RESENHA
"ABUSADO" (Caco Barcelos , Ed. Record)
Desafiando o famoso toque consumista confesso de alguém que tem dificuldade em administrar a própria compulsão de comprar sempre mais do que consegue ler, de repente dou de cara com o livro de Caco Barcelos, parado há tanto tempo na estante e esperando uma oportunidade, entre tantos outros ainda não lidos.
Eis que a oportunidade finalmente surgiu , depois dos últimos fatos violentos relacionados à cidade do Rio de Janeiro e amplamente divulgados pela imprensa. Uma curiosidade mórbida sobre um tema do qual tantas vezes ouvi falar, mas que de perto conheço tão pouco: a antiga história dos conflitos entre morro, zona sul e o comportamento segregacionista que existe institucionalizado nessa cidade desde sempre, uma cidade culturalmente rica e contraditória até as raízes, e que em tudo reflete uma espécie de painel orgânico do Brasil. A curiosidade sobre algo que pudesse me dar um limiar mais profundo e contemporâneo sobre o assunto, ir além do que essas mídias porqueiras geralmente mostram quando supostamente pretendem explicar comportamentos coletivos ditos "desviantes", quando na verdade acabam reduzindo muito as perspectivas e achando, fácil e rápido, vilões conforme o interesse da ocasião e o gosto do freguês.
O livro é brilhante. Bem escrito,corajoso, cativante e imparcial, num estilo jornalístico-biográfico altamente instrutivo sobre tema complexo: o conhecimento da realidade desse "outro" tão repudiado, julgado e reiteradamente incriminado, mas que de fato pouca gente conhece de perto. O livro foi publicado há onze anos atrás, mas sua abordagem antenada e contemporânea não ficou datada, e eu creio que por muito tempo não ficará, por razões óbvias. Abstraindo-se que a situação, em si mesma, é o relatório de uma grande tragédia social que envergonharia qualquer país no mundo, ou, seja, o fato de uma cidade como o Rio possuir, ainda segundo o Censo de 2010, o absurdo número de 763 favelas (!!!!), que hoje contam com mais de 2 milhões de moradores, e abstraindo-se também a polêmica midiática sobre a informação pontual de que , pouco após a publicação do livro, o "bandido" que também inspirou seu protagonista foi morto por rivais ou pela polícia (até hoje não se sabe claramente) provavelmente pelas informações estratégicas que foram ali reveladas, Caco Barcelos, consegue aliar contexto histórico, pesquisa social e investigação profunda e abrangente sobre fatos de natureza policial controvertidos, dos quais a maioria das pessoas só ficou sabendo, evidentemente, por algum Jornal Nacional ou coisa que o valha, da superfície confortável que convinha na ocasião.
Junto com a beleza da diversidade da vida, os improvisos e necessidade de adaptação dos meios e da forma de convivência dos moradores de uma das mais icônicas favelas cariocas, a de Santa Martha, é impressionante descobrir o terror que ainda alimenta e movimenta a noção popular e equivocada de "favelado bandido" ou da constatação macabra dos subterrâneos da polícia carioca, tanto Civil quanto PM, e sua eterna cumplicidade na exploração do crime, das drogas e da miséria, aliando tudo isso à prática institucional quartelar de suposta proteção do Estado de Direito. Polícias cujo conceito extremamente violento e repressivo é mais do que evidentemente anacrônico, porque são herança e hierarquia do governo militar ditatorial que mandou no país por 30 anos. Representam, no fundo, nada mais do que formas sucateadas e violentas de administrar o poder de polícia do estado, e cuja total reestruturação se mostra a cada dia mais urgente, antes que tudo se perca de vez na aumentada guerra civil das ruas. Aquela velha guerra que mascara, no fundo, uma outra guerra, tanto injusta quanto real, da péssima divisão de bens e rendas que ainda impera no Brasil, apesar da melhora estatística dos últimos 10 anos.
Caco Barcelos faz um trabalho, acima de tudo, humanista em seu mais elevado grau, denunciando as cotidianas e brutais torturas a que os presos são submetidos, além da máquina de fazer favelas em que se transformou o país, em especial o Rio de Janeiro desde sua origem primária na conhecida "evasão para os morros" da população de ex-escravos que não tinham mais aonde ir depois da abolição. Processo esse continuado durante décadas por políticas populistas e demagógicas que manteve intocável a miséria como fonte de votos e de promessas. Exibe como, no cotidiano, boa parte da violência de hoje, tão explorada e condenada superficialmente como algo que simplesmente "surge" de repente, numa explosão sem porquês, e que parece a princípio gratuita, tanto do ponto de vista do "bandido" quanto da coerção policial com direito a foto e entrevista na tv-crime de Datenas, Rezendes & Cia, têm muitos aspectos de guerra civil e essencialmente ideológica entre sistemas de poder e mau uso das políticas públicas e do dinheiro que estão ali, explícitos, à luz do dia.
Sem hipocrisia, o livro mostra, por dentro das engrenagens, como se fizesse um retrato instantâneo do Rio de hoje, como é que se organiza a metrópole, e em que grau a exploração da miséria e do sofrimento humano coabitam forçosa e eternamente com o azul belíssimo das praias, dos prédios e da alta sociedade carioca, estrutura que ainda hoje é responsável por manter o maior complexo de favelas das américas. Surge em primeiro plano a necessária interdependência entre favela-cidade de uma forma inaudita, mesmo contra a opinião de muitos. Caco confere uma história a essas pessoas a-históricas, dá nome, situa, evidencia que o "favelado" é alguém, que bandido náo é na esmagadora maioria das vezes vocação mas muito mais uma tática de sobrevivência e apesar da crítica equivocada que surgiu quando do seu lançamento, década atrás, que atribui à obra uma suposta rotulação e negativação daquele universo, na minha leitura é justamente sua honestidade jornalística que faz o caminho inverso: ao expor as mazelas e suas histórias sem máscaras, expor a própria história do surgimento daquele morro em especial, e por metáfora, de tantos morros espalhados pelo resto da cidade e do país, ele oferece com isso a chance para que em algum momento alguns de nós consigamos quem sabe reverter esse quadro, em algum lugar do tempo futuro, desde que isso comece agora, pra ontem.
E aqui vai um juízo de valor : Enquanto essas mudanças pra valer não ocorrem, sinto muito informar: a guerra civil iniciada há mais ou menos um século, vai continuar a céu aberto, porque suas estruturas continuam lá, da mesma forma como foram criadas.