a causa do sofrimento, escolhe ficar com o lado bom da vida. Há uma escolha nesse processo, que implica coragem por parte do seu principal ator. O riso confere identidade ao grupo humano, e do ponto de vista individual, acrescenta uma qualificação existencial. Num mundo caótico porque aleatório, e sem desígnios absolutos confiáveis, a bem da verdade, a "verdade" mesma sucumbiria. Não há lógica ou conhecimento capaz de se sustentar quando se olha a própria vida com excessiva seriedade. É como se um cego conduzisse a procissão, é como se víssemos crianças jogando dados, e em vez de atribuirmos o valor comum ao fato, sendo apenas o valor lúdico de crianças brincando enquanto jogam dados, alguém dissesse que há uma verdade absoluta mesmo nesse quadro, por detrás desse sentido puramente aleatório e indeterminado que é a vida, e quisesse que o restante dos homens, também cegos por amor a essa verdade, deixasse de perceber que o que há mesmo é caos por trás da suposta ordem.
O melhor riso é o que sabe da relativa magnitude da tragédia, mas não sucumbe. Só ele pode quebrar essa ordem, recolocando a verdade, a lógica, a racionalidade, no seu devido lugar, apenas como coadjuvantes, como vias necessárias para se administrar a força criadora e disciplinadora humana sobre o mundo da natureza, verdades relativas que permitem um certo domínio de forma meramente utilitária, ao tornar possível a criação da ciência e da tecnologia, responsável pela multiplicação da vida humana e por toda a rede que permeia a ordem econômica e social.
O lúdico é mais importante que o trágico, para a história de nossa raça, mas nos livros está escrito ao contrário. A arte da graça, o fazer rir, a reunião dos melhores esforços para, utilizando o tempo certo, o conteúdo apropriado e o contexto ideal, provocar no outro aquele desejo irrefreável de pocar o mundo ao meio numa imensa gargalhada, é impagável... Ou mesmo, olhando-se o lado de cá do palco, ao se observar a capacidade do próprio indivíduo de se elevar à condição de poder rir de toda a dor que o acomete, tal capacidade é de uma delicadeza e uma profundidade ímpar, e pode-se afirmar, sem maiores delongas que, somente os grandes espíritos são capazes de rir de verdade. E de todo riso, o maior é o que ri de si mesmo, e assim se descobre enquanto possibilidade.
Há também outros tipos de risos, naturais e inventados; o riso fluente e gratuito das crianças, o riso dos bêbados de uma noite, o riso nervoso da adolescente que começa a namorar, o riso cheio e descontextualizado dos loucos, o riso-desculpa que anônimos utilizam compulsivamente no dia-a-dia para se manterem sóbrios em meio à vida coletiva. Existe aquele riso sarcástico, duro e exigente para com as coisas do mundo, que acaba revelando muito mais sobre seu manifesto e eloquente portador do que sobre o mundo mesmo.
Além disso, há o riso como resultado de uma atitude forte e ousada de quem alcança este contínuo estado de graça, porque sabe que em meio às tempestades, sempre haverá aquele momento de serenidade, e através dessa mínima revelação sobre o mundo, será possível encontrar paz, sabedoria e superação para rir da tragédia comum e inerente ao próprio viver, colocando o bom humor e a atitude positiva como artes supremas a serem conquistadas.
Não acredito em quem não sabe rir... O fato é que a seriedade, aliada à lógica e à abordagem racional-cartesiana do mundo, ao contrário do que sempre pregaram nossa tradição ocidental, nada acrescenta sobre a veracidade da vida, em sua essência. Apenas lhe confere domínios funcionais sobre alguns setores da natureza. E mesmo assim, um domínio relativo, como hoje se vê.
O trágico não é menos verdadeiro no seu diagnóstico, mas sua opressão sobre o ser pode eliminá-lo da face da Terra, enquanto o riso é o seu libertador. Configura-se apenas um erro histórico da cultura ocidental ter valorizado mais a lógica do que sua superação pelo lúdico, moldando assim uma certa maneira particular de se relacionar com a vida.
Independentemente dessa tentativa de apreensão e de submissão, a vida , melhor retratada pelo riso de quem sabe rir continuará fluindo solta, ao lado, sempre inusitada, desmedida e aleatória, em superação do seu antípoda, a velha forma, a armadura aprisionante da razão que vive tentando castrar a verdadeira alma, prática gerada por uma cultura que traz em sua essência um tipo de moral ascética que desqualifica a vida,o corpo e o prazer, a verdadeira linguagem de tudo que é lúdico.