: "BIRDMAN" : A Arte, entre a Náusea e o Absurdo






(Ensaio sobre cinema, filosofia e vida, de um ponto de vista Antropológico)


(...)Eu conseguia ouvir meu coração batendo. Eu conseguia ouvir o coração de todo mundo. Eu conseguia ouvir o ruído humano que nós, sentados lá, fazíamos, nenhum de nós se movendo, nem mesmo quando a cozinha ficou escura”. (Carver, Raymond. “Do que falamos quando estamos falando de amor”, (Iniciantes, 1981)
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INTRODUÇÃO
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REPRESENTAÇÃO E SUBJETIVIDADE
IMAGEM E CONSCIÊNCIA
LIBERDADE ABSOLUTA E EXISTÊNCIA
A NÁUSEA”  E A ANGÚSTIA QUE TAMBÉM É FUNDAMENTO ONTOLÓGICO.
DEUS CONTINUA MORTO e o REI ESTÁ NU
O ENGAJAMENTO COMO ATITUDE DESVELADORA DA REALIDADE HUMANA
ARTE RUPESTRE ,  TEATRO GREGO e CINEMA 
ANTROPOFAGIA E PEDRA-DE-TOQUE: O CINEMA COMO  “ARTE QUE SE ALIMENTA DAS ARTES”, E COMO ELEMENTO PRIVILEGIADO PARA O DESVELAMENTO DO MUNDO
BIRDMAN”, (A INESPERADA VIRTUDE DA IGNORÂNCIA).
A NÁUSEA” e “BIRDMAN”: paralelos entre os personagens ROQUENTIN e RIGGAN THOMSON 
A METALINGUAGEM E SEU PARALELO COM O MOVIMENTO DO “PARA-SI-PARA-OUTROS” SARTRIANO 
O CINEMA ENGAJADO : A ARTE CONTRA O ABSURDO DO NIILISMO e o PARADOXO DO “FRACASSO COMO POSITIVIDADE
BIBLIOGRAFIA






INTRODUÇÃO


Muito antes de chegar a escrever as primeiras palavras, o homem já desenhava. No belíssimo documentário “Caverna dos sonhos esquecidos” , rodado em 2010 dentro da “Caverna de Chauvet”, no sul da França, o cineasta alemão Werner Herzog nos mostra este  que poderia ser considerado o primeiro museu da humanidade: uma série de pinturas rupestres que se revelou uma das maiores descobertas arqueológicas já realizadas e que segundo estudiosos são as mais antigas representações gráficas que chegaram até nossos dias, posto que são oriundas de povos que habitaram o planeta há quase quarenta mil anos atrás. A um olhar curioso é  possível apreender sem dificuldades, através das impressionantes imagens de estilo predominantemente realista, muito acerca do ambiente e da forma de vida do denominado “homem primitivo”. Existem nítidos desenhos de partes de animais, em detalhes como cabeça, garras, presas ou  pele, além de perfis ou frontais de animais inteiros  como ursos, bisões, cavalos selvagens em perspectiva, leopardos, leões da montanha, rinocerontes e até mesmo extintos mamutes, estáticos ou em posição que sugere movimento. Há também luta entre animais e  algumas pinturas de   mãos  humanas , além de um pingente de pedra representado por uma estalactite que pende do teto baixo da caverna, desenhada em carvão figurando parcialmente uma mulher e um bisão  entrelaçados sugestivamente no mesmo desenho.  O que encanta sobretudo nessa arte, além do seu frescor, preservada durante tantos milênios pelo microclima interno do ambiente e por um acidente geológico que tornou a antiga entrada natural da caverna inacessível durante todo esse tempo para invasores ou as variações climáticas agressivas, é a sua ousadia estética, a riqueza dos traços, das cores e da concepção de movimento. A sua “modernidade”, por assim dizer, é desconcertante. Longe de serem rabiscos toscos ou pueris que pudessem ratificar o equivocado discurso acerca das limitações comparativas  do “homem primitivo” apregoado por algumas correntes teóricas que tendem a supervalorizar a evolução tecnológica no delineamento do ‘progresso”, há nos desenhos uma incrível complexidade e uma rara beleza.

Como se sabe,  a maioria dos desenhos foi realizada com carvão sobre pedra de fundo amarelo claro ou bege , raspada  muitas vezes previamente para uniformização. Em outros casos,  utilizava-se preparados com o próprio sangue de animais como tinta. Os materiais mais usados como aglutinante para as pinturas rupestres foram sangue, argila, excrementos humanos, látex de plantas, gordura e clara de ovos de animais. A cor era obtida misturando-se o pó de rochas, com destaque para o óxido de ferro, que tem a coloração vermelho-alaranjada.  A constatação de restos de fogueira no centro das câmaras, em posição estratégica quanto às paredes pintadas, é compreendida por muitos com a funcionalidade de , além de propiciar fisicamente uma maior aproximação e aquecimento dentro do grupo nas frias noites de inverno, possuir uma geometria intencional e estratégica  para projetar as sombras de seus corpos nas paredes onde estavam as pinturas, de modo que houvesse uma interação dinâmica entre as sombras dos ocupantes da caverna  e as imagens de animais na parede como numa projeção. Por diversas razões observadas “in loco” e por analogias com outros estudos sobre a era Paleolítica, sabe-se também que em geral essas cavernas não eram utilizadas como moradia permanente, mas apenas eventualmente, o que sugere sua utilização de forma cerimoniosa para rituais.

Nesses desenhos, a noção  de “movimento” e a representação para além da concepção meramente passiva  da figuração também se fortalece quando se observa em detalhes que alguns animais têm sombras e perfis de traços duplos ou triplos, como se tivessem três ou quatro pernas ou vários chifres, todos desenhados em proporção sequencial,  como nos mostra a rica filmagem de Herzog e os detalhes das fotos. Há  várias sequências de ilusão de movimentos de pernas ou chifres em posição de ataque ou corrida, sugerindo a nítida intenção de se criar a ideia sequencial e contínua como num filme.  Somando-se a essa experiência observada na Caverna de Chauvet  outras descobertas em diversos sítios arqueológicos ricos na arte rupestre espalhados pelo mundo, bem assim a analogia com relatos de viagem e estudos antropológicos realizados ‘in loco” sobre algumas tribos localizadas já entre os séculos XVII-XIX entre os nativos da América do Norte, Oceania e até mesmo no Brasil, povos que ainda nesta fase atual de sua existência cultuavam como tradição ritual a dança em torno das fogueiras, não é demais concluir que há quarenta mil anos atrás, em Chauvet, houve dentro daquelas cavernas a mais antiga  mistura da arte figurativa com suas pinturas e desenhos, sombras e ilusão de movimento com o teatro de sons e danças , criando o primeiro equivalente da experiência cinematográfica da humanidade de que se tem notícia. Um filme onde os próprios espectadores são simultaneamente diretores e atores,  interagindo entre si próprios, suas sombras e com os animais e os ambientes pintados nas paredes de pedra.

O achado arqueológico exibido no documentário de Herzog talvez tenha sido sob muitos pontos de vista o mais radical e importante por se tratar, até hoje, da mais antiga  arte paleolítica e da história do homem que chegou até nós. Entretanto, em diversas outras incursões nesse campo há  experiências igualmente comparáveis em magnitude, espalhadas por diversos pontos do planeta, ainda que mais recentes. A reprodução do conteúdo dos painéis parece seguir uma tendência: cenas de animais, caçadas, desenhos de perfis humanos estilizados, arco e flecha, lanças e fogueiras. Dentre essas imagens, existe um tipo, em particular, que está presente em várias dessas pinturas, embora assuma formatos estéticos diferentes: os painéis de mãos. Em Chauvet, estão logo na entrada antiga e principal da caverna,  dezenas de mãos impressas em vermelho escuro, tinta predominante a base de sangue. Uma impressão do formato da mão por inteiro, a chamada técnica de “positivo”, onde o artista simplesmente mergulha a mão na tinta e depois a pressiona sobre a parede, num grande e curioso painel  composto de dezenas de mãos sobrepostas, em cor vermelho escuro. Na “Cueva de las Manos”, sítio rupestre na Patagônia Argentina em que há impressionantes pinturas datadas de 10.000 anos , há painéis com centenas de mãos, curiosamente todas de mão esquerda, a maioria delas impressas por uma outra técnica, denominada “negativo” (estêncil), onde o artista primeiro coloca sua mão sobre a parede, e depois sopra a tinta sobre ela por um tubo, e quando a retira, deixa marcado apenas o formato delineado da mão, com a tinta em volta. Nesses painéis, que estão entre os mais belos já descobertos, há  mãos de todos os tamanhos, formatos e cores, pintadas tanto nas paredes quanto nos tetos das câmaras.  Curiosamente, esses desenhos de mãos também são encontrados, com variações, em diversos outros sítios. Às vezes isoladas, muitas vezes em blocos.  Quem são eles?  Velhos, jovens, mulheres, crianças? Como viveram aquelas pessoas cujas mãos emolduraram as paredes de pedra por toda uma eternidade inimaginável para nós, contemporâneos, que durou 40.000 anos? O que pensavam, como sentiam individual ou coletivamente, qual a intenção das pinturas e desenhos, o que esperavam da vida e quais eram suas maneiras de colocar em prática, no chamado “mundo real”, seus sonhos e realizações? Ou por  outro lado, é possível que o “mundo real” para eles, de forma muito diferente da maneira como hoje definimos o termo, não tivesse nada de concreto e fosse ainda habitado por deuses e entidades metafísicas abstratas ou corporificadas em  formato totêmico humano, animal, raio sol ou trovão?  Como celebravam as alegrias, como assimilavam suas dores e perdas, como se protegiam do frio, da chuva e das doenças? O que gostavam de comer,   como organizavam sua vida nas formas grupais de modo a sobreviver num ambiente hostil dentro de uma natureza sempre plenamente desfavorável ao humano? 

Essas pinturas, emblemáticos símbolos do ser que, consciente ou não da importância de seu ato, pintou as cavernas com sua própria identidade, são em essência a própria humanidade, aquilo de abstrato ou de concreto que permanece quando se pensa na nossa particular forma de habitar o planeta. Portanto, apesar de representarem de um lado a experiência única e insubstituível, personalíssima no tempo e no espaço enquanto atividade e expressão direta do indivíduo ou do grupo que as realizaram, de outro , de forma ambígua como ambígua fluída e indeterminada também é a presença do homem no mundo, aquelas mãos são também as minhas, são as mãos dos meus pais, dos meus bisavós, dos meus vizinhos. Aquelas mãos sou eu e também é o outro. São atestados vivos e coletivos de nossa presença no mundo, uma testemunha de nossas dores, alegrias, êxitos e fracassos, uma exasperada declaração de  vida, são gritos proferidos bem alto diante do universo, procurando respostas e indagando sobre a diferença e a singularidade que nós, humanos, representamos em face do mundo e da natureza, à qual, por um lado, estamos umbilicalmente ligados num pertencimento visceral desde que nascemos, mas ao mesmo tempo completamente desvinculados do ponto de vista existencial, a ponto de constituirmos, a nossa espécie, através da consciência e da cultura, uma categoria inteiramente apartada do resto dos animais, plantas e coisas, e até certo ponto estranhos dentro deste mesmo planeta repleto de vida.

Nesse olhar para longe e ao mesmo tempo tão perto, para nossas origens, não sabemos com exatidão a respeito do real significado ou dos usos de outras formas de expressão da humanidade em tão remotas eras, simplesmente pelo fato de que seu conteúdo real e objetivo não pode ser reconstituído. Não há como se reproduzir o som, a música, embora tentemos imaginá-la pelos fragmentos de instrumentos rústicos descobertos. Há descobertas esparsas e descontextualizadas de utensílios domésticos e fragmentos de armas, restos do que parecem ter sido rústicos instrumentos musicais como flautas de ossos, esculturas de madeira ou marfim e instrumentos percussivos. Por sua própria natureza mais primitiva e instintiva, portanto mais natural, sua fluência mais “fácil” do que a linguagem figurativa ou escrita dentro das aptidões humanas, é possível que mesmo antes da formação de uma linguagem verbal mais desenvolvida e provavelmente antes da melhor elaboração de uma figuração por imagens, a música tenha estado presente primeiro na vida desses antigos povos. De todo modo, nenhuma outra forma de arte parece ter sido tão elaborada, rica e importante no sentido da construção de uma narrativa histórica passível de ser legada às futuras gerações quanto as pinturas rupestres.  Todos aqueles desenhos e pinturas da Caverna de Chauvet, juntamente com as  outras descobertas espalhadas pelo planeta  que compõem os ricos achados arqueológicos de pinturas rupestres são o primeiro momento dramático de que se tem notícia sobre o homem tentando compreender figurativamente a si mesmo e documentando sua subjetividade na relação com o outro e com o mundo através da arte. É de difícil investigação ou talvez mesmo impossível a tarefa de tornar tangível a íntima motivação de cada artista que elaborou cada pintura , em cada um desses desenhos, como de resto é sempre difícil essa prospecção em qualquer tempo ou lugar. Quem pintou ou desenhou tais obras, embora tivesse por certo uma dada intencionalidade para o contexto em que viveu, contribuiu inexoravelmente para o desvelamento ou o encobrimento da realidade vivida com seu trabalho, de forma que a sua intencionalidade particular  estará sempre em segundo plano frente ao sentido individual ou  coletivo da apropriação de sua obra pelo olhar posterior, a partir do momento em que ela surge e de certa forma não mais lhe pertence.  No que diz respeito a este ensaio, o foco entretanto é outro: deixando temporariamente de lado especulações sobre a motivação última de cada indivíduo,  procuraremos analisar o efeito e o processo de construção da obra de arte a partir do momento em que foi criada e legada à humanidade, observando na expressão desse legado em que medida a atividade criadora é formadora de subjetividade, e também em que sentido essa subjetividade , tornando-se necessariamente olhar e experiência com o outro, é também inter-subjetividade a marcar em última instância a própria presença do homem na história.

Apropriando-nos, nesse intuito, de alguns  conceitos  elaborados pelo filósofo Jean-Paul Sartre (1905-1980), em particular da noção de subjetividade, a apreensão do objeto artístico neste caso não  dispensa a noção de intencionalidade,  mas passa a enxergá-la como uma determinada atitude que está inexoravelmente vinculada ao contexto social em que surge o artista. Na medida em que esse artista criador, ao realizar a obra, voluntária ou involuntariamente materializa uma corporificação qualquer,  que pode tomar tal ou qual imprevisível formato  ora composto de  tintas, carvão e estampados nas  paredes de pedra, ora na forma de esculturas, telas,  música, escrita, teatro ou cinema, nossa hipótese, ora concordando, ora divergindo, mas sempre seguindo o fundamental rastilho teórico sartriano, é que esse artista comporá, ao final, sabendo disso ou não, um determinado auto-retrato de si mesmo e  da própria sociedade à qual pertence, que no fundo  é  nada mais que a testemunha temporal de sua história,  enquanto grupo ou indivíduo, e essa obra material se tornará de fato arte no instante em que for  apropriada pelo olhar do outro. A partir desse trajeto, bom base no conceitual sartriano, principalmente aqueles elaborado nos livros “O que é subjetividade”, “O imaginário”, “A Náusea” e “Que é a literatura?”, a intenção é construir uma ponte para  chegarmos à  abordagem da arte, em geral, como um tipo de ação privilegiada no desvelamento da realidade do mundo e enquanto tal, em razão da sua natureza de linguagem e intersubjetividade, tornando-se potencialmente o melhor elemento para a compreensão de como se forma a consciência engajada na relação do homem com o mundo e do homem consigo mesmo, enquanto indivíduo e enquanto coletividade.

Por que Sartre, por que a escolha, em consequência, pela Fenomenologia como nosso guia e em alguns momentos por que a escolha por essa particular expressão da fenomenologia chamada politicamente, por assim dizer, de “Existencialismo” como fios condutores da análise pretendida neste trabalho? A resposta a nossos olhos é simples: É porque segundo nosso entendimento, corroborando uma vez mais  a visão que o próprio autor em estudo tem sobre a fenomenologia a partir de Husserl, em primeiro lugar, adotamos também o consenso de que foi com Husserl e a nova abordagem gnosiológica tornada possível para a filosofia, superando velhos paradoxos das escolas tradicionais, bem como a partir daí, essa via que simultaneamente recoloca  em termos ontológicos a presença do homem no mundo a partir da forma como ele  conhece o mundo e se reconhece nele, as lentes fenomenológicas tornam-se, no nosso entendimento, a única aproximação possível do pensamento filosófico com o tênue e frágil “desvelar” da obra de arte, sem que esta seja destruída ao final. Sobretudo a escolha pelo grande diferencial destas lentes em detrimento de outras, é porque vemos em Sartre e na via fenomenológica  uma essencial tentativa de resgate do poder da vida, da espontaneidade e criatividade humanas , além  da preservação de certa forma de encantamento, o “estranhamento” original que possivelmente fundou a filosofia na Grécia antiga, desse “Páthos” no melhor sentido em que os gregos entendiam essa palavra, que implica em sempre ter novos olhos para o mundo, um mundo dinâmico e mutante, que a cada segundo lança novos desafios para ser apreendido, interpretado ou recriado em novos significados que nunca se esgotam. Esse “Páthos” que se manifesta na produção do conhecimento e na estreita relação do homem diante do mundo mediado por uma intencionalidade que também é, por fim, curiosidade existencial e uma busca incessante pelos limites da vida enquanto esse conhecimento se dá, fazendo cair os antigos véus que embaçavam todas as possibilidades escolásticas enquanto regras imutáveis do pensamento  e que propunham determinar a forma definitiva e acabada as vias limitadas do ser. Como muito bem expressado pelo próprio autor, no famoso texto “ Uma ideia fundamental da fenomenologia de Husserl, é assim que surge a intencionalidade” como conceito-chave e condição do homem estar no mundo:


(...) Para Husserl e os fenomenólogos, a consciência que tomamos das coisas não se limita  em absoluto ao conhecimento delas.  O conhecimento ou ‘pura representação” é apenas uma das formas possíveis da minha consciência “de” tal árvore: posso também amá-la, temê-la, detestá-la, e essa superação da consciência por si mesma, que chamamos de “intencionalidade”, reaparece no temor, no ódio e no amor. Detestar outrem é ainda uma maneira de explodir em direção a ele (...). Husserl reinstalou o horror e o encanto nas coisas. Ele nos restituiu o mundo dos artistas e dos profetas: assustador, hostil , perigoso, com portos seguros de dádivas e amor”. (Sartre, 2005, p.55-57)


Nesse contexto, lançamos o foco sobre o “status” privilegiado da arte, e dentre elas sobre uma arte em particular, o cinema, como potencialmente a experiência contemporânea que apresenta um maior conjunto de recursos para solicitar o envolvimento e a liberdade do seu espectador no processo de construção e desvelamento do real. Para isso, utilizaremos como exemplo uma leitura possível  do filme “Birdman”,  filme recentemente realizado pelo cinema americano, como uma escolha pessoal dentre tantas outras formas de propostas e  linguagens possíveis, mas com o intuito de destacar na arte do cinema um formato privilegiado para colocar seu objeto e estabelecer uma determinada vinculação particularmente rica com o espectador, uma vez que ele geralmente se utiliza, de uma só vez e simultaneamente, de elementos de som, imagem, texto e movimento para sua realização, tornando a nosso ver, mais ricas e multifacetadas as possibilidades de estimular ou solicitar a participação do olhar do outro. A partir daí, imediatamente um questionamento se coloca: nessa perspectiva do tema proposto por Sartre em “O imaginário”, onde a arte surge como uma atividade capaz de solicitar, através da materialidade que compõe esse analogon   a liberdade do outro através da imaginação, em que sentido ela própria se constrói enquanto ação capaz de desvelar ou encobrir o mundo ? Ou seja: se a arte pode ser uma ação desveladora sobre o mundo, e admitimos que o  cinema, sem dúvida,  é um tipo de arte, todo cinema, toda produção cinematográfica será capaz de trazer ou colocar-se de tal modo que seu apelo à liberdade do espectador surja necessariamente? Ou antes, em determinado olhar do cinema, como de resto pode ocorrer também em qualquer tipo de atividade artística, isso se coloca exatamente para servir a um fim contrário?   Nesse trajeto, sempre utilizando as lentes de Sartre como pano de fundo teórico, tentaremos pensar a subjetividade humana a partir da arte, mas também compreendendo os elementos da arte que resultam historicamente como reflexo direto de uma dada subjetividade humana, coletiva ou individual no tempo,   numa via contínua e de mão dupla, que coincide com o próprio ser do homem dentro da sua temporalidade histórica, em linhas gerais o que Sartre denomina  “Ser-Para-si”, e mais ainda na extensão do conceito ao “Ser-Para-outro”, porque seria impossível admitir o homem em seu mundo sem que isso pressuponha imediatamente uma forma de relação com o outro, com a presença e o olhar do outro na definição mesma do “que eu sou”, e sem pressupor ainda alguma forma de arte para intermediar essa relação.


REPRESENTAÇÃO E SUBJETIVIDADE


No tema escolhido para abertura deste ensaio, a contemplação dos fabulosos desenhos, não somente na caverna de Chauvet documentada por Herzog, mas também dos encontrados em  Altamira , Pont D’arc ou  Lascaux dentre outras espalhadas por vários pontos do planeta, todos representantes de períodos, povos, culturas e épocas diferentes, podemos saber muito sobre a forma de vida antiga da humanidade, mas também muito nos é velado, como de resto ocorre com muitos objetos artísticos quando interpelados pelo nosso olhar, pela nossa presença. Segundo Sartre, essa ambiguidade se explica porque a riqueza da experiência original perceptiva não poderá jamais ser “revivida” em toda a sua plenitude apenas pela figuração da pintura ou desenho. Tal experiência do mundo foi provavelmente testemunhada apenas pelos próprios “artistas”, no momento de materialização, corporificação do seu objeto. Para quem está ali, hoje, na caverna, contemplando os desenhos e pinturas ou de longe, vendo-os através das imagens digitais por um filme gravado há mais ou menos cinco anos, a experiência é de outra natureza, pois contemplamos formas materiais por ele denominadas “Analogons”. A partir daí, construímos imagens reflexivas ou imaginativas, mas nunca reconstruímos a experiência original. Ainda assim, mesmo que em termos absolutos esse conhecimento seja impossível, é possível contudo identificar em diversos formatos, cores e perspectivas da sua figuração, além da “escolha” dos elementos específicos feita por aqueles povos para representação, muitos outros aspectos da sua vida através da sua arte. Podemos “ler” nos desenhos sobre caçadas a importância do aspecto coletivo das manifestações, o caráter nômade dos grupamentos e a dependência da proteína animal para sua subsistência enquanto ainda não se tornavam povos sedentários. É possível também identificar alguns tipos de armas ou instrumentos, a  preferência pela realização de desenhos dentro de grutas e outros locais protegidos em vez de ao ar livre, o que nos leva logo a indagar qual o papel central ocupado pelas grutas e cavernas na vida de povos nômades que sabidamente não construíam habitações permanentes, e ainda através do estudo mais aprofundado, descobrir até mesmo os equipamentos utilizados nas pinturas e a composição de suas tintas, além da datação do período em que foram feitas, suas diversas épocas sobrepostas, uma vez que tais desenhos, mesmo em cada caverna ou gruta tomada individualmente, não foram produzidos todos de uma só vez, numa mesma época, e certamente não apenas por uma pessoa ou mesmo apenas uma única geração de uma mesma tribo ou clã. Todavia, do mesmo modo como “vemos” boa  parte das informações  a partir do que é informado diretamente pelos traços, cores e formatos, por outro lado é impossível obter de imediato outras informações sobre muitos outros aspectos de natureza mais complexa como a religiosidade dos grupos, sua relação com os deuses ou os elementos da natureza. Como há poucos desenhos de vestimentas, não é possível “ver” o tipo de trajes que comumente usavam, e se havia distinção de castas, algum sistema hierárquico, não sabemos como era a regular divisão de tarefas dentro daquela dada sociedade, nem mesmo a repartição das riquezas ou a administração pública e privada de cada grupo no seu cotidiano. Não sabemos das preferências e gostos individuais dentro de cada núcleo familiar nem as características que o compunham. Não sabemos sequer a natureza e a finalidade específica dos desenhos espalhados por tantos lugares do nosso planeta, uma vez que essas pinturas datam tão longinquamente.  Seriam memória coletiva, glorificação de feitos heroicos passados ou uma  representação visual de rituais praticados previamente como preparação para caçadas futuras,  um registro de natureza espiritual pedagógica ou apenas lúdica? Talvez, num contexto onde a linguagem verbal ainda era pouco desenvolvida, tenha sido apenas uma forma de legar uma narrativa visual para suas gerações seguintes, com o objetivo de criar uma coesão que fortalecesse cada vez mais o grupo? De todo modo, a experiência artística, quer seja uma mera “fruição estética” ou uma “observação fenomenológica” que procura se aproximar do seu objeto aos poucos, com maior profundidade, situação que nos é permitida pela contemplação das pinturas legada na forma de análogons nas paredes das cavernas, não são a experiência original, irrecuperável, que aqueles povos vivenciaram, e nossas imagens construídas de forma reflexiva ou criadora imaginativa sobre o que se vê , por si só, operam uma espécie de redução, num primeiro momento, porque a realidade múltipla e complexa, a experiência  da aparição do fenômeno que foi vivenciado pelos povos pintores é reduzido em sua multiplicidade de objetos (cores, traços, texturas) através dos analogons, e num segundo momento, sem contudo recriar a história original ou mesmo sem conferir qualquer tipo de novo atributo ao objeto. Essa “observação fenomenológica” também pode ser expandida do ponto de vista imaginativo, quando nossa consciência “constrói” novas possibilidades através da imagem que vivencia valorativamente, e essa atividade imaginativa, criadora, pela liberdade inafastável que sua existência pressupõe, é que em última instância vai caracterizar a maneira particular do homem estar no mundo. Toda consciência necessariamente é composta desses “três estágios”, que na verdade não são coisas, lugares ou nenhum tipo de substância, mas apenas caracterizam um tipo de ação, ou seja, a forma da consciência “estar presente” ao mundo: a percepção, a reflexão e a imaginação.

Do ponto de vista deste ensaio, o que nos interessa no momento na observação de tais objetos é que não sabemos a rigor, em nenhum instante, apenas pela contemplação visual de tais pinturas, qual a influência que essa espécie de arte exercia sobre o homem que as pintou. Entretanto, é razoável pensar pelo que podemos perceber, e se adicionarmos observações e estudos paralelos mediados por outras formas de conhecimento científico, que tais desenhos por sua magnitude, temática e qualidade não tenham passado despercebidos  ou representado algo banal ou sem valor pelos indivíduos e povos antigos que os criaram, bem assim é bastante sensato concluir que as próprias escolhas materiais, imaginativas e estéticas adotadas pelos artistas paleolíticos, a sua forma da criação, as noções de proporção, cores, os objetos, tudo isso revela subjetividades eloquentes sobre esses mesmos artistas e sobre o contexto em que vivia seu povo, e ao mesmo tempo isso denuncia suas características determinadas enquanto indivíduos e principalmente enquanto sociedade, numa relação de reciprocidade dinâmica entre indivíduo e grupo social que é visceral e se expressa tantas vezes involuntariamente . Essa noção de subjetividade, adotada para o propósito deste trabalho de forma explícita ou subentendida, está sempre vinculada ao conceito como exposto por Sartre, principalmente na obra “O que é subjetividade” (Ed. Nova Fronteira, 2014):


(...) a subjetividade é interiorização e retotalização, isto é, no fundo, para retomar termos mais vagos, e ao mesmo tempo, mais conhecidos: vive-se; a subjetividade é viver o seu ser, vive-se o que se é, e o que se é em uma sociedade, pois não conhecemos outro estado do homem; ele é precisamente um ser social, ser social que, ao mesmo tempo, vive a sociedade inteira do seu ponto de vista. Considero que um indivíduo, seja ele quem for, ou um grupo, ou um conjunto qualquer, é uma encarnação da sociedade total enquanto ele tem de viver o que ele é. Aliás, é apenas porque podemos conceber o jogo dialético de uma totalização de envolvimento, isto é, de uma totalização que se estende ao conjunto social, e de uma totalização de condensação, o que chamo de encarnação, que faz com que cada indivíduo seja, de certo modo, a representação total de sua época. É apenas por causa disso que se pode conceber uma verdadeira dialética social; em tais condições , considero que essa subjetividade social é a própria definição de subjetividade. A subjetividade no nível social é uma subjetividade social. O que isso quer dizer? Quer dizer que tudo o que um indivíduo faz, todos os seus projetos, todos os seus atos, tudo o que ele suporta também, só reflete—mas não no sentido escolástico do reflexo de certa tradição marxista--, só encarna, se preferirem, a própria sociedade. Assim Flaubert escreve Madame Bovary! Que faz ele? De um lado, quer traçar uma descrição objetiva de determinado meio, o meio rural da França nos anos 1850, com suas transformações, o aparecimento do médico que substitui o atendente sanitarista, a ascensão de uma pequena burguesia não religiosa etc. Tudo isso, ele quer descrever perfeitamente consciente. Mas, ao mesmo tempo, quem é ele próprio que está escrevendo assim? Ele nada mais é que a encarnação de tudo isso. Na realidade, era filho de médico, filho de médico que vivia no campo, ele mesmo morava fora da cidade de Rouen, num lugarejo chamado Croissé, tinha ligações com o universo dos proprietários rurais, não investia seu dinheiro como era o costume na época, em transações industriais, ele era precisamente o que descreve. Vai ainda mais longe porque, na medida em que é rico e vítima de sua família, continuando no ambiente doméstico, dominado primeiro pelo pai e depois pela mãe, em situação bem parecida com a situação feminina da época, ele projeta seu ser na heroína do livro. Ou seja, há duas estruturas nesse livro, que são a mesma coisa, porque só se totaliza o ser social que se é, e o mesmo tempo, se descreve a sociedade que se vê! O que é muito interessante no caso de Flaubert é que haja não uma sensibilidade extraordinária, fora do comum, transformada por vícios ou por uma infância particularmente sinistra, mas uma vida real da época que se projeta sob uma forma subjetiva em um livro que pretende descrever objetivamente a época. (...) Se eu escrevesse um romance sobre o que me cerca, o romance seria eu próprio, como uma projeção e, ao mesmo tempo, tudo o que me cerca; aliás, eu sou aquilo que me cerca, de modo que encontramos aqui uma retotalização prática que é a mesma que encontraremos em toda parte”.    (Sartre J.-P. , O que é a subjetividade?, 2015, p. 99-101)


Ressalte-se  contudo, que ao utilizarmos o exemplo acima, uma simples tentativa de se compreender por comparação e gradação histórica o alcance de alguns possíveis significados da arte paleolítica, porque esta é sobretudo uma arte visual e o primeiro registro documentado, além de uma narrativa extremamente rica acerca da atividade artística do homem sobre a Terra, o que ora se pretende, embora possa haver em nossa análise elementos emprestados de outros campos do saber apenas para propiciar uma ordenação discursiva, não pretendemos abranger em profundidade o campo de discussão próprio da Antropologia, da Arqueologia ou enveredar pelas inúmeras teorias estéticas da arte, mas sim permanecer no âmbito das considerações filosóficas sobre a relação entre a experiência estética, tomada como sentido genérico e característico da expressão humana, forma inafastável de estar no mundo, e seu rico papel enquanto formadora da subjetividade individual e coletiva, e simultaneamente compreender o objeto de arte como ação: produto e produtor dessa subjetividade na história, uma vez que em algum momento sua própria narrativa se constituirá autonomamente, por diversas formas, a partir desse tipo especial de “fazer”,  uma ação privilegiada dentre outras para a compreensão da plenitude da vida e do homem.

Seguindo por esse viés conceitual, é necessário ponderar inicialmente que nossa leitura de Sartre, tanto na obra   “ O Imaginário” como  o “Ser e o nada” nos autoriza a inferir que embora o “problema” e o “projeto” ontológico propostos pelo autor, do qual somos partidários e que sem dúvida colocou Sartre definitivamente como um dos mais fortes fundamentos para o ramo de estudos que se convencionou chamar de “crítica e subjetividade”, esse mesmo “projeto ontológico” que ainda hoje é equivocadamente motivo para tantas divergências, polêmicas e propostas alternativas de compreensão no terreno das “humanidades”, notadamente depois da acepção do Estruturalismo, por outro lado o problema temático e histórico do conhecimento dentro da tradição filosófica nos parece definitivamente resolvido, uma vez que a Fenomenologia foi capaz de superar a velha dicotomia entre sujeito x objeto da forma como o pensamento clássico a propunha, com ênfases equivocadas ora no “mundo material” que lhe atribuía uma causalidade e autonomia incabíveis, ora no psicologismo que situava “na mente” as possibilidades de vir a conhecer o mundo, na medida em que essa mente de certa forma criaria internamente, de forma reflexiva (de reflexo, imagem espelhada e não de reflexão, processo de mediação), aquilo que percebe no mundo exterior. Em Sartre,  as questões essenciais da gnosiologia clássica  deslocam-se definitivamente para a abordagem do fenômeno, pois não há mais um mundo “oculto” pelo véu da ‘coisa-em-si” e a própria consciência não é mais “coisa” nem “substância”, mas relação.


O pensamento moderno realizou progresso considerável ao reduzir o existente à série de aparições que o manifestam. Visava-se com isso suprimir certo número de dualismos que embaraçavam a filosofia e substituí-los pelo monismo do fenômeno (...). O fenômeno é o que se manifesta, e o ser manifesta-se a todos de algum modo, pois dele podemos falar e dele temos certa compreensão. Assim, deve haver um fenômeno de ser, uma aparição do ser, descritível como tal. O ser nos será revelado por algum meio de acesso imediato, o tédio, a náusea, etc, e a ontologia será a descrição do fenômeno de ser tal como se manifesta, quer dizer, sem intermediários”. (Sartre J.-P. , O Ser e o Nada, 8. ª ed, 2000, p. 15-19)

Dessa forma, em consonância com as palavras do autor nas citadas obras,  este ensaio não pretende, por considerar plenamente resolvida a questão, em momento algum explorar ou abordar qualquer possível “fenomenologia da percepção” ou “teoria do conhecimento” quando se propõe a analisar uma obra de cinema como meio para introduzir e mostrar a relevância e atualidade das lentes Sartrianas como leitura do mundo. A consciência, afinal, não é um lugar nem uma substância, como já foi dito com muita propriedade. É uma relação que pressupõe a existência de  sensações e imaginação envolvendo homem e mundo e o homem consigo mesmo, num processo contínuo e infinito,  mas ao mesmo tempo um processo histórico e temporal que sempre assumirá materialmente esta ou aquela característica preponderante, porque o contexto é algo que não se pode perder de vista. Afinal,  “Toda consciência é consciência de alguma coisa”.  O objetivo aqui é  apenas ressaltar como essa importante mudança de eixo na formulação do problema do conhecimento que por sua vez muda radicalmente o “status” do homem no mundo, recolocando a questão do ser através de nova compreensão do conceito de consciência, e a partir dela, os desdobramentos necessários dos conceitos de liberdade, engajamento e má-fé, tendo a arte como mediador entre homem e mundo, e o homem para consigo mesmo, através dos outros.



IMAGEM e CONSCIÊNCIA


Para Sartre, a imagem é um ato, oriundo de uma intencionalidade da consciência, posto que esta não é uma coisa, mas sim uma relação :


Em consequência, diremos que a imagem é um ato que visa em sua corporeidade um objeto ausente ou inexistente, através de um conteúdo físico ou psíquico que não se dá em si mesmo, mas a título de representante analógico do objeto visado(...) Não se pode estudar à parte a imagem mental. Não há um mundo de imagens e um mundo dos objetos. Mas todo objeto, quer se apresente á percepção, quer apareça ao sentido íntimo, é suscetível de funcionar como realidade presente ou como imagem, segundo o centro de referência escolhido. Os dois mundos, o imaginário e o real, são constituídos pelos mesmos objetos; só variam os agrupamentos e a interpretação desses objetos. O que define o mundo imaginário tanto quanto o universo real é uma atitude da consciência”.  (Sartre J.-P. , O Imaginário, 1996, p. 37)


Para compreender a real extensão do conceito de imagem e sua estreita vinculação com a consciência,  é necessário também a explicitação do sentido de consciência. Para Sartre,  seguindo a linha fenomenológica traçada por Husserl, “Toda consciência é consciência de alguma coisa”, sempre, e há vários tipos de consciência que necessariamente surgem na experiência do homem com o mundo, todas formas de ação de uma mesma consciência. Sartre mostra uma consciência de percepção, num primeiro momento,  dada pela apreensão imediata dos objetos que aparecem aos sentidos. As inter-relações existentes entre as coisas no mundo são infinitas, impossíveis de serem apreendidas em sua totalidade. Dessa forma, a percepção assimilará do objeto apenas determinadas informações que constituirão aquilo que podemos conhecer sobre a realidade.  Mesmo que sejamos expostos aos mesmos objetos novamente,  certamente surgirão outras informações, novas formas de perceber uma mesma realidade, mas nunca será possível a apreensão absoluta de uma totalidade. A partir daí, a consciência que não é lugar nem coisa, sai do comportamento “ativo” de investigação e assume atitude um pouco mais “passiva” , uma atitude de reflexão sobre o objeto que lhe foi dado, de uma maneira particular, aproximando-se dele e refletindo sobre si mesma. Mas nossa consciência, justamente por não poder conhecer os objetos da realidade de uma forma pura ou absoluta, pela infinitude de relações de que o real é composto, cria uma outra forma de apreender os dados da experiência, ao agrega às percepções valores emocionais, afetivos: a consciência imaginativa. É principalmente sobre esta última forma de consciência que Sartre vai desenvolver suas teses na obra “O imaginário”. Imaginar é negar, de certa forma, a realidade pura do objeto no mundo apreendido pela percepção, à medida em que a consciência humana sempre vai valorar esse processo com  características emocionais, individuais e únicas na forma de imagens e informações particulares para cada conhecimento assimilado. Imaginar é perceber de uma maneira completamente particular, individual, afetiva e única também por ser pertinente á história de cada um, esta ou aquela maneira específica de se relacionar com o objeto em questão. E como regra indissociável, uma forma de se livrar de todo psicologismo ou idealismo, está claro para Sartre desde sempre que essa imaginação criadora não altera a existência do objeto percebido. Dessa forma, em termos absolutos, para Sartre a Consciência, à medida principalmente em que é imaginativa, possui total liberdade, porque podemos fazer o uso que quisermos dela, podemos fazer surgir o objeto para nosso imaginário, ele estando presente , ausente ou inexistente,  tornando desnecessária a repetição da experiência original da percepção do real como única fonte de conhecimento.

Assim ratifica-se uma vez mais a proposta fenomenológica de superação da antiga gnosiologia clássica na bipolarização entre sujeito x objeto, pela independência: a imagem de minha consciência imaginativa não é o objeto, não é a realidade exterior nem lhe causa qualquer movimento ou ação, alteração de seus atributos físicos. Contudo, pode ocorrer a situação onde minha imagem se altere  a qualquer momento por uma mudança no objeto, temporalmente, mas sem que isso apresente  minha consciência como um mero “reflexo” do que se passa com ele, uma vez que na consciência mesmo não há nada, ela é apenas relação com seus objetos. Consciência é na verdade a relação entre o observador e aquilo que ele vive como experiência . Por óbvio, não temos como conferir atributo de realidade baseando-nos exclusivamente nas nossas imagens mentais. A consciência imaginante é criativa e livre portanto, porque “recria” os objetos espontaneamente. Toda consciência também é afetividade, espontaneidade e motivação, quando imagina:


(...) Uma consciência é inteiramente síntese, íntima de si mesma: é no mais profundo dessa interioridade sintética que ela pode juntar-se, por um ato de retenção ou de protensão, a uma consciência anterior ou posterior. Melhor ainda: para que uma consciência possa agir sobre outra consciência, é preciso que seja retida e recriada pela consciência sobre a qual deve agir. Não se trata jamais de passividade, mas de assimilações e desassimilações internas no seio de uma síntese intencional que é transparente para si própria. Uma consciência não é causa de outra consciência: ela a motiva (...) A síntese da imagem vem acompanhada de uma consciência muito forte de espontaneidade, de liberdade, poderíamos dizer”. (Sartre J.-P. , O Imaginário, 1996, p. 44-48)


Frisando o que já foi mencionado na abertura deste Ensaio, a observação das pinturas do período paleolítico incita a muitos questionamentos. Tais respostas, quando são alcançadas, o são sempre, ou por intermédio da imaginação criativa, que desenvolve uma narrativa paralela ao que está sendo visto, ou por meio de uma forma reflexiva, onde a consciência recorre ao auxílio de outras espécies de conhecimento  ou outras ciências pela  mediação e formulação das  probabilidades, hipóteses e teorias que preenchem as lacunas do que não está imediatamente à disposição dos sentidos ou da percepção sobre seus reais objetos, já perdidos no tempo. De todo modo, não podemos, segundo Sartre (O Imaginário), para alcançar qualquer resposta, recorrer mais à percepção original do  objeto que deu origem às pinturas simplesmente porque não o temos mais diante de nós, no tempo nem no espaço. Temos apenas sua imagem. E de outro modo, também essa experiência original não é mais a única possível para que haja alguma espécie de vinculação entre o espectador e o objeto que se observa, uma vez que essa  “imagem” surgiu como itermediação.  Para nós,  contemporâneos, também não estão mais imediatamente ao sabor de nossa percepção todas as infinitas e irredutíveis situações reais vividas por cada um daqueles indivíduos ou grupos representados nesses verdadeiros painéis artísticos. Não sabemos nem mesmo se elas eram uma figuração de algo que se passou na vida do artista ou uma preparação para algo futuro. De todo modo,  somente quem poderia tê-la experienciado originalmente foi o próprio artista-ancestral (“homem primitivo”) que a viveu, em algum momento de sua vida, e dessa forma tentou recriar como registro de um passado perceptivo ou como augúrio  de um futuro imagético essa experiência sob a forma de uma cópia material do objeto de suas percepções nas paredes das cavernas, ainda que essa experiência de desenhar ou pintar o que viu ou imaginou, por si só, opere um tipo de redução sobre todas as possibilidades do real. Segundo nossa leitura de Sartre, representar por imagens é irremediavelmente reduzir a realidade absoluta intangível do mundo, portanto a imagem será sempre menor e menos rica do que o objeto real da percepção, num primeiro momento, até que a imaginação se apodere da ação, recriando novos significados para o que se vê. Os outros que vêem as pinturas posteriormente, sempre as terão como referência entre aquele objeto real fruto da percepção de alguém e a imagem que formarão a partir daí, subjetivamente (intelectual, existencial e afetivamente) pela relação instaurada por um olhar que vê o desenho mas também vê a si mesmo, enquanto consciência.   O objeto que faz a ligação entre o imaginado e o real é conceituado  por  Sartre, na definição de “Analogon” :


(...) Empregamos três procedimentos para reencontrar o rosto de Pierre. Nos três casos, descobrimos uma “intenção”, e essa intenção visa, nos três casos, o mesmo objeto. Esse objeto não é nem a representação nem a foto, nem a caricatura: é meu amigo Pierre. Além disso, nos três casos, viso o objeto da mesma maneira: é no terreno da percepção que eu quero fazer aparecer o rosto de Pierre, que quero “torná-lo presente’. E, como não posso fazer surgir sua percepção diretamente, sirvo-me de uma certa matéria que age como um análogon, como um equivalente de percepção. (...) Em consequência, diremos que imagem é um ato que visa em sua corporeidade um objeto ausente ou inexistente, através de um conteúdo físico ou psíquico que não se dá em si mesmo, mas a título de “representante analógico” do objeto visado (...)”.   (Sartre J.-P. , O Imaginário, 1996, p. 34-37)

Portanto, esse “analogon” que nada mais é que um “equivalente de percepção” sempre será representado pelo objeto de arte independentemente da intenção de seu criador, porque é isso que permite a transição entre a abstração criadora para materialidade da imagem, e vice-versa. A rigor não sabemos, a respeito dessas pinturas, se para o artista a experiência estética íntima foi perceptiva  para a realização de uma dada pintura, em particular, num primeiro momento quando provavelmente observou os animais na natureza ou atividades de caçadas cuja aparência iria reproduzir ou imaginativa num segundo momento, enquanto estava na caverna com seu carvão e sua tinta, tendo como painel as próprias paredes e como rascunho a consciência dinâmica de uma cena-objeto real percebida que  depois tornou-se imagem ou, ao contrário, baseado em observações anteriores do mundo à sua volta,  primeiro ele imaginou uma cena ou uma caçada provavelmente bem sucedida a se realizar no futuro, e apelando a um recurso de memória e revivamento de sua percepção daqueles objetos , bisões, leões, mamutes, essas imagens surgiram novamente para ele não como uma renovação da percepção original de um objeto que não se encontra mais presente no local e no momento, mas como um recurso da consciência reflexiva e imaginativa que traz-lhe novamente a imagem para possibilitar sua criação artística. Para Sartre e a fenomenologia, evidentemente que a imagem do bisão não é o bisão real, nem é a consciência em sua atividade perceptiva, uma vez que seu objeto real não se encontra mais presente, mas a imagem formada, daquele bisão, ou da particularidade de um bisão com tais e quais características físicas específicas é resultado de uma  atuação reflexiva e criativa de uma consciência que pode pensar a si mesma e à própria experiência.  Na condição de cenas reais percebidas, as experiências humanas cuja figuração as pinturas retratam seriam  compostas de uma quantidade infinita de detalhes, de riquezas de formas, cores, conteúdos, movimento, cheiros e sons que jamais poderiam ser inteiramente transpostos  representativamente para a própria cena pintada nas paredes e apreendida como imagem. O processo consciente de formação da imagem, por si só, atua de forma a reduzir a infinitude de dados presentes na percepção da realidade.  Todo o resto, tanto os antigos que eram os contemporâneos dos homens ou mulheres que realizaram essa arte  quanto os que vieram depois , e isso vale também para nós mesmos, situados a quarenta mil anos mais tarde, os desenhos são apenas símbolos, representações ou “analogons” como mencionado acima. Uma referência simbólica material a partir da qual determinada forma é  utilizada por um criador, um artista, para se comunicar com um outro observador.



LIBERDADE ABSOLUTA E EXISTÊNCIA



Uma vez que é através da imaginação (imaginário) que o homem “nega” o mundo e o conhecimento como mera passividade, à medida em que exerce ativamente a criação sobre tudo o que vê (experimenta), está, dessa forma, colocada definitivamente pelo autor a questão da liberdade, que é dupla: gnosiológica, porque desafia e supera a tradição da teoria do conhecimento dentro da escola filosófica, e ao mesmo tempo em termos ontológicos, porque é uma liberdade absoluta e real, intrinsecamente vinculada com a forma de surgir o homem no mundo. O homem, em certo sentido, se confunde com a liberdade, ele “é” liberdade, para Sartre, condição esta da qual sequer tem “liberdade” para deixar de ser. Se nossa consciência não é a causa primeira e última das alterações dos atributos dos objetos, e ao mesmo tempo se não somos  meros receptores passivos ou escravos dos objetos que há no mundo, é  a nossa liberdade de fugir aos condicionamentos externos de toda natureza que nos recoloca o mesmo mundo enquanto ilimitadas possibilidades. A intencionalidade, nesse contexto, assume papel preponderante, e sempre virá “carregada” com formas “não-puras” de conhecimento, como se fosse apenas um conhecimento frio, lógico, proposicional. O fato de se pensar “toda consciência é consciência de algo” revela sua intencionalidade e a sua capacidade de pôr um objeto (consciência tética, posicional). Contudo, uma vez que ela tem a capacidade universal de pôr esse objeto, simultaneamente ela se torna não-posicional (não-tética) com relação ao que está ao seu redor (pano de fundo e horizontes). Esse importante termo que implica em movimento da consciência de aproximação ou afastamento do seu objeto é muitas vezes comparado com “atenção” ou “foco”, mas não sem um empobrecimento conceitual.


Imaginem agora uma sequência encadeada de explosões que nos arrancam de nós mesmos, que não deixam a um “Nós mesmos” sequer o ócio de se formar atrás delas, mas que nos jogam, ao contrário, além delas, na poeira seca do mundo, sobre a terra rude, entre as coisas; imaginem que somos assim repelidos, abandonados por nossa própria natureza em um mundo indiferente, hostil e recalcitrante. Vocês terão captado o sentido profundo dda descoberta que Husserl exprime nessa famosa frase: “Toda consciência é consciência de alguma coisa”. Não é necessário mais do uqe isso para pôr termo à filosofia aconhegante da imanência, na qual tudo se faz por compromisso, por trocas protoplasmáticas, por uma morna química celular. A filosofia da transcendência nos joga na via expressa, entre ameaças, sob uma luz ofuscante. Ser, diz Heidegger, é estar-no-mundo. Compreendam esse “estar-no” como um movimento. Ser é explodir para dentro do mundo, é a partir de um nada de mundo e de consciência para subitamente explodir-como-consciência-no-mundo. Se a consciência tentar se reconstituir, coincidir enfim consigo mesma, então imediatamente, a portas fechadas, se aniquilará. Essa necessidade da consciência de existir como consciência de outra coisa que não ela mesma, Husserl a chama de “intencionalidade. (...) essa superação da consciência por si mesma, que chamamos de “intencionalidade”, reaparece no temor, no ódio e no amor. Detestar outrem é ainda uma maneira de explodir em direção a ele; é encontrar-se subitamente diante de um estranho cuja qualidade objetiva de “odiável’ vivemos e sofremos antes de tudo. Eis que essas famossas reações “subjetivas’ – ódio, amor, temor, simpatia – que boiavam na malcheirosa salmoura do Espírito de repente se desvencilham dele: são apenas maneiras de descobrir o mundo. São as coisas que subitamente se desvendam para nós como odiáveis, simpáticas, horríveis, amáveis. Constitui uma propriedade dessa máscara japonesa ser terrível – uma inesgotável e irredutível propriedade que constitui sua própria natureza --, e não a soma de nossas reações subjetivas a um pedaço de madeira esculpida. Husserl reinstalou o horror e o encanto nas coisas. Ele nos restituiu o mundo dos artistas e dos profetas: assustador, hostil, perigoso, com portos seguros de dádiva e de amor. (...) afinal de contas, tudo está fora, no mundo, entre os outros. Não é em sabe-se lá qual retraimento que nos descobriremos: é na estrada, na cidade, no meio da multidão, coisa entre as coisas, homem entre os homens”. (SARTRE, “Situações I”, Críticas Literárias, pg 56-57, Ed. CosacNaify, 2005, S. Paulo-SP)  


Nesse caminho para a melhor compreensão da consciência e sua relação com a imagem e posicionamento como mediadores do mundo, surgem importantes conceitos como o  “Ser-em-si,” o “Ser-para-si” e ampliando-se este último no que diz respeito à importância fundamental do aspecto de inter-subjetividade presente nesse processo, Sartre introduz a noção de  “Ser-para-outro” , elemento chave para a tese central deste Ensaio. Para Sartre essas são as formas de aparição, a maneira como surgem as coisas e o homem no mundo, e  como eles se inter-relacionam entre si. A intencionalidade da consciência desenvolve um papel fundamental nessa relação que se estabelece a partir daí, uma vez que a condição de o homem estar no mundo do ponto de vista gnosiológico inaugurado pela fenomenologia Husserliana é fundante e indissociável de sua existência:


A consciência é fundamental para a realidade humana, de acordo com Sartre, não só porque os seres humanos são necessariamente conscientes, mas porque uma explicação completa da consciência implica explorações do seu sujeito, dos seus objetos e das suas modalidades – e essas últimas produzem uma descrição totalmente completa do ser dos seres humanos como o que Heidegger chamou de “ser-no-mundo”: sujeitos livres corporais imersos em um mundo intersubjetivo de objetos significativos  e dotados de valores. Isso ajuda a explicar por que, ás vezes, Sartre usa, de maneira intercambiável, os termos “consciência” e “realidade humana” e por que seu termo técnico “ser-para-si” parece algumas vezes referir-se estreitamente à consciência e outras vezes ao ser humano em geral. Por que, fora o precedente histórico de Hegel, Sartre escolhe esses termos particulares “ser-para-si” e “ser-em-si”? O fato de que toda consciência é consciência de algo é um fio condutor através desse labirinto. O ser-em-si, Sartre nos diz, é em si mesmo, ao passo que o ser-para-si não é. Do fato de que a consciência é de algo podemos inferir que tem um ‘dentro’. Ela é apenas esse ser para além de si mesma. Como uma relação entre um sujeito e um objeto, a consciência não pode existir sem algo para preencher o espaço vazio. Sartre, algumas vezes caracteriza a consciência como uma “falta perpétua’. Seres-em-si, em contraste, “são completos neles mesmos”, pois não lhes falta nada”. (Sartre, Uma Introdução. MORRIS, Katherine J., Artmed Ed. , São Paulo, 2009, pg 85-87).  


Ainda a respeito do conceito do “Para-si”, é esclarecedora a abordagem do professor Gerd Bornheim , que introduz a principal motivação de Sartre para a criação daquela que é considerada sua maior obra filosófica: “O Ser e o Nada. Ensaio de ontologia fenomenológica”:


O para-si, o que é ? Sartre desenvolve seu pensamento de modo análogo às suas reflexões sobre o em-si. Em ambos os casos trata-se de partir de um plano fenomenológico que é abandonado, gradativamente, a favor da busca do fundamento. Assim como a análise do fenômeno apresenta caráter regressivo, cujo sentido está no desvelamento do ser entendido como positividade pura ou identidade absoluta, assim também arrancando do plano fenomenológico, Sartre procura atingir  o fundamento do para-si. Antecipemos: esse fundamento é o nada; e as análises fenomenológicas têm um caráter regressivo porque a partir da descrição  de certas experiências, pretende-se atingir aquilo que torna possíveis essas mesmas experiências. O pressuposto básico das análises encontra-se na compreensão do homem como ser-no-mundo. Não se aborda a consciência tão-só enquanto presa a si ou enquanto confinada nos seus próprios limites. Por certo, em determinado sentido ela vive voltada para si própria – já por isso Sartre a designa com a expressão “para-si”, a consciência é para-si por isso que aparece a si mesma. (...) nessa perspectiva, pode-se dizer que a consciência permanece presa a si, sem conseguir abandonar-se. Por outro lado, contudo, o ser mesmo da consciência é a intencionalidade. Vale dizer que, se ela se experimenta como relação a si própria, concomitantemente se relaciona ao em-si; e essa duplicidade deve ser explicitada em sua unidade profunda. Se a consciência é para-si, opõe-se ao outro que não ela, opõe-se ao em-si. E a oposição não se verifica meramente em um plano gnosiológico, nem autoriza a enxergar no para-si uma substância subjetiva; com efeito, se a oposição é radical e se o em-si é o ser, então o para-si, sendo fundamentalmente outro que não o em-si, só pode ser nada – e um nada que deve ser elucidado em um plano ontológico, como fundamento do para-si”. (BORNHEIM, Gerd . Sartre. Metafísica e Existencialismo, pg 37-39, Ed. Perspectiva, São Paulo, SP, Brasil. 2000, 4ª reimpressão, 3ª edição).


O “ser-para-si”, além disso, é também “ser-para-outro”, pois  uma vez que o homem surge no mundo, nunca é sozinho, seu próprio “status” de homem, de humanidade, não é objetivo nem autônomo, porque perceber o próprio mundo é perceber-se na relação com ele e simultaneamente com o outro, necessariamente. Assim, Sartre coloca em definitivo a importância desse conceito, no “Ser e o Nada”:


Consideremos, por exemplo, a vergonha. Trata-se de um modo de consciência cuja estrutura é idêntica a todas que descrevemos anteriormente. É consciência não-posicional de si como vergonha e, como tal, um exemplo do que os alemães denominam “Erlebnis”; é acessível à reflexão. Além disso, sua estrutura é intencional; é a apreensão vergonhosa de algo, e esse algo sou eu. Tenho vergonha do que sou. A vergonha, portanto, realiza uma relação íntima de mim comigo mesmo; pela vergonha, descobri um apecto do meu ser. E, todavia, ainda que certas formas complexas e derivadas da vergonha possam aparecer no plano reflexivo, a vergonha não é originariamente um fenômeno de reflexão. Com efeito, quaisquer que sejam os resultados que se possam obter na primeira, é vergonha diante de alguém. Acabo de cometer um gesto desastrado ou vulgar; esse gesto gruda em mim, não o julgo nem o censuro, apenas vivencio, realizo-o ao modo do Para-si. Mas, de repente, levanto a cabeça: alguém estava ali e me viu. Constato subitamente toda a vulgaridade de meu gesto e sinto vergonha. Decerto, minha vergonha não é reflexiva, pois a presença do outro à minha consciência, ainda que á maneira de um catalisador, é incompatível com a atitude reflexiva: no campo da minha reflexão, só posso encontrar a consciência que é minha. O outro é o mediador indispensável entre mim e mim mesmo: sinto vergonha de mim tal como apareço ao outro. E, pela aparição mesmo do outro, estou em condições de formular sobre mim um juízo igual ao juízo sobre um outro objeto, pois é como objeto que apareço ao outro. Contudo, este objeto que apareceu ao outro não é uma imagem vã na mente de outro. Esta imagem, com efeito, seria inteiramente imputável ao outro e não poderia me “tocar”. Eu poderia sentir irritação ou ódio diante dela, como diante de um mau retrato meu, que me  desse uma feiura ou uma vileza de expressão que não tenho; mas tal imagem não poderia alcançar-me até a medula: a vergonha é, por natureza, reconhecimento. Reconheço que sou como o outro me vê (...)”. (Sartre, “O Ser e o Nada”, pg. 289-290).


Se a relação do “Para-si” com o “Em-si” coloca a posição da consciência no espaço e no tempo, resolvendo a questão do conhecimento pela via ontológica, contudo é “o outro” que lhe dará sua subjetividade, o “outro” que lhe dirá quem ele realmente é, ao propiciar que ele se veja por seus olhos como exterioridade (objetividade), num primeiro momento, que se tornará interioridade (subjetividade) num segundo momento. E esta apreensão do outro é imediata, inafastável, confrontando em definitivo  qualquer alegação ou hipótese sobre acobertamento de um suposto solipsismo e assumindo a total condição de alteridade e intersubjetividade da consciência no mundo, nessa relação que a constitui não como um lugar ou coisa, mas como ação: afinal, contra o solipsismo e o determinismo, a resposta Sartreana encontra expressão na famosa frase hegeliana: “ A consciência é o que não é e não é o que é”, chancelando o conceito de que uma consciência não pode ser seu próprio fundamento, coincidente consigo mesma (cogito Cartesiano) mas é sempre consciência de alguma coisa. Esse aspecto de inter-subjetividade do para-si e sua inafastável condição de somente existir em relação com o outro é o aspecto que mais nos interessa neste ensaio, por entendermos a partir daí a abertura para a compreensão da pertinência e a dinâmica do fazer artístico, independente de qualquer que possa vir a  ser seu objeto específico.

Pelo exposto, por um lado  assim estaria resolvida a questão clássica da “teoria do conhecimento” dentro da tradição filosófica, bem assim de outra mão torna-se mais visível a posição da “condição humana”, colocando-se uma nova forma de consciência que é presença no mundo e existência simultaneamente. Somos livres! Entretanto, essa liberdade, palavra-chave fundamental para se compreender as mais relevantes propostas conceituais de Sartre, nem sempre é percebida enquanto tal, e a maioria esmagadora das vezes o homem, individual ou coletivamente estará sempre atuando para negá-la, para esquecer-se dela, para agir como se ela não existisse. Com efeito, porque essa não é apenas uma liberdade conceitual, formal. Para Sartre, essa é uma liberdade absoluta, e o seu reconhecimento implica, a partir a tomada de sua total consciência, na possibilidade de implementação de mudanças radicais na forma de se estar no mundo. Contudo, por diversas razões, todas em maior ou menor grau mergulhadas em alguma atitude de má-fé, o homem cria, historicamente, inúmeras teias que o prendem a determinadas visões e atitudes alienantes, a ponto de prosseguir caminhando intencionalmente com o propósito de não ver ou não assumir essa liberdade extrema. Mas, ser livre, afinal, para o autor, não é necessariamente uma espécie de bênção, uma graça ou algo que o valha. Existe um alto preço a ser pago por essa liberdade, que em hipótese alguma está relacionada a felicidade ou algo que o valha. Ser livre, no sentido em que pensa Sartre, é antes assumir um encargo pleno de responsabilidades, uma “condenação” a recolocar o homem no centro de sua própria vida, como seu próprio ator e diretor no filme que surge quando ele é jogado no mundo, situação original de todo homem que, por um lado, se o retira  definitivamente da subjugação teológica, material ou psicológica de toda natureza, ao mesmo tempo coloca uma “bomba” em suas mãos, que é a questão existencial de saber como dar uso  à sua plena liberdade sem naufragar definitivamente, agora que nem mesmo Deus poderá mais ampará-lo e ciente de que todas as suas escolhas também são opções que exerce em face de toda a humanidade, assim disposta no mesmo barco, e sujeita coletivamente a sofrer os efeitos condensados de todas as escolhas individuais. Esse conceito, que relaciona a um só tempo liberdade, engajamento, projeto e má-fé está colocado de forma didática na famosa conferência “O Existencialismo é um humanismo”:


(,,,) o homem não é nada além do que ele se faz. Esse é o primeiro princípio do existencialismo. É isso também que se denomina subjetividade, e esse é o termo pelo qual nos criticam. (...) Pois queremos dizer que o homem existe antes de tudo, aquilo que projeta vir a ser, e aquilo que tem consciência de projetar vir a ser. O homem é, inicialmente, um projeto que se vive enquanto sujeito (...) Assim, a primeira decorrência do existencialismo é colocar todo homem em posse daquilo que ele é, e fazer repousar sobre ele a responsabilidade total por sua existência (...) o homem que se engaja e que se dá conta de que ele não é apenas o que escolhe ser, mas é também um legislador que escolhe ao mesmo tempo o que será a humanidade inteira, não poderia furtar-se do sentimento de sua total e profunda responsabilidade. Obviamente, muitas pessoas não se mostram ansiosas, mas nossa opinião é que elas mascaram sua angústia e evitam encará-la; certamente, muitas pessoas acreditam que, ao agir, estão comprometendo apenas a si próprias e se lhes dizemos: “Mas, e se todo mundo agisse assim?” elas dão de ombros e respondem: “Nem todos agem assim”. Mas, na verdade, a pergunta que deve ser feita é: “O que aconteceria se todos agissem do mesmo modo?” E não se tem como escapar desse pensamento inquietante sem uma espécie de má-fé. Aquele que mente e se escusa dizendo que nem todo mundo age assim é alguém que não está bem à vontade com sua consciência, pois o fato de mentir implica um valor universal atribuído à mentira. Mesmo mascarada, a angústia se manifesta”.  (Sartre J.-P. , O Existencialismo é um Humanismo, 2010, pg 19-22)



A NÁUSEA”  E A ANGÚSTIA QUE TAMBÉM É FUNDAMENTO ONTOLÓGICO


Para o homem, possuir e ter a ciência de que possui tanta liberdade à disposição é algo que  intimida, causa vertigens e muitas vezes o terror, como brilhantemente exposto no romance “A Náusea”. A esse respeito, apenas um parêntesis : abstraindo-se possíveis questões teóricas acerca da “autoria” do romance “A Náusea”,  colocadas em termos editoriais logo na abertura do livro, bem assim as especulações sobre o rigor possível com que o pensador Sartre teria abordado as questões subjacentes, uma vez que  evidentemente trata-se de um romance filosófico, onde um dos recursos literários é que a própria autoria é colocada em suspenso, e não propriamente um “livro de filosofia”, propomos para efeito deste ensaio, que o protagonista desse romance, o personagem Roquentin, seja de fato compreendido como o “alter ego” de Sartre, falando por ele, e por ele propondo uma possível saída existencial pela arte, a “salvação do homem” diante do grande problema da existência, a partir do momento em que ele é finalmente desvelado, impondo-se de forma inexorável como uma possível liberdade de escolha. Feita essa ressalva, prosseguimos com a acepção  de que o romance “A náusea” é uma história contada em forma de diário, numa linguagem ora descritiva, ora temporal-narrativa, ora repleta de uma belíssima prosa poética com traços de surrealismo, onde  o protagonista Roquentin é um historiador imbuído de um projeto de escrita biográfica sobre um dado político com relevo dentro da história da França, o “Senhor de Rollebon”. No intuito de realizar seu trabalho, ele muda-se para a cidade de “Bouville”, onde estão os registros necessários para suas pesquisas. Enquanto pesquisa os arquivos de época e aos poucos se envolve com a atmosfera própria do contexto em que atuou essa figura histórica, Roquentin passa a perceber,  num crescendo de intensidade que envolve tanto pensamento como emoção e sensação corporal, um sentimento desagradável que a princípio não sabe dizer bem o que é. Essa “sensação incômoda” passa a surgir cada vez mais frequentemente, em diferentes contextos, até que em dado momento o protagonista é inteiramente tomado por ela, ao perceber em definitivo qual era a causa do seu mal-estar e como isso estava indissociavelmente vinculado à forma como funciona a verdadeira engrenagem da vida, representada ao fim pela contingência do mundo. É importante a constatação de que essa “verdade” surgida abruptamente, mas não sem antes vir pontuando aos poucos e sinalizando o problema em vários momentos da narrativa, não é uma “verdade intelectiva”,  lógica ou racional, mas sim uma verdade visceral, corporal, fisiológica, afetiva, numa palavra:  existencial, que implica a descoberta do “absurdo” que é estar vivo num mundo indeterminado.


A palavra “absurdo” surge agora sob minha caneta; há pouco no jardim não a encontrei, mas também não a procurava, não precisava dela: pensava, sem palavras, sobre as coisas, com as coisas. O absurdo não era uma ideia em minha cabeça, nem um sopro de voz, mas sim aquela longa serpente morta aos meus pés, aquela serpente de lenho. Serpente ou garra, ou raiz, ou gafa de abutre, pouco importa. E sem formular nada claramente, compreendi que havia encontrado a chave da existência, a chave de minhas Náuseas, de minha própria vida. De fato, tudo o que pude captar a seguir liga-se a esse absurdo fundamental. Absurdo : ainda uma palavra; debato-me com as palavras; lá eu tocava a coisa. Desejaria fixar aqui o caráter absoluto desse absurdo (...) Mas diante daquela grande pata rugosa (raiz da castanheira), nem a ignorância nem o saber importavam: o mundo das explicações e das razões não é o da existência”..  (Sartre J.-P. , A Náusea, 2011, p. 172)


A nosso ver, a palavra “Absurdo” nesta exposição do autor pode e deve ganhar outras conotações, uma vez que não partilhamos de uma primeira possível sugestão de que o absurdo necessariamente se confunde com a “Náusea” diante da contingência do mundo, tema sobre o que falaremos mais à frente. De todo modo, a narrativa de Sartre no livro “A Náusea” reflete a situação onde a experiência do mundo desautorizou o homem a recorrer a Deus, à ciência e agora ele encontra-se isolado e perdido (daí o constante e tão criticado solipsismo que envolve o personagem, uma  vez que na falta de uma “resposta’ do mundo á altura, ele se refugia em si mesmo, aprofundando cada vez mais a angústia), num mundo a rigor sem sentido, mas que contudo lhe oferece diversas formas alienantes de tentar preencher esse grande vazio. O mal-estar característico da “Náusea”, termo latino que remete originariamente ao grego “Nausia”, do prefixo “Naos”, “Navio”, evoca simultaneamente tanto a sensação de vertigem de quem está em alto mar, sujeito a tempestades e por isso sente o mundo rarefeito, com perda do referencial sólido que agora não mais se vê na navegação em alto mar, ou então estando perto da costa e se encontra em movimento mesmo atracado por causa da força das marés, os objetos girando rápido demais ao seu redor. Ao mesmo tempo o termo sugere  também o enjôo de estômago característico nessas situações:  a ânsia, o pré-vômito, a incapacidade de manter alimento no estômago e a necessidade imediata de expelir tudo na esperança de que o mal-estar cesse de alguma forma.. Também não é de se menosprezar que essa vertigem sentida no ataque de náusea também pode se dar, fisiologicamente, pela afetação do órgão interno do equilíbrio, entre ouvido e cérebro. O que fazer para parar com essa terrível sensação? Em algum momento se pergunta o protagonista Roquentin, terrificado pelo seu estado quase doentio. Compor ou ouvir uma música? Escrever um livro? Matar-se? E se , agora transpondo o questionamento em metáfora para o mundo humano, esse suposto perfeito equilíbrio próprio preexistente e seguro de um organismo ainda não atingido pela vertigem da náusea for algo, além de transitório, extremamente artificial, um equilíbrio simulado apenas para que não se possa ver a “verdade” e sentir de fato o lado caótico da existência no cotidiano? Embora seja histórico o registro de que o título original da obra, para Sartre, deveria ser “Melancolia”, o que de todo modo não estaria fora do âmbito filosófico a que o tema central se desenvolve, “Náusea”, uma alteração editorial, teve o feliz condão de precisar o estado de espírito de toda uma geração representada por “Roquentin”, e parece ter sido ainda a  palavra perfeita para descrever todo o enredo, uma vez que a sensação de perda de referenciais sólidos acomete o protagonista a maior parte do tempo, a partir do instante em que sente a grande “vertigem” da existência como uma espécie de revelação agnóstica e psicossomática que não é dada por um deus e ao mesmo tempo possui efeitos imediatos na interação entre corpo e mente, colocando em xeque a clássica dualidade. Ressalte-se que essa sensação também aflora em diversos momentos em situações onde ele também sente enjôos. Nesse sentido, a subjetividade e relatividade infinita do termo “Melancolia” perde em muito para a objetividade possível de Náusea, na acepção original do termo. De todo modo, a passagem onde o personagem Roquentin sente o impacto da “descoberta” do que tanto o aflige, além da beleza literária do trecho, é determinante para se compreender o cerne da filosofia existencial Sartreana a partir da temática introduzida brilhantemente nesse romance:


Esse momento foi extraordinário. Eu estava ali, imóvel e gelado, mergulhado num êxtase horrível. Mas , no próprio âmago desse êxtase, algo de novo acabava de surgir; eu compreendia a Náusea, possuía-a. A bem dizer, não me formulava minhas descobertas. Mas creio que agora me seria fácil colocá-la em palavras. O essencial é a contingência. O que quero dizer é que, por definição, a existência não é a necessidade. Existir é simplesmente estar aqui; os entes aparecem, deixam que os encontremos, mas nunca podemos deduzi-los. Creio que há pessoas que compreenderam isso. Só que tentaram superar essa contingência inventando um ser necessário e causa de si próprio. Ora, nenhum ser necessário pode explicar a existência: a contingência não é uma ilusão, uma aparência que pode se dissipar; é o absoluto, por conseguinte a gratuidade perfeita. Tudo é gratuito: esse jardim, essa cidade e eu próprio. Quando ocorre que nos apercebamos disso, sentimos o estômago embrulhando, e tudo se põe a flutuar como na outra noite no Rendez-vous des Cheminots: é isso a Náusea(...)”.  (Sartre J.-P. , A Náusea, 2011, p. 175)



DEUS CONTINUA MORTO e o REI ESTÁ NU


A sensação da falta de sentido do mundo não é algo fácil de se experimentar. Se a antiguidade, desde os primórdios, sempre inspirou ao homem um temor perante as forças gigantescas e terríveis da natureza, como o raio, o trovão, as enchentes, os terremotos se vulcões, o que provavelmente se instituiu como uma primeira noção de sentimento espiritual, essa sensação logo tornou-se rito para as sucessivas gerações posteriores, a ponto de legitimar-se o viver em termos de sua justificação perante o sagrado. Para o homem , bastava saber ou sentir que pertencia a uma outra esfera superior de justificativa do mundo, para que sua própria vida existisse plena de razão, e a humanidade, coletivamente ou na presença última de seus indivíduos, estivesse satisfeita em suas motivações.

Muito depois na história, com o advento da ciência moderna, paulatinamente a noção de Deus e da magia inerente ao mundo e simultaneamente inacessível ás artimanhas da razão foram perdendo espaço para o novo sentido de “descoberta’ capitaneado pelo sentimento de lógica racional argumentativa e investigativa que a partir desse instante passou a relegar Deus e a explicação puramente espiritual do mundo a segundo plano. Nesse instante, a ciência, nova espécie de “religião”, passou a governar o dito mundo real, coincidindo no plano econômico da nova era com o advento da sociedade burguesa industrial. Nesse sentido, a pertinência da conhecida frase de Nietzsche, de que “Deus está morto”, e a consequente livre apropriação do verso Shakesperiano do “Rei Lear” para constatar em definitivo que se Deus morreu, o homem está sozinho, “O Rei está nu”, uma vez que para aquele dado mundo onde a plenitude de sentidos e explicações para o viver não encontrava mais referências válidas em perspectiva com os novos paradigmas colocados pela razão científica ou as formas tradicionais de religiosidade.  Entretanto, a ciência também encontrará sua prova mais dura após o auge do iluminismo, quando o mundo supostamente iluminado que ela deveria guiar foi duramente sufocado por aparentes retrocessos nos aspectos humanos, consolidando uma ideia contraditória de que avanços científicos, tecnológicos ou industriais, denominados comumente “evolução” não encontraram historicamente contrapartida no quesito “humanidade”, uma vez que , como muito bem retratado pela primeira vez por Kant na “Crítica da razão prática”, esse avanço tecnológico não significaria, necessariamente, uma correlação com um suposto avanço “moral” ou “espiritual” da própria humanidade.

Dessa forma, se por um lado, “Deus morreu” porque o mundo guiado e justificado pelas forças metafísicas no sentido religioso do passado perdeu sua essência, a nova deusa que havia ocupado seu lugar no mundo contemporâneo, a ciência, também perderia seu status de deidade absoluta em face de uma realidade que muito embora tenha trazido mudanças estruturais na forma de se pensar o mundo e de interagir com ele pelo domínio relativo das técnicas, revelou-se também impotente para garantir a plenitude de um sentido capaz de abarcar em sua completude a experiência humana sobre o planeta, e sua forma definitiva de se relacionar não apenas com o mundo exterior mas o homem consigo mesmo.

A prova cabal dessa sentença condenatória das ciências como justificativa para o mundo pós-morte de Deus, são as atrocidades vividas pelo planeta no século XX, as grandes guerras genocidas, o aumento em escala global da crueldade, a utilização da própria lógica científica e do cabedal teórico das ciências em grupo para endossar a grande matança de inocentes com as melhores armas químicas, bombas de destruição em massa, procedimentos burocráticos estatais altamente eficientes para eliminar vidas com o menor gasto de tempo e recursos,  e legitimar governos despóticos sanguinários mesmo depois de toda a suposta experiência redentora racional do “século das luzes”.

No romance “A Náusea,” ao perceber, enfim, e nomear o sentimento que tanto o incomoda, Roquentin termina sua trajetória  com o propósito de, não sendo mais possível ignorar que essa situação existe, e uma vez ciente de que essa contingência vertiginosa é inegável,  conclui que apenas a arte poderia salvá-lo. Pela forma particular como enxerga a arte e seu efeito benéfico, principalmente a música ou a literatura romanesca, elege essa experiência humana como a a única capaz de estabelecer  um porto seguro contra suas angústias, porque elas poderiam criar certezas e estabilidade para combater o diagnóstico e as consequências duras de um mundo atormentado e imprevisível, motivo pelo qual se propõe a criação de um romance para, através da criação artística, conseguir “superar” tal contingência. Dessa forma, espera recuperar algo de previsibilidade e de conforto para um mundo que acaba de subitamente mostrar-se desprovido de qualquer nexo ou necessidade.

Nessas alturas, a pergunta que se coloca ao fim da própria leitura da citada obra, e que é talvez o principal objeto deste ensaio é : A arte, em geral cumpriria esse papel? Ou antes, é a visão voluntariamente limitada de Roquentin, ao mesmo tempo pontuada pelo desespero enorme em lidar com todo o mal-estar e o inusitado da recente descoberta  que o fazem buscar um “caminho da salvação” ainda alienante, mesmo depois de encontrar a estrutura do verdadeiro problema? Qual o conceito de arte e o propósito que em si encerra, a ponto de atender ao desespero de Roquentin, ou contrariamente, arriscando-se a aprofundar cada vez mais o problema na medida em que dado tipo de experiência artística poderia sim revelar cada vez mais as arestas da contingência, das incertezas e das angústias que compõem o ser do homem no mundo? A arte “salva”, em alguma medida, encobrindo a dureza do mundo contingente ou ao contrário, ela pode atuar como um tipo de desvelador de alguma profundidade, propiciando, em vez disso, lentes mais poderosas para que o homem possa ver melhor dentro das próprias engrenagens da vida, de modo a se colocar com mais transparência qual é o verdadeiro problema da existência, numa visão que incita conceitualmente à ação para transformação do mundo? A abordagem dessa questão tomando-se como guia o papel da sétima arte é o objetivo que será retomado à frente.



O ENGAJAMENTO COMO ATITUDE DESVELADORA DA REALIDADE HUMANA

A palavra “engajamento” etimologicamente tem origem no termo  francês engager,  que significa “dar em garantia”, “empenhar” ou “dar como caução”. O verbo engajar ainda pode ser utilizado no sentido de dedicação, ou seja, fazer algo com afinco e vontade. Na nossa leitura, a acepção que a palavra precipuamente adquire em Sartre, encontra-se indissociavelmente vinculada ao conceito de intencionalidade, pois não é possível engajar-se, criar um “projeto” baseado na livre escolha de escolher ser livre, sem que esse ato esteja repleto de intenção, sem que a consciência descubra-se a si mesma na ação, que ela se afirme cada vez mais visceralmente no seu ser-no-mundo. É ainda através do engajamento que o homem liberta-se de uma vez da má-fé ao trazer para si, através da ciência da verdadeira engrenagem que faz girar  o mundo, toda a responsabilidade por sua manutenção ou sua alteração. Enquanto o “Engajamento” traduz a autêntica atitude humana de assumir-se perante o mundo e no mundo, a “Má-fé”  é uma forma de se tentar a fuga diante do problema da existência e da condição humana definitivamente colocados. Para  Sartre, não há inocentes porque não há para o homem a opção de deixar de ter consciência do mundo e de si próprio, contudo por diversas razões é possível que  nem sempre se esteja plenamente consciente de seu papel uma vez “embarcado”, termo tomado de Sartre a Pascal. Muitos fogem, ou relutam em assumir a tarefa. “Engajamento”, nesse contexto, seria assumir-se de forma autêntica diante da angústia surgida simultaneamente com a consciência de seu status de liberdade absoluta no mundo, enquanto seu contrário, a “Má-fé” traduz a experiência da homem que pretende fugir do problema, e nesse processo mente para si mesmo e para os outros, agarrando-se a tábuas de salvação de diversas naturezas, mas sempre com o mesmo propósito. A religião, a ciência, algumas formas de arte, uma possível “má consciência”,  que ludibria constantemente a si mesma , dentre muitos outros possíveis, são caminhos de fuga comumente adotados para tentar encobrir a assustadora e imensurável liberdade de saber-se “jogado” no mundo. Por outro lado, como preleciona o próprio autor , nem sempre essa fuga pela má-fé é assim tão ostensiva ou declarada, ou possui um objeto específico, simplesmente porque embora ao homem caiba a sina inexorável de “estar embarcado”, uma vez que não há como se afastar da consciência do mundo, muitas vezes não se tem a própria consciência de se “estar embarcado”:


(...)Se todos os homens embarcaram, isso não quer dizer que tenham plena consciência do fato; a maioria passa o tempo dissimulando seu engajamento. Isso não significa necessariamente que tentem evadir-se pela mentira, pelos paraísos artificiais ou pela vida imaginária: basta-lhes velar um pouco a luz, ver as causas sem as consequências, ou vice-versa, assumir o fim silenciando sobre os meios, recusar a solidariedade com seus pares, refugiar-se no espírito de seriedade; tirar da vida todo o valor, considerando-a do ponto de vista da morte, e ao mesmo tempo, tirar da morte todo o seu horror, fugindo dela na banalidade da vida cotidiana; persuadir-se, quando se pertence à classe opressora, de que se pode escapar à sua classe pela grandeza dos sentimentos e, quando se faz parte dos oprimidos, dissimular a cumplicidade com os opressores, sustentando que é possível se manter livre mesmo acorrentado, desde que se tenha o gosto pela vida interior. A tudo isso podem recorrer os escritores, tal como as outras pessoas. Alguns há, e são a maioria, que fornecem todo um arsenal de ardis ao leitor que quer dormir tranquilo. Eu diria que um escritor é engajado quando trata de tomar a mais lúcida e integral consciência de ter embarcado, isto é, quando faz o engajamento passar para si e para os outros, da espontaneidade imediata ao plano refletido. O escritor é mediador por excelência, e o seu engajamento é a mediação. Mas , se é verdade que se deve pedir contas à sua obra a partir de sua condição, é preciso lembrar ainda que a sua condição não é apenas a de um homem em geral, mas também, precisamente, a de um escritor (...)”.   (Sartre J.-P. , Que é a literatura?, 1999, p. 61-62)


Dentro de várias formas possíveis de se pensar essa realidade do engajamento como via autêntica para uma consciência humana se posicionar com relação ao mundo ou “dentro dele”, a nosso ver a arte eventualmente pode assumir um papel essencial, principalmente porque dentro das atividades humanas, ocupa um lugar privilegiado como espaço de produção, conhecimento e re-conhecimento da presença humana no mundo, tanto como indivíduos quanto como coletividade. As artes, por natureza, independente do seu elemento característico agrupam, socializam, permitem o reconhecimento de vivências, memórias e prospecções sobre a coletividade e os indivíduos que a constituem. Contudo, não necessariamente a arte ocupará sempre esse espaço potencial, como se vê no  final do romance  “A Náusea”. A concepção e o interesse da arte, no contexto da obra, é definitivamente diversa do que ora se propõe neste ensaio. O personagem Roquentin, depois da ciência da revelação propiciada pela contingência do mundo e do papel efêmero do homem dentro do planeta, busca algum tipo de “salvação’ pela arte, mais propriamente através da escrita de um romance, entendendo-a como algo que lhe poderá trazer conforto pelo encobrimento daquela situação anterior incômoda e avassaladora. Isso nos leva inevitavelmente a uma constatação ambígua: A arte pode tanto significar ou servir como meio para intensificar ou desnortear a ação do homem em busca do engajamento. Com efeito, as formas de engajamento são variáveis, porque se a consciência no mundo se dá justamente de forma relacional, uma vez ela própria esteja no mundo, não é possível determinar aprioristicamente “qual será” a fórmula mágica que irá fazer despertar neste ou naquele sujeito (para-si) a consciência de sua realidade. Uma consciência jamais “determina” outra consciência, embora possa motivá-la.

Sartre insiste, na obra “Que é a literatura?” que a escrita, particularmente a prosa, pela natureza própria do seu fazer, ao lidar diretamente com signos, teria assim uma forma naturalmente privilegiada para “causar” as condições ideais para permitir o engajamento. O escritor, segundo Sartre, tem o condão de conduzir o leitor, e através disso, um espaço incomum para o seu convencimento ou para solicitar a sua liberdade criadora e imaginativa na tarefa coletiva de desvelar-lhe o mundo em prol de um projeto maior, algo que as demais artes, que continuam no ambiente de pré-significação, lidando diretamente com as “coisas” e não com os signos, não teriam. Em “Que é a literatura?”, Sartre não somente propõe, em três momentos, contra-atacar as críticas que vinha sofrendo acerca da não definição mais rigorosa da tal “saída pela arte” ( tema este bastante referenciado na história da filosofia, presente na filosofia contemporânea principalmente a partir de Kant e através dele , Schopenhauer e Nietzsche) ou seja, o enfrentamento, a “salvação” ou “resolução” definitiva do problema da condição humana  diante do mundo proposta no romance “A Náusea”, como também expõe de forma histórica o papel do escritor desde o começo dos tempos, associando-o,  na retrospectiva de  cada contexto, ao pensamento social de sua respectiva época. Nessa tarefa, conceitua o que entende por atividade da escrita, suas motivações mais relevantes e os possíveis efeitos na construção da liberdade humana através do desvelamento da realidade por um trabalho consciente do artista, principalmente do escritor. E ainda, ao construir ou descrever de forma positiva as linhas de ação possíveis para o escritor imbuído dessa proposta, simultaneamente define como também é possível renunciar a esse projeto de consciência e liberdade, assumindo outro papel que será apenas o de mascarar a própria realidade para que apenas o entretenimento, as ideologias políticas embotantes ou valores ilusórios entrem em campo, alijando o homem, ao final, do caminho crítico, do engajamento ou da liberdade, uma vez que atuará como possível cooptador  , através da má-fé, de todas essas consciências que abdicam de sua liberdade para uma voluntária adesão ao não reconhecimento do mundo, e através disso, para a total inação, uma vez que qualquer mudança nas engrenagens do mundo pressupõe um conhecimento desvelado que mostre quais são e como elas funcionam.

““O escritor pode dirigir o leitor, e se descreve um casebre, mostrar nele  o símbolo das injustiças sociais, provocar nossa indignação. Já o pintor é mudo: ele nos apresenta um casebre, só isso;  você pode ver nele o que quiser. Essa choupana nunca será o símbolo da miséria: para isso seria preciso que ela fosse signo, mas ela é coisa. (...) Se assim é, compreende-se facilmente a tolice que seria exigir um engajamento poético. Sem dúvida a emoção, a própria paixão – e por que não a cólera, a indignação social, o ódio político—estão na origem do poema. Mas não se exprimem nele, como num panfleto ou numa confissão. À medida em que o prosador expõe sentimentos, ele os esclarece; o poeta, ao contrário, quando vaza suas paixões em seu poema, deixa de reconhecê-las; as palavras se apoderam delas, ficam impregnadas por elas e as metamorfoseiam; não as significam, mesmo aos seus olhos. A emoção se tornou coisa, passou a ter a opacidade das coisas; é turvada pelas propriedades ambíguas dos vocábulos em que foi confinada. E, sobretudo, há sempre muito mais em cada frase, em cada verso, como no céu amarelo acima do Gólgota há mais que uma simples angústia. A palavra, a frase-coisa, inesgotáveis como coisas, extravasam por toda parte o sentimento que as suscitou. Como esperar que o poeta provoque a indignação ou o entusiasmo político do leitor quando, precisamente, ele o retira da condição humana e o convida a considerar, com os olhos de Deus, o avesso da linguagem? (...)”.  (Sartre J.-P. , Que é a literatura?, 1999)

O importante conceito de “engajamento” como forma intencional do “fazer” de uma arte que procura desvelar o mundo para que uma determinada verdade possa surgir à consciência individual ou coletiva, e a partir desse primeiro momento, onde se instaura o conhecimento do que é, coloque-se em consequência a situação inafastável da escolha como atuação da liberdade no mundo real, e essa escolha permitindo uma definição a posteriori da qualidade de autêntica , identificada com o agir verdadeiro consigo mesmo, ou inautêntica, quando essa consciência escolhe “não escolher” ou escolhe supostamente encobrir a verdade trágica e nauseante do mundo contingente. Ainda assim essa “não escolha” se mostrará uma escolha, na história e no tempo caracterizada sobretudo pela má-fé.  Portanto, apreender algumas possíveis inter-relações existentes entre imagem e subjetividade é buscar na história a própria forma de ser do homem no mundo, uma vez que não há como existir a experiência humana sem que haja também uma forma de narrativa de estar no mundo, seja ela escrita, verbal, sonora, ou imagética. Por sua vez, o legado dessas experiências, que são constituídas pela humanidade enquanto vive individual ou coletivamente, também são o substrato que de alguma forma conduzirão ou ao menos influenciarão as experiências futuras.

Como dito, em “Que é a literatura”, Sartre menciona logo no início da primeira parte, no tópico “O que é escrever”, a diferenciação de propósitos e  a capacidade de análise que as diversas artes possuem, conforme suas distintas naturezas, creditando à literatura, e mais particularmente à prosa, o condão de propiciar e desenvolver sua experiência de forma a criar as melhores condições para o “engajamento” do leitor, do que fariam , por exemplo, a música ou as artes figurativas com relação ao espectador e bem assim a própria poesia com relação ao seu público. Isso, porque segundo Sartre, o escritor (prosador) pode melhor “dirigir” o leitor.  Divergimos nesse particular, principalmente porque entendemos que outras artes, no elemento que é próprio a cada uma, também podem capturar o espectador e agir como um catalisador da intencionalidade do olhar do outro para a constituição de um projeto desvelador da realidade tão autêntico ou poderoso quanto a escrita no formato prosa. Isso se dá principalmente por causa da subjetividade individualizadora de cada ser humano, sua história pessoal, seu estado de estar no mundo, e sua relativa capacidade de estar consciente de si próprio, uma vez que essa mesma consciência não é necessariamente uma consciência “intelectual”, mas também e talvez principalmente seja uma consciência com fortes traços de afetividade e emoções, tais como memória individual, ódio, amores, pequenas ou grandes felicidades e tristezas. Decorre daí que cada para-si em sua atividade natural de envolvimento com o que o rodeia (em-si), e no processo de se aperceber da sua realidade externa (percepção), absorvê-la e mediá-la pelo pensamento (reflexão) ou a partir daí criá-la para além do campo mensurável (imaginário), desenvolve através de sua história uma forma ou outra de linguagem mais privilegiada com o mundo. No que o próprio Sartre denominou de “apelo” ou “solicitação da liberdade do leitor”, entendemos que pela subjetividade que  esse processo tem como pressuposto, tal capacidade de ser pedra de toque, capaz de sensibilizar e atrair para si o olhar do outro, também cabe às demais artes, mesmo que elas estejam, por definição, menos afeitas ao território do “significado” propriamente dito. Trata-se, muito mais propriamente , de falar de um “espectador” e não necessariamente , em termos absolutos, de um “leitor”, uma vez que pelas razões subjetivas acima expostas, tal sujeito poderá ser “tocado”, “ter sua liberdade solicitada” ou “sentir o apelo” do artista criador por um modo diferente do que seja uma leitura de texto , que por sinal, na forma como a cultura no ocidente se desenvolveu, tem uma tendência original, uma predisposição inata de privilegiar através da prosa o olhar intelectual, racional, em detrimento de como opera essa sensibilização, apelo, evocativo, na esfera da música, da pintura, poesia ou do teatro, artes que atuam predominantemente na esfera emocional, memorial-afetiva, física enfim. O próprio Sartre conceitua os termos numa das melhores passagens do livro “ Que é a literatura?”.:


Uma vez que a criação só pode encontrar sua realização final na leitura, uma vez que o artista deve confiar a outrem a tarefa de completar aquilo que iniciou, uma vez que é e só através da consciência do leitor que ele pode perceber-se como essencial à sua obra, toda obra literária é um apelo. Escrever é apelar ao leitor para que este faça passar à existência objetiva o desvendamento que empreendi por meio da linguagem. Caso se pergunte a que apela o escritor, a resposta é simples. Como nunca se encontra no livro a razão suficiente para que o objeto estético apareça, mas apenas estímulos à sua produção; como tampouco há razão suficiente no espírito do autor, e como a sua subjetividade, da qual ele não pode escapar, não consegue esclarecer a passagem para a objetividade, a aparição da obra de arte é um acontecimento novo, que não poderia explicar-se pelos dados anteriores. E como essa criação dirigida é um começo absoluto, ela é operada pela liberdade do leitor, naquilo que essa liberdade tem de mais puro. Assim, o escritor apela à liberdade do leitor para que esta colabore na produção da sua obra (...) a imaginação do espectador tem não apenas uma função reguladora, mas constitutiva: ela não apenas representa: é chamada a recompor o objeto belo para além dos traços deixados pelo artista (...)”. (SARTRE, Que é a literatura, pág. 39-40)


Enfrentando um problema específico mencionado pelo autor,  não concordamos com a hipótese de que uma tela como “Guernica”, de Pablo Picasso, não tenha engajado sequer uma alma em favor da paz ou da luta contra a opressão durante a guerra civil espanhola, simplesmente porque no âmbito da experiência individual, subjetiva, da apreensão do objeto de arte pelo espectador, o resultado final da construção da própria arte na relação entre espectador e obra,  é imprevisível. Dependerá, não apenas da prosa “diretiva” do autor, como propõe na soberania da prosa condutora do leitor sobre o engajamento, mas dependerá em muito das situações subjetivas desse leitor, sua condição emocional, sua história de vida, seu momento no tempo e relativa sensibilização para o que está sendo dito. Até mesmo seu grau de alfabetização ou contato prévio com a leitura, em geral, poderá alterar a questionável previsibilidade dos esperados efeitos. Seria o mesmo que dizer, por contraponto, que todos que leram na mesma época, um panfleto escrito em texto formato prosa, motivador , incitando, ou à defesa do totalitarismo, ou ao contrário, na luta contra toda tirania, todas essas pessoas que leram esse tipo de texto necessariamente tenham manifestado o desejo ou efetivamente se engajado de alguma forma ativamente ou a favor ou contra a situação trágica ocorrida na Espanha, à época, coisa que a história mostra que não ocorreu. Embora Sartre afirme com toda certeza as virtudes da prosa engajadora, não há uma lógica rigorosa, matemática ou mesmo existencial nisso tudo. Existe ainda um outro ponto, que pesa a favor de toda arte como possível apelo ao engajamento, que não seja necessariamente o instrumento prosa escrita. Toda obra tem sempre seu contexto, e por mais que se queira pensar que simples garatujas ou pinturas geométricas lançadas sobre um mural, uma folha, uma tela, determinada música, gesto ou peças esculpidas possam não ter uma repercussão imediata ou um apelo específico sobre seu espectador, ela é dotada de uma capacidade única de tocar aquele que a experiencia. Por isso, novamente ao propor que apenas a prosa poderia ser capaz de propiciar o engajamento, o autor reduz equivocada e perigosamente a natureza e o eventual “papel” que poderiam desempenhar as outras artes. Principalmente na conceituação excludente das artes que lidam com símbolos em favor da prosa, por natureza o palco por excelência do domínio dos signos, relevando a pintura,  a escultura, a música a segundo plano. Essa argumentação  a nosso ver, favorece essencialmente o estilo argumentativo e lógico, cartesiano portanto, da forma como foi construída a prosa em nossa cultura ocidental, causando, em detrimento dessa visão, um apequenamento das demais artes figurativas ou da poesia, porque guiam-se por outra dinâmica que não seria, hipoteticamente, “dirigir”ou “causar” mecanicamente no seu público espectador, leitor etc, a necessária convergência para o objeto unívoco da pretensão autoral: pode-se mesmo inferir que seria o objetivo final de todo autor, oseu maior desejo: trazê-lo, o leitor, para um convencimento sobre o que é tal realidade, de como ela é composta, e quais seriam os mecanismos para transformá-la,  a partir do momento que a consciência da sua totalidade surge com o desvelamento propiciado pelo texto. Ora, essa argumentação ingenuamente pressupõe que toda prosa é absolutamente capaz de ser realmente objetiva, cartesiana, centrada em sua forma de se fazer como retrato fiel de uma dada realidade, e a partir daí, seu objeto seria fácil , automática e inteiramente apreensível pelo olhar ou pensamento do outro da forma exata como a propôs o autor. Isso não chega a ser um erro comparável ao que pretende a proposta de logicização do pensamento através da busca de uma linguagem “purificada pela “arrumação objetiva” das palavras, como assim o pretendeu o famigerado  grupo de pensadores que ficou conhecido como“Círculo de Viena”, até porque ao que se saiba, Sartre em nenhum momento propõe que essa linguagem deva ser “pura” e absolutamente objetiva ou lógica. De todo modo, trata-se de ledo engano. Mesmo que em princípio concordemos com  a ideia de que comparando-se as demais artes como a pintura, a música, a escultura ou a poesia, e seu elemento primal possa muito bem ser respectivamente a tinta, as notas musicais , pedaços de pedra ou palavras soltas, coisas que por si sós não possuem significado, enquanto a matéria prima da prosa, ao contrário, por possuir palavras em contexto, segundo Sartre, “explicativo” e “argumentativo” por si só , e evidentes no convencimento pela direção do leitor, cremos que é impossível pensar uma realidade artística onde tais preceitos sejam detectados. A prosa jamais será “pura” e “objetiva” a ponto de “dirigir” de forma tão autônoma e eficaz o olhar do leitor. Ou se ela o faz em algum momento, não vemos por que razão ela o faria melhor ou mais eficientemente do que as outras artes citadas. Isso porque mesmo a prosa sendo de natureza explicativa, argumentativa, as palavras não perdem em absoluto seu caráter afetivo, cultural, e até certo ponto extremamente subjetivo na apreensão de quem lê. Não fosse assim, todos os leitores que acabaram de devorar um livro em prosa concluiriam seu livro, seu texto, sua análise filosófica tendo exatamente a mesma conclusão entre si próprios e convergentes com aquilo que se propõe o autor, concordando ou negando o que acabaram de experienciar. Por que isso não ocorre? Se pedíssemos a diversas pessoas que acabassem de ler qualquer texto em prosa, numa determinada experiência de campo, o mesmo texto seria provavelmente interpretado de diversas maneiras diferentes, com mais ou menos detalhes : uns não entenderiam sequer um propósito do autor, outros entenderiam parcialmente, uns entenderiam questões que não estão postas, outros acrescentariam suas próprias questões, como aliás é bem comum acontecer numa sala de leitura de classe. Essa experiência simples e direta demonstra que também a prosa não possui esse grau quase “absoluto” na possibilidade de direção do leitor, porque ela também traz em si o problema geral do símbolo, que precisa ser interpretado. Não é, como pretende Sartre, o “imperativo do signo”, ao contrário das demais artes, mas partilha com todas as demais o pressuposto de que precisa ser interpretada também, e isso põe por terra sua pretensão de privilégios de natureza, e ao colocar como pressupostos enormes subjetividades individuais-existenciais (formação do leitor, perfil cultural, história de vida, situação momentânea no mundo) e coletivas de contexto (grau de liberdade ou de opressão, interação com o meio, estruturas familiares, políticas, religiosas, econômicas, etc) para leitura e apreensão de conteúdo. Quanto às demais artes, há ainda outra consideração que vai contra a exposição de Sartre no citado texto. A poesia, assim como a pintura, a escultura ou a música, possuem significação em suas elaborações por uma razão também muito simples: a argumentação de Sartre , parcialmente correta por sinal, é de que tintas isoladas com suas cores, notas isoladas com seu natural alheamento, pedaços de rocha que não são esculturas ou madeira ou palavras soltas cujo sentido é indeterminado, nada disso constitui narrativas ou tecidos capazes de “Mostrar significado” a alguém, e por isso seriam abordagens de segunda linha na comparação com a prosa, é preciso considerar também que notas isoladas, por si sós, não constituem música, são apenas sons na verdade. Portanto, para serem música, no sentido literal, precisam sofrer determinado encadeamento, sequenciamento de notas para formar acordes ou melodias, materialização por instrumentos, quer seja voz, percussão, cordas, sopro, etc. No exato momento em que essas notas esparsas se corporificam, cria-se enfim o que podemos chamar música, e a partir daí, sua dada configuração, suas particularidades no tempo e no espaço, na história enfim, vão caracterizá-la, dentre todas as outras configurações possíveis, como um verdadeiro tratado eloquente de sua humanidade, de sua expressividade, o que poderemos chamar em sentido mais amplo de total engajamento como proposta. Uma mesma música, dependendo do contexto onde é tocada, bem como da forma de sua execução, pode se tornar parada marcial às margens de um campo de batalha ou apenas virar atração para as crianças em uma pracinha de uma pequena vila de interior. Portanto, o que vale não é o signo em si mesmo, toda significação em certo sentido é dada pelos contextos onde a arte surge, não por ela mesma. Por isso, mesmo a prosa deverá passar por esse crivo histórico e contextual antes de se decretar sua total inteligibilidade e ressignificação por parte dos leitores numa mesma linha, na mesma “direção” que pretende necessariamente dar o escritor-prosador. Raciocínio análogo, a nosso ver, pode ser estendido ás demais artes que não a literatura em prosa. Esculturas enquanto são pedras ou madeiras, não são esculturas, são apenas objetos sem significado. Entretanto, “montados”, colocados, desbastados sobre um bloco, sua imagem exposta neste ou naquele local, para este ou aquele público, nesta ou naquela época histórica, resultarão em significações poderosamente eloquentes. Isso porque o resultado da obra material, apreendido pelo “outro” expressa exatamente sua história, do grupo a que se pertence, seu momento no mundo, sua inteira subjetividade, e essa subjetividade está ali presente e pode ser detectada também, como na música, pelo espectador. Pode ser considerado um tipo de engajamento, segundo nossa acepção, porque diferentemente do que Sartre propõe, ela pode induzir imaginativamente no olhar do outro conteúdos de diversos tipos de motivação. Por analogia, também a pintura ou a poesia ocupam esse espaço, na mesma consideração. Tintas não são pinturas, cores ainda não são pinturas, como corretamente asseverou Sartre mas como no exemplo dado, do casebre, que “ainda não é nada” porque não pode convencer ninguém, há um equívoco por se excluir nessa análise o contexto em que tal casebre surge. Nenhum desenho, pintura, som ou escultura surge isolado de um contexto ou abstratamente, no tempo e no espaço. O contexto é inevitável. Do mesmo modo, letras ou palavras soltas podem ainda não ser poemas ou conteúdos passíveis engajar ninguém, porque segundo o filósofo nada diriam a princípio sobre a miséria humana, riqueza, felicidade, etc embora possa ter sido essa a intenção original do pintor, do poeta . Como explicitado no caso da música e da escultura, o mesmo raciocínio crítico se aplica a essa abordagem a nosso ver superficial sartriana, porque letras soltas, assim como tintas, cores, pedaços de madeira ou pedra, etc de fato ainda não é nem mesmo poema, e por si só, dizem absolutamente nada. Contudo, palavras dispostas aleatoriamente ou de forma encadeada , com sequência intencional, tudo isso já não são mais apenas palavras soltas e constituem sentido e significação por conta do contexto. A escolha desta ou daquela palavra, bem como seu lugar na geografia do poema, antes ou depois, ou ao lado, estão repletos de sentidos e subjetividades. A pintura do casebre, exemplo escolhido por Sartre, está repleta de significados, por diversas razões. Primeiro pela escolha de se pintar um casebre, segundo porque dificilmente um casebre virá ao mundo de uma tela sozinho. Sempre será um casebre com esta cor, esta perspectiva, esta mistura entre marrons, cinzas e brancos. Tem-se geralmente uma composição com grama, céu, flores, pássaros, gente ou o que for, independentemente do estilo e da forma utilizada pelo pintor para expressar sua determinada visão sobre o mundo, a obra é repleta de subjetividade histórica, individual, coletiva, e no nosso entendimento pode sim solicitar a liberdade da humanidade que a contempla na construção de um engajamento desvelador ou no  encobrimento total ou parcial da dor- de- vida pela construção de um paraíso perfeito porque previsível e distante do mundo. Nosso entendimento crítico é de que o “império da prosa” ou o termo “leitor” aplicado ao espectador da obra literatura formato prosa deva ser compreendido de forma extensiva e mais genérica como espectador, aplicado a todo contemplador-co-criador das obras de arte em geral, porque obra de arte não é o objeto em si mesmo, mas a imagem ativa e espontânea que acaba de ganhar vida, e além disso, a subjetividade participante do espectador é ela também criadora (complementar) do que propôs o artista na medida em que lhe acrescenta seu imaginário particular baseado em suas vivências no mundo, e a própria obra de arte só poderia ser entendida em sua plenitude com a presença desse segundo momento, numa espécie de “parceria”. E é exatamente nesse espaço possível para a realização do imaginário e co-criação do seu papel no mundo humano que introduzimos , arte entre as artes, a sétima arte do cinema, objetivo primeiro deste ensaio. Obviamente, não com a pretensão de situá-la geograficamente acima , abaixo ou em grau de competitividade com o suposto privilégio da prosa literária no intuito de “dirigir  o leitor”, como apregoa Sartre, mas trazendo o cinema em potencial como uma arte privilegiada em seu fazer, pelo simples motivo de que  é arte que se apropria do instrumental de outras artes para também dirigir seus espectadores para o desvelamento ou encobrimento da realidade do mundo.



ARTE RUPESTRE ,  TEATRO GREGO e CINEMA


Nossa hipótese central é a de que  o homem não se constitui no mundo sem a linguagem. É possível imaginar, nos primórdios, grupos reunindo-se em cavernas para proteção da prole, aquecimento em noites frias, criação de sua arte típica, preparação de caçadas, de guerras ou comemoração de vitórias, mas nenhum desses propósitos seria possível sem a linguagem e sem o pressuposto de que haja “outro” para contraposição com aquilo que sou “eu próprio”e este se perceba enquanto tal. O que possivelmente houve antes disso não pode ser considerado “homem”, “humanidade” da forma como a entendemos a partir de certo momento na história. O comparativo mais realista neste caso seria admitir a existência ainda mais remota de bandos de animais humanóides agrupando-se apenas por necessidades instintivas, reprodutivas, alimentares ou proteção. Portanto, dentro da característica essencial que confere humanidade aos humanos, qual seja , a linguagem, justamente por  permitir que a intersubjetividade se estabeleça, a arte torna-se definitivamente a atividade humana primeira, mais essencial e  caracteristicamente inafastável da forma própria deste ser criar sua subjetividade enquanto está no mundo. Essas considerações remetem principalmente ao conceitual sartriano de “Ser-Para-Si”, e em especial no que isso tem de transcendência,  no aspecto condicionante de que todo “Para-si” é também umbilicalmente um “Ser-para-outro” em sua gênese e em seu movimento. Como na preleção do  professor Gerd Bornheim:
(...) o para-si é constitutivamente transcendência, já que ele é o que não é e não é o que é. Atentemos agora a essa nova dimensão da realidade humana. O novo problema consiste em saber qual é a relação original da realidade humana com o ser dos fenômenos o ou com o ser-em-si. Já sabemos que o ser do fenômeno sendo a plenitude de um em-si que é o que é, permanece confinado na sua própria completude; o em-si só se refere a si próprio e desconhece qualquer modalidade de relação. Consequentemente , o problema da relação a passa a ser prerrogativa exclusiva do reino humano. “O para-si é responsável em seu ser por sua relação com o em-si, ou se preferir, ele se produz originariamente sobre o fundamento de uma relação com o em-si” (EN, p. 220). A questão básica aqui é a do conhecimento, e, nessa medida, a relação se retrai a um plano gnosiológico, embora, por outro lado, esse gnosiológico decorra da dimensão ontológica do real:  para-si, em seu próprio ser, é conhecimento do em-si; na relação gnosiológica o para-si como que se produz ontologicamente. Assim se compreende a definição sartriana da consciência: ela é “um ser para o qual se trata, em seu ser, do problema de seu ser enquanto esse implica em ser um outro que não ele”. Dessas forma, com a transcendência se incide na questão do próprio ser do para-si. O conhecimento deve ser entendido como “presença a....”. Tal presença não poderia ser atribuída ao “Em-si”; o em-si não se faz presente a nada, porquanto a presença é privilégio da consciência humana. Assim o conhecimento se verifica na presença da consciência à coisa, invertendo-se, dessa maneira, a formulação vulgar do problema. Com isso, Sartre retoma um tema já analisado anteriormente: o da intencionalidade da consciência. Não basta, entretanto, uma elucidação meramente gnosiológica desse tema: o importante está em alcançar a a dimensão ontológica da intencionalidade, saber por que a consciência é necessariamente consciência de alguma coisa. Realmente, uma consciência que não fosse consciência de algo seria consciência de nada. (...) Ora, “a presença implica uma negação radical como presença àquilo que não se é. É presente a mim o que não sou eu (EN, p. 222): o elemento essencial reside precisamente nesse “não ser”.  (...) Consequentemente,  o para-si define-se de um modo contraditório, por aquilo que ele não é. (...) o que está em jogo é a natureza do conhecimento, e o conhecimento  “é o mundo”. A realidade humana se impõe, assim, como negação radical pela qual o mundo se desvela. (...) a realidade humana desvela o ser como mundo, e esse mundo surge como a possibilidade que o para-si deve ser sem poder sê-la”. (BORHEIM, pg 74-79)


Seguindo-se à abordagem da questão do “para-si” como transcendência, ele se torna imediatamente “para-outro” na medida em que inaugura a intersubjetividade através de um novo elemento, o corpo:


Com o corpo, porém, coloca-se a questão da intersubjetividade; a natureza do meu corpo conduz  à existência do outro e a meu ser-para-outro. O estudo do outro revela mais uma dimensão fundamental da realidade humana se considerada na perspectiva da transcendência. Segundo Sartre, a realidade humana, em seu próprio ser, é congenitamente para-si-para-outro”. ( Borheim (Artaud, 1998), pg. 74-79).


Portanto, a forma essencial do homem estar no mundo é corpórea, histórica e ontologicamente social, e somente a partir daí é que se tornará possível a criação de sua subjetividade enquanto indivíduo, uma vez que ela é produto irrevogável da atividade intersubjetiva, oriunda das relações humanas. Isso  implica dizer que sem o “para-outros” não há via possível de surgimento de um “para-si” em sua plenitude, uma vez que é definitivamente a partir do “outro” que o “eu” se constitui e se reconhece. Tal preceito, além de colocar um novo ponto de partida para a história humana, ainda afunda de vez qualquer gnosiologia que pressupõe o ato de conhecer como isolado e uma propriedade inerente ao  sujeito individual, pleno e abstrato em sua capacidade cognoscitiva de uma dada totalidade absoluta. Há condicionamentos sociais para o ver, para o sentir, para o experimentar, em geral, e até mesmo para a felicidade e a dor. Implica afirmar também que, no caminho de estar na presença do outro, como é próprio da natureza do para-si, diferentemente do “em-si” que é completo e satisfativo em si mesmo, a ação de “estar à presença de...”, essa relação necessariamente terá que se estabelecer através da linguagem, porque não há como estar à presença do outro, sem que com ele se estabeleça qualquer tipo de comunicação.  Deste modo, como propomos na abertura deste ensaio, na prospecção de alguns reflexos com apoio da Arqueologia,  buscando os primeiros registros possíveis de como essa linguagem, essa comunicação pode ter se estabelecido no tempo e no espaço é que encontramos a arte ocupando largo espaço na vida e no mundo de nossa própria espécie, muito antes que qualquer perspectiva de “civilização” mostrasse seus ares. Nossa maneira primordial de “estar presente a...” parece ter sido, desde o começo de tudo, pela via eletiva da arte como linguagem ao mesmo tempo mais intuitiva, natural, sensorial e estética para representar e possibilitar o reconhecimento de nós mesmos e de nossos grupos sociais pela troca e a fixação de conteúdos que eventualmente podem assumir ao mesmo tempo caráter funcional, mas simultaneamente também podendo estabelecer a partir daí um padrão comunicativo abstrato e atemporal que possui, em sua estrutura, valores universais transcendentes capazes de tocar e sensibilizar o outro da mesma espécie que as contemplou quarenta mil anos depois de sua criação.

O lugar privilegiado da arte está em consonância com a necessidade de comunicação que constitui nossa experiência primordial no mundo, e o referencial sartriano oferece uma luz sobre o surgimento e perpetuação da natureza indeterminada do homem e do seu fazer artístico, quando tomados sobre a perspectiva do “para-si-para-outro” em sua transcendência constitutiva. Contudo, essa experiência, como é natural, não terá sido a única em amplitude e profundidade. Desconsiderando tudo que certamente se perdeu para sempre na noite dos tempos e provavelmente nunca iremos saber porque não registrado, e deixando de lado ainda parte da história antiga escrita já descoberta nos primórdios da civilização conforme reconhece a história oficial, por volta de 5000 anos atrás, há também na experiência ática , de 2500 A.C., o registro do teatro trágico grego, que a nosso ver, repete não exatamente no conteúdo, mas na forma, com suas particularidades próprias, alguns dos aspectos revelados através da intencionalidade das pinturas rupestres. Não falamos evidentemente de uma sequência, impossível, ou cópia, porque notório que não há entrelaçamento entre as culturas em tamanho lapso temporal, isso sem contar as descontinuidades culturais que habitam até mesmo uma mesma época. Contudo,  se  na introdução deste ensaio, sugerimos que as pinturas rupestres do paleolítico datadas de 40.000 anos A.C. foram a materialização da primeira experiência de que se tem notícia sobre a possível interação ritual entre homens, fogueiras, sombras e figuras de animais para criação conjunta de uma projeção artística capaz não só de estabelecer para aqueles povos que a viveram diretamente um importante referencial de seu próprio auto-conhecimento, mais ainda,  representaram uma espécie de gravação, um depoimento para a posteridade acerca de sua subjetividade, da provável forma como viviam em tão longínqua era nossos próprios ancestrais , essa experiência, do ponto de vista de sua grandiosidade, da celebração da vida e instilação do espírito da memória dos nossos antepassados, bem assim  pela geografia interna e estrutura de seu possível funcionamento, conforme narram as experiências da Antropologia Cultural, acreditamos que esse efeito também encontra ecos  no teatro trágico da Grécia clássica, num lapso de descontinuidade temporal de quarenta  mil anos, no germe do que hoje se convencionou chamar de “cultura ocidental”: o teatro grego que possui elementos semelhantes de representação, figuração e evocação da vida de tamanha magnitude , e foi capaz de se utilizar de forças tão poderosas quanto aquelas originalmente ensejadas pelos “homens das cavernas” para procurar reviver, no palco, uma representação das terríveis forças da natureza em constante interação com  o mundo humano, mediando-se esse rico espaço pela figura dos deuses. É possível encontrar, na narrativa de diversos filósofos, poetas e historiadores antigos, tanto gregos quanto romanos do período clássico, características essenciais desse teatro, e especialmente no que diz respeito á capacidade catártica das tragédias e sua intencionalidade fortemente transformadora do imaginário e da realidade humanas, através da assimilação e vivência dos mitos. A construção desse tipo especial de teatro, com sua arquitetura, a elaboração elevada do teor de sua peças, a presença de determinados elementos cênicos em detrimento de outros, tudo isso constitui uma estratégia dramática para criar um efeito sobre o público, provavelmente muito semelhante, em resultado, à experiência vivida pelos homens das cavernas em seus rituais em torno do fogo no contraste das suas sombras contra as paredes.  Com base nessa transcendente experiência humana, sobretudo criadora e afirmadora de uma forte subjetividade, na medida em que por si só é uma experiência que registra na história os sujeitos de sua época na sua dinâmica e interativa relação com seu mundo, e ao mesmo tempo, devolve instantaneamente a experiência enquanto “obra” produzida individual ou coletivamente para os indivíduos ou para aqueles grupos na forma de aprendizado e conhecimento sobre si mesmos enquanto a própria experiência se faz,  ora  propomos que o cinema, essa arte tão recente em surgimento na história da humanidade, é ao mesmo tempo não a única na contemporaneidade, mas a que possui melhores condições de reviver o impulso ancestral que em um dado momento no tempo colocou nossos antepassados dentro das cavernas, desenhando em paredes e dançando em volta de fogueiras nos seus rituais de preparação para a vida, o mesmo impulso que levou aquela brilhante civilização ática a iniciar a cultura no mundo ocidental com seu teatro trágico. Com efeito, dentre nós é o cinema, por sua natureza própria, ao se apropriar do instrumental de outras artes, como as cores, o desenho e o movimento da pintura e da escultura, o som das falas e da música para ambientação e sonoplastia, e finalmente o teatro para a representação de toda a linguagem gestual e a apropriação do texto, com as possibilidades infinitas que propõe todo tipo de narrativas, quer o texto seja usado como única narrativa, quer o texto seja utilizado como apoio para uma narrativa que também pode ser mais sonora ou predominantemente visual, a sétima arte tem o potencial para reviver, numa sala de projeção escura diante de seu público o mesmo espírito coletivo e transcendente que antes foi ensejado pela arte rupestre diante do “homem primitivo” e pelo teatro trágico grego na antiga Ática. É o cinema que tem todas essas condições, por trabalhar simultaneamente em diversas fontes de estímulos a possibilidade de ter seu objeto apreendido por muitas percepções diferentes e complementares. Contudo, uma vez considerada essa possibilidade, é necessariamente isso que ocorre, e a sétima arte enfim ocupará sempre seu espaço, fazendo valer os recursos de sua natureza privilegiada para que se criem as condições ideais para assim se tornar uma “pedra de toque’ universal e poderosa? Tal poder criativo é sempre usado para, de alguma forma desvelar a realidade ao homem que a circunda e nela está visceralmente mergulhado, de modo que a partir dessa ciência do mundo em-si ao seu redor, este consiga de alguma forma conscientemente modificá-lo? A uma simples pesquisa histórica dentro da cinematografia não é difícil perceber que nem sempre tal objetivo é atingido, e em grande parte das vezes, para não dizer a maioria, tal atributo de conseguir agrupar em si mesma o mecanismo e o encanto de diversas artes como a música, a pintura, o movimento e o teatro acaba sendo utilizado deliberadamente como forma de perpetuar nos espectadores um eterno estado de alienação em vez de magicamente desvelar-lhes o mundo. Neste caso, paradoxalmente, a arte, então, a despeito do seu enorme potencial, torna-se o maior exemplo da mais pura alienação porque não solicita no seu espectador nem mesmo uma fração de sua liberdade construtiva ou imaginativa, mas atuando de forma contrária, ainda tenta impedir que esse desvelamento ocorra.


ANTROPOFAGIA E PEDRA-DE-TOQUE: O CINEMA COMO “ARTE QUE SE ALIMENTA DAS ARTES”, E COMO ELEMENTO PRIVILEGIADO PARA O DESVELAMENTO DO MUNDO


Birdman” (2014) , o filme escolhido para o foco temático da análise deste ensaio, obviamente, não foi o primeiro nem será o último filme onde a proposta de um determinado engajamento que traz no seu bojo uma certa noção de desvelamento da realidade se apresenta como forte apelo à liberdade do espectador. Há , dentro da história do cinema, em diversos períodos, estilos e formatos, outros tantos que com muita qualidade e mérito também se encaixariam nesse perfil. Correndo como sempre o grande risco de cometer uma grande injustiça, deixando de lado brilhantes olhares cinematográficos mais alternativos e em nada menos relevantes, para ficar apenas em alguns exemplos dentro do âmbito discursivo deste trabalho, citarei de passagem apenas alguns exemplos do que alguns chamam de “grande cinema” “super-produções” ou clássicos: “Metrópolis” , de Fritz Lang, “Tempos Modernos”, de Charles Chaplin, ou os contemporâneos “Matrix”, “Beleza Americana” , “Dança com Lobos” e “Clube da luta”. A escolha desses exemplos, em particular, se deve ao fato de os considerarmos , dentro da história do cinema, como ações ou momentos privilegiados pela proposta  de “engajamento” dos seus respectivos projetos. Como o condutor desse projeto dentro da realização de um filme normalmente é o diretor, no que se costuma chamar de “cinema de autor”, consideraremos, apenas para efeito de análise, que esses filmes são os ‘escritos” de seus respectivos diretores dentro de um ou mais propósitos de realização. Todos esses filmes, cada um à sua maneira, utilizando uma linguagem de simbologia e analogia própria através de seus atores, sua fotografia, sua sonoridade e trilha incidental (os dois primeiros ainda não têm voz e a motivação cênica e´ passada ao espectador por escrito, em intervenções regulares e explicativas à moda clássica do cinema mudo), e a escolha de cenas representativas de seu meio histórico, procuram desvelar o funcionamento da máquina do mundo ao seu público, e o fazem de forma particularmente bela, única, artisticamente engajada, numa melhor escolha de palavras. Em “Metrópolis”, como em “Tempos Modernos”, que estão entre os primeiros clássicos do cinema mudo, Fritz Lang e Chaplin respectivamente mostram como é por dentro, como funciona e como se reproduz o sistema capitalista, exibindo suas estruturas, sua história e personagens emblemáticos. Retratando o período avançado da “revolução industrial”, revelam a exploração desmedida do trabalho humano, a necessidade do acúmulo de lucros e sua injusta divisão, a alienação pelo trabalho mecânico e o funcionamento dos mecanismos de poder que pretendem legitimar e manter a ordem, para que tudo continue funcionando bem. “Dança com Lobos” exibe com grande realismo boa parte da história dos Estados Unidos da América em sua dura expansão para o Oeste, nos séculos XVIII-XIX, as guerras sanguinárias , a conquista árdua  dos imensos espaços físicos , a intolerância com o outro, o diferente, e a necessidade de extermínio gradual dos indígenas para que o branco de origem européia se afirmasse pela força das balas e da Bíblia. “Beleza Americana” revela , por sua vez, já na sociedade contemporânea, as angústias existenciais de indivíduos pressionados pela alta competitividade na sociedade de consumo, e de como agregar suas vidas em torno desse projeto central pode trazer frustrações, sofrimento e desnorteamento permanente, além de uma solidão insolúvel. “Matrix”, usando efeitos especiais inéditos e ambientação virtual por se tratar de um filme de ficção científica, retrata uma distopia futurística onde o mundo, caótico e lúgubre, que perde completamente o sentido do humano ao ser dominado por máquinas inteligentes. A partir daí, o humano, antes senhor e algoz do seu mundo, agora é apenas vítima, um substrato energético e orgânico sobre o qual se ergue a nova civilização cibernética, e enquanto seus corpos alimentam o sistema, suas mentes vivem artificialmente alimentadas por programas de computador que simulam o que seria uma “vida real” e satisfatória para os padrões de uma sociedade contemporânea. Por incrível e paradoxal que pareça, em alguns momentos é dada a esses humanos a escolha de sair dessa vida morna acalentada nos úteros artificiais criogênicos e alimentada por programas imaginativos, quando surge a opção de que eles “tomem a pílula vermelha ou a pílula azul”, sendo uma a responsável pelo desligamento do sistema e lançamento brutal de si mesmos no mundo, com tudo que tem de contingente e caótico, e a outra o prosseguimento regular dos sonhos condicionados artificiais. E o que escolhe a maioria? “Clube da luta”, por sua vez, é filme com um projeto muito mais ambicioso do que o título possa sugerir, retrata a vida angustiante e banal de um sujeito no seu cotidiano urbano: escritório, prédios, consumo desenfreado, mediocridade, vazio existencial. Em dado momento, ele passa a encontrar sua justificativa de vida na violência pura e bruta das lutas corporais, bem como a legitimação espiritual na fomentação auto-alimentadora das gangs fascistas com seus lemas ideológicos rasos. O filme expõe, de diversas formas, os problemas mais comuns que acometem a maior parte dos indivíduos contemporâneos, e suas saídas tantas vezes sem saída.

É notório que  apesar desses exemplos clássicos da sétima arte que nosso entendimento considera engajada, há também o constante (senão maior) uso de seu potencial enormemente evocativo, catártico e apelativo para realização da finalidade em sentido contrário. Nesses casos, há também diversos exemplos dentre os quais destacamos por sua simbologia três momentos extremamente marcantes que são ao mesmo tempo estereótipos : Num  primeiro momento, na década de 10-20 , o cineasta-poeta-documentarista Dziga Vertov na Rússia e a propaganda pós-revolução soviética para consolidação dos ideais comunistas, principalmente depois que Lênin decretou por discurso ser o cinema o principal meio de divulgação da nova ordem social recém-instalada. Um segundo momento, na ascensão do nazismo ao poder na década de 30 na Alemanha, com Leni Riefenstahl, com total apoio de Hitler para utilização do cinema como meio de conhecimento ideológico e convencimento do povo alemão sobre a superioridade dos ideais nazistas, da pureza e da força da raça ariana, da inferioridade de negros, judeus e deficientes, além de outros valores próprios dessa ideologia. Num cenário talvez menos devastador em termos humanitários, mas não menos problemático enquanto proposta, temos hoje uma espécie de terceira via, massivamente utilizada nos nossos dias, notadamente coincidente como avanço da “indústria cultural” americana depois da segunda guerra mundial,  que tem na  função “entretenimento” sua maior justificativa, e é aplicada indistintamente pela indústria cultural que traz o cinema em seu bojo, possivelmente como principal produtor e replicador de padrões que se retro-alimentam. O termo “entretenimento” é bastante inocente e remete apenas à superficialidade, por uso corrente, mas considerando-se o poder que a arte possui no caminho original de evocar o olhar e a atitude do espectador, e como arte, de permitir a criação de linguagens que lhe conferem extrema subjetividade á medida em que se reconhece no outro que vive a aventura numa tela, e o reconhecimento do outro traz necessariamente reflexos sobre si mesmo, numa relação entre para-si-para-outro inafastável, a função “entretenimento” quando se torna tendência e motivo da existência volumosa e pujante de um dado fazer artístico assume, de fato, um papel muito maior do que o simples nome sugere. Seria possível enumerar diversas categorias ou formas diferentes pelas quais essa função “entretenimento” que é umbilicalmente ligada à proposta de “desviar o olhar do mundo” em vez de “captar o olhar para o mundo” assume na realização cinematográfica, mas que no momento fogem ao objeto deste estudo. Entretanto, em especial, dentro dessa indústria cultural do cinema, pela sua prevalência, os filmes retratando “super-heróis” parecem ter  ganhado nas últimas décadas uma atenção especial, por diversas razões dentre as quais podemos verificar: a alta sofisticação dos efeitos especiais, que criam uma ambiência hiper-realista para a sua apreciação, a baixa qualificação técnica dos recursos dramáticos exigida dos atores normalmente destinados aos papéis mais representativos, a ampla repercussão mercadológica e midiática dos filmes produzidos praticamente sem restrição de faixa etária, a linguagem simples e direta característica dos filmes de ação, que em vez de diálogos ou situações complicadas ou até ininteligíveis que representem em última instância a própria complexidade do viver, colocam na tela mensagens simples, problemas objetivos que demandam respostas objetivas e imediatas, e cujo desenlace é geralmente interceptado pela ação contínua e movida principalmente a adrenalina e emoção, sugerindo sempre a ação como solução para qualquer situação, e simulando a resolução dos próprios problemas que apresenta de uma maneira descomplicada, por algum personagem detentor de super-poderes a quem cabe definitivamente “salvar” a humanidade de si mesma.

Inicialmente aventamos a hipótese de que nas cavernas do Paleolítico ou no teatro grego trágico, a força da natureza ou dos deuses misturava-se de alguma forma intensiva com o humano, revelando as excepcionais estéticas citadas, ora por representações pictóricas em torno de fogueiras e paredes de pedra com alto poder evocativo, ora em palcos estratégicos com personagens e discursos com alto poder evocativo, objetivando a pedagogia de bons augúrios sobre ações futuras ou celebrações gloriosas em homenagem e agradecimento por ações passadas, a previsível catarse ocorria em prol de uma coletividade cuja subjetividade era fortemente forjada e replicada exatamente nos momentos em que essa arte se mostrava. Hoje, contudo, nosso entendimento é de que nas salas de cinema, os filmes de entretenimento, com grande preponderância da temática de super-heróis, dominam o cardápio da maioria esmagadora das propostas, orçamentos, espaço dos estúdios e marketing,  com resultado inteiramente diverso do que propunham aquelas artes ancestrais, e com propostas visivelmente limitadoras em face de todo o potencial comunicativo e intersubjetivo que possui o cinema , porque tende a propiciar uma total alienação do olhar do homem sobre si mesmo e sobre o mundo, retroalimentando-se enquanto indústria e modo específico de produção cultural. É problema que numa “sociedade livre” , onde supostamente existem simultaneamente tantos outros meios de escolha, cabendo ao indivíduo optar por si mesmo, isso ocorra? Entendemos que o problema está na proporção em que isso ocorre. A princípio, a diversão, entretenimento “puro e simples” não é um erro, e por sua vez, mesmo tentando mascarar aquilo que não quer revelar, sua escolha ainda é uma escolha, e poderá falar mais dentro de um espaço que a si tinha reservado o silêncio. Contudo, se efetivamente todas ou quase todas as possibilidades inerentes à sétima arte são ocupadas e destinadas a produzir continuamente entretenimento de alienação em massa, uma vez que pretendem privar essas massas da experiência reveladora do mundo, e isso ainda não é um evento particular ou aleatório, mas tornou-se um “fazer” predominante no espaço potencial e indeterminado de uma dada arte, então sim, isso  passa a se tornar um motivo de preocupação não apenas política, histórica, mas filosófica, existencial, e pensamos que uma vez mais a fenomenologia Sartriana é instrumento fundamental para apreensão e modificação dessa realidade. O que mais nos interessa pelo motivo deste ensaio, e aqui está a nossa justificativa pelo filme posto em observação mais profunda, é o apelo ideológico, “existencial” que a figura do “super-herói” representa no imaginário da maioria das pessoas que normalmente são o público-alvo desse tipo de obra.


BIRDMAN” ( A INESPERADA VIRTUDE DA IGNORÂNCIA.)


É justamente nesse contexto que “Birdman” destaca-se não por ser apenas “mais um filme de super-heróis”, mas pelo contrário, por representar na verdade uma imensa crítica do sistema feita por dentro do próprio sistema, o que contemporaneamente se denominaria de “desconstrução” de padrões. Revela-nos a história de um anti-herói, ex-protagonista de um filme de super-heróis. Já na  abertura do filme, enquanto surgem na tela os primeiros créditos de produção e distribuição de Hollywood, ouve-se ao fundo a marcação de uma bateria acústica, solo, num ritmo desconhecido e improvisado. O baterista, que nesse momento o espectador não vê, apenas ouve,  ataca com bumbo forte, caixa seca, predominância de tambores e poucos pratos. Não há melodia, e o ritmo, quebrado, alternado, imprevisível, chega a ser irritante pela descontinuidade. Antes que o andamento percussivo termine e antes mesmo de rodar a primeira cena, propriamente dita, surge na tela um fragmento de texto provocativo, de autoria do escritor americano Raymond Carver* : “ _E você, conseguiu o que queria desta vida, apesar de tudo? _Sim, eu consegui. _E o que você queria? _Chamar-me de querido, sentir-me amado nesta Terra”. Ambas as coisas, tanto o andamento descompassado e improvisado de bateria acústica (às vezes mais comedida, sugerindo marcação de Jazz, ás vezes mais dramática,  caótica em sua expressividade), quanto os questionamentos de cunho existencial trazidos à tona pelo texto denso de Carver  (Carver, 2009), num romance que versa sobre o complexo tema das relações afetivo-amorosas humanas, marcarão fortemente o tema central de “Birdman”. O primeiro, mais ao fundo, ocupando o lugar de som incidental num filme que não tem uma trilha sonora específica, vai conduzindo as sensações orgânicas de ritmo, pulsação e adrenalina das cenas. E o segundo,  que nos mostra a peça de teatro que é ensaiada e produzida pelo personagem principal, “Riggan Thomson” (interpretado pelo ator Michael Keaton) pelo seu tom carregado e dramático, surge como o tema central do excelente filme num trabalho de direção primoroso de Alexandre Iñarritu, que vai usar e abusar da metalinguagem para conduzir críticas e percepções de diversos olhares do “outro” sobre o que se produz, tanto no cinema quanto no teatro, e exercer plenamente sua liberdade criadora enquanto o conjunto de quadros temáticos que compõem o filme se torna, ao fim, “um olhar” crítico sobre a produção cultural contemporânea, a indústria do entretenimento de massas tendo os “filmes de heróis” como referência principal e a alienação entorpecente que a acompanha desde o berço.  Essa metalinguagem se apresentará de diversas formas, tanto quando o que fala discursa sobre sua própria história como também no instante e que o olhar do outro é solicitado a ser uma visão crítica sobre o que está sendo produzido como se fosse um “making off”. Na sequência, surgirão frequentemente  diálogos do cinema falando sobre o teatro, como no tema central em que se ensaia uma difícil  adaptação do romance de Carver, haverá o cinema falando sobre o próprio cinema, como na crítica aos filmes caros e fúteis  de super-heróis hollywoodianos (berço aliás do próprio filme que ora se estuda), cinema de massas que privilegia efeitos especiais e sequências intermináveis de ação em detrimento da qualidade dos atores, do roteiro e dos personagens, ou essa abordagem ainda será percebida  na fala do teatro sobre o cinema, na medida em que a arte cênica se coloca como um meio tradicionalmente superior em seu “status” dramático, porque devido a suas características próprias, em tese estaria melhor qualificada para tratar com maior profundidade e extensão da condição humana, mas isso sem contudo conseguir se livrar dos seus próprios críticos de teatro “especializados”, que voluntariamente ou não, operam como uma devastadora força castradora sobre iniciativas espontâneas e alternativas que não se encaixem no “stablishment” pré-calculado.

Ressalte-se, entretanto, que o objetivo deste ensaio, por várias razões, não é se colocar como mais uma crítica de cinema, apesar de considerarmos a sétima arte nos dias de hoje, senão o melhor, ao menos um dos melhores e mais privilegiados meios  de representação possível da comédia e da tragédia humanas, por diversas razões. É apenas nesse sentido, portanto, em que o cinema surge como uma boa oportunidade de permitir a inflexão sobre temas de relevância existencial e filosófica, agindo de forma poderosamente evocativa, na medida em que apela diretamente ao emocional do espectador, que este ensaio se ocupará das possíveis analogias da obra em questão , utilizando-se para isso de alguns referenciais filosóficos numa proposta para “ler” o brilhante filme de Iñarritu. A nosso ver o cinema abre, com esta oportunidade,  um rico espaço para uma leitura fenomenológico-existencial da vida contemporânea,  seus dramas e coloridos próprios, conforme tentaremos explorar numa aproximação “pelas beiradas” sem que seu objeto seja destruído ou de alguma forma “absolutizado” por opiniões de caráter pretensamente definitivo. A obra de arte é infinita em seus significados, apreensões e está sempre por se fazer, a cada vez que alguém liga o “Play”. Aqui entra em cena a revelação de aspectos essenciais da produção cultural, uma atividade que por si só gera valores e reproduz valores que em larga escala representam  ou induzem o pensar e o sentir de uma sociedade em dado momento, e sobretudo  é também uma atividadde multiplicadora-criadora dos valores que por ela serão seguidos ou refutados em outro momento.

Neste filme, Raymond Carver, com seu texto, o autor escolhido pelo diretor do longa para compor o tema de destaque através da montagem teatral que o filme narra, reproduz  o drama da condição humana, tomando como base um tema relacionado ao amor, e por sua vez, o roteiro do filme mostra todo o contexto da adaptação, montagem e encenação de uma peça com caráter “alternativo”, em meio às armadilhas da indústria da cultura de massas. Ao colocar os dilemas, dificuldades e toda a trajetória de um artista oriundo do show-bizz, o protagonista “Riggan Thomson”, antes alçado aos mais altos degraus da fama e do reconhecimento rápidos pela própria indústria do entretenimento (o que não se vê no filme, mas se deduz por informações paralelas), e de repente, o vemos ressurgindo depois de um longo hiato , mais maduro e mais consciente de suas possibilidades, Riggan agora é essencialmente diferente do que era antes, porque em algum lugar de sua própria história houve uma espécie de ruptura com o passado. Recusa-se terminantemente a dar vez a mais uma sequência do filme em que seu herói foi criado. Ele não quer filmar o que seria “Birdman”, parte 4, e é a partir daí que começa sua nova história. As dificuldades inerentes à ruptura e à mudança de direção são muito maiores.  Ele, enquanto autor-ator-diretor é mais decidido , mais maduro e mais crítico, mas ao mesmo tempo bem mais velho, agora sem o apoio do público e sujeito mais do que nunca ao “mundo sério” da cruel crítica especializada, da falta de financiamento e das demais dificuldades inerentes para lidar com todos os aspectos de ser simultaneamente ator, diretor e produtor de seu próprio trabalho. Todo esse trajeto que envolve tanto a ruptura de Riggan com seu passado, bem assim a montagem de uma peça teatral com o conteúdo denso de um escritor como Carver, e a inter-relação entre indústria cultural do entretenimento e tentativa do resgate da humanidade perdida do sujeito em direção a uma possível vida mais autêntica em um mundo que cada vez mais alienante que contribui para que justamente  o contrário ocorra, cria um ambiente propício como poucos para a indagação e reflexão filosófica e existencial. O objetivo deste ensaio não é outro senão encontrar e identificar os elementos de reflexão trazidos pelo filme ou ao menos alguns deles, uma vez que “uma leitura” certamente não esgota “as leituras” possíveis,  e  numa base mais ampla procurar delimitá-los, com algum suporte teórico, dentro da linha fenomenológica-existencial sartriana. Tal oportunidade, a nosso ver, se torna ainda mais interessante e talvez mais válida, quando percebe-se , de início, que todo esse processo foi iniciado justamente dentro daquele que poderia ser considerado o “lugar de produção” por excelência, da maior parte de todos os bens culturais de massa nos dias de hoje, ou seja, dentro dos Estados Unidos, e especificamente dentro dos estúdios do grande cinema de Hollywood.

Essa  aproximação pode ser feita de diversas formas, é evidente, e como foi dito, não se pretende em momento algum esgotar ou limitar seus pontos de entrada ou mesmo o alcance possível da reflexão. O estudo pormenorizado do filme  nos remeteu fortemente a algumas das noções criadas e desenvolvidas ricamente por Sartre, tanto na obra “A Náusea”, quanto em conceitos mais elaborados no sentido propriamente filosófico, que estão mais presentes em outros trabalhos, conceitos fundamentais como “consciência”, “engajamento”, “projeto”, “liberdade”, “má-fé” e “responsabilidade”, dentre outros, estão imiscuídos, às vezes de forma sub-reptícia dentro do roteiro do filme “Birdman” ou às vezes  de forma escancarada mesmo, a ponto de gritarem com sua voz existencialista a plenos pulmões para um universo que há muito parece ter se esquecido da grande relevância desse pensador para uma melhor compreensão da nossa época e do “papel” do homem diante da vida. Neste ano de 2015, onde  completam-se justamente 35 anos da morte de Sartre, é mais do que oportuno o resgate do seu pensamento como uma fonte inesgotável capaz de propiciar importantes releituras da realidade, em um mundo cada vez mais dinâmico onde o tempo é coisa cada vez mais rara, e a consciência coletiva parece dissolver-se cada vez mais em pensamentos narcóticos , quer sejam de ordem religiosa, científica, política ou moral.  O mesmo mundo que hoje, simultaneamente e coincidentemente, naufraga na cultura de massas transformada cada vez mais em entretenimento superficial para consumo fácil.

Há diversos pontos em que esse olhar fenomenológico poderia entrar como possível leitura desveladora de uma realidade obtusa . Uma representação na tela ou no palco, que por sua vez remete ao mundo real, mostrando como a arte, em qualquer de suas vertentes, pode ter um importante papel para que, na inter-relação do humano consigo mesmo e com o outro, seja possível uma maior aproximação do seu próprio ser através da linguagem. No caso, a linguagem privilegiada do cinema que conta entre seus instrumentos a imagem, o movimento, o som e o texto.

Os pontos apresentados pelo filme “Birdman”,  e que a nosso ver se relacionam de alguma forma com parte da tradição filosófica, e mais propriamente fenomenológica, em consonância com um projeto de engajamento e desvelamento do real pela arte, pontos estes  que entendemos fundamentais, são os seguintes: Em primeiro lugar, a frase do escritor Carver, na abertura do filme, e que é por si só uma referência direta ao tema existencial, fenomenológico, uma vez que leva ao questionamento humano tão comum e tantas vezes evitado sob pretexto de ser problemático demais: “E você, conseguiu, apesar de tudo, o que queria desta vida (...)?” Afinal, qual é o objetivo da vida? Será que ele existe? E uma vez descoberto, ele poderia ser realizado?  E o que parece relacionar-se sobremaneira com o tema sartriano é a condição imposta pela frase: “Apesar de tudo”? Ora, o perfeito paralelo dessa frase: “o que você vez com o que fizeram com você?” é abertamente existencialista.  Mostra-se aqui, de forma cristalina, o papel de todas as condições “negativas” ou “desvirtuantes” que poderiam caracterizar o mundo, tanto exterior, no que representam as forças condicionantes do meio social, da relações de trabalho ou afetivas, quanto esse condicionante poderia também ser oriundo de uma subjetividade já alienada, passiva, que não consegue mais se opor ou discernir por um possível senso crítico “contra o que” exatamente deveria se opor ou lutar , para chegar aonde pretende, quais seriam enfim os tipos de obstáculo contra o qual terá que lutar o homem para que ao fim  consiga atingir seus objetivos de forma mais autêntica. Sem embargos, esta poderia  ser considerada uma das perguntas mais importante do existencialismo sartriano, tema extremamente presente em “A Náusea”, “Que é a literatura?” e é claro, em ‘O ser e o nada”, e que subjaz ao texto cinematográfico apontado.

Logo em seguida há outro ponto ao qual ora dirigimos nosso olhar, na primeira cena propriamente dita, com o protagonista sentado em seu camarim, se preparando para mais um ensaio sobre a peça que atualmente encena, e surge a máxima gravada numa pequena  folha colada no canto do espelho do ator “Riggan Thomson”, com os dizeres : “Uma coisa é uma coisa, e não o que se diz dela”. Ora, isso também pode ser considerado com muita propriedade um relevante tema fenomenológico, pela sua pertinência com o universo teórico legado pelo filósofo Edmund Husserl, e sobremaneira um tema Sartriano, na medida em que, a nosso ver, procura restabelecer a questão original que deu à fenomenologia enorme liberdade epistemológica/ontológica e certamente uma “superioridade” no campo temático sobre as filosofias “sistemáticas” que a precederam. Aqui, põe-se claramente a necessidade da superação da dicotomia entre psicologismo e materialismo, um velho debate existente desde os primórdios da escola filosófica no ocidente, entre racionalistas (idealistas) e empiristas, e que subsistiu praticamente incólume até a modernidade, antes que Husserl, Heidegger  e Sartre viessem propor de forma bem sucedida a sua superação. A frase denota que uma coisa , ou seja, o mundo exterior, os objetos, árvores, animais , tem sua existência independentemente da visão humana que os contempla. Não “dependem”, portanto, do olhar humano para que existam. Do mesmo modo, no raciocínio invertido, deduz-se que pela sua existência própria, exterior, não é ela por si só, a coisa, que “impregna” a mente humana, e como tal, essa coisa passaria a ter uma existência mental, psicológica, dentro da mente ou do “espírito humano”.

O terceiro ponto de direção do olhar, que julgamos relevante para a maior aproximação fenomenológica e existencial, reside no sugestivo subtítulo dado ao filme : “Da inesperada virtude da ignorância”, que faz uma paródia intencional ou não, mas de todo modo bem oportuna com os tempos em que vivemos, pois remete em primeiro lugar ao conceito de alienação de massas (sempre perigosa alienação de massas, conforme nos lembra uma simples leitura da história trágica e recente da humanidade), e por meio dele à atitude deliberada de “má-fé”, a tentativa de fuga ou negação da realidade do mundo e simultaneamente  desafia  de forma irônica  o cânone maior da filosofia e do pensamento racional no ocidente, o famoso preceito Délfico apropriado pela razão Socrática do “Conhece-te a ti mesmo”. Ora, a frase do subtítulo é debochada e desafiadora porque na nossa tradição intelectual, muito assumida pelas escolas filosóficas, a ignorância jamais poderia ser uma virtude. Muito pelo contrário, nossa civilização baseia-se , essencialmente, na ideia socrático-platônica de que o “conhecimento”, entendido mais como um conhecimento lógico, racional, representa a real supressão da ignorância,  e portanto torna-se a maior virtude desejável, uma vez que ele é que será o definitivo portador da verdade, do bem, do belo e da moral. Todos esses pressupostos, associados ao constante recurso da metalinguagem, que coloca magistralmente os personagens de cinema continuamente em perspectiva, observados de forma mais rigorosa e terrivelmente crítica pela ótica do teatro,  tornam o pano de fundo do filme “Birdman, ou: “A inesperada virtude da ignorância” um contexto invulgarmente rico para leituras e releituras sobre o homem e seu papel no mundo.

A “metalinguagem”, a nosso ver, recurso rico e muito bem utilizado pelo diretor no intuito de “colocar em discurso’ as críticas da arte sobre si mesma, e´ instrumento fundamental para dar ao filme “Birdman” uma riqueza ímpar em sua construção. Fazendo um parênthesis a respeito desse aspecto, entendemos que a metalinguagem, em sua forma e utilização no filme em comento assemelha-se conceitualmente ao movimento que executa o “Para-si” sartriano, na medida em que é dele a tarefa, enquanto presença-ao-mundo, de criar o conhecimento, e perpetuá-lo, fazendo dessa atividade inerente ao seu próprio ser as razões de sua presença na história e a motivação voluntária e coletiva pela cultura, daquilo que por natureza é indeterminado em sua essência. O movimento da metalinguagem no cinema, e isso aparece de forma brilhante no recurso utilizado por Iñarritu em “Birdman” é semelhante ao movimento e à posição da consciência “Para-si” :simultaneamente uma consciência desveladora do mundo, e uma consciência de si mesma em movimento enquanto realiza o processo, porque coloca seu objeto, desvelando nesse caminho o próprio processo reflexivo de se “colocar o seu objeto”. Além de se colocar necessariamente como uma consciência para-outro, dado que a intersubjetividade é inafastável em todo contexto de linguagem ou comunicação.

O filme revela as engrenagens da indústria do entretenimento, ao colocar-se a si mesmo enquanto um filme que critica filmes, e num segundo momento introduz a linguagem teatral, mais visceral e direta, como um terceiro discurso, falando também do fazer teatro e sobretudo do cinema. Faz isso ainda quando coloca o teatro em posição de superioridade no seu elemento dramático, uma espécie de “retorno ás raízes mais puras” de toda representação cênica, e o teatro então se torna um crítico do cinema e do próprio teatro, e ainda faz isso de modo irônico, para não dizer sarcástico, ao expor visceralmente um ator da vida real, como é o caso do ator “Michael Keaton”, que até então fazia parte daquelas engrenagens, e que agora, assim como a viagem paralela que encena seu personagem Riggan Thomson por idealismo ou convicção, resolveu meter o pé naquele mundo vazio e tomar as rédeas de um destino mais glorioso em suas mãos. Nesse sentido é que defendemos que tomado em sua plenitude, o filme, por si só, poderia ser compreendido como uma obra de “engajamento” do seu criador, uma vez que pretende desvelar, por dentro, como se representa, como opera e como se reproduz esta indústria do entretenimento, uma indústria que por natureza fabrica alienação, tão poderosa e influente nos nossos dias, solicitando nessa abordagem fortemente a liberdade do espectador pela qualidade temática e estética do filme.

Um breve resumo do filme mostra que Riggan Thomson, mais conhecido pelo grande público como o popular “Birdman” (Homem-pássaro), é um ator de meia-idade que atingiu o auge da carreira profissional no cinema uma ou duas décadas atrás, com um personagem de super-herói de massas, e a partir de certo momento, “cai em si”, atingindo uma grande  insatisfação com o passado e alguma consciência de liberdade criadora dentro da sua profissão de ator quanto a um projeto de futuro que pretende mudar essa trajetória. No tempo presente, que é onde se passa o filme, Riggan já surge em cena repudiando  o seu próprio passado. Um passado que o conduziu até aqui e, ainda que tenha se mostrado em termos mercadológicos uma estratégia vencedora durante a maior parte do tempo, terminou por revelar-se existencialmente fraca, insatisfatória do ponto de vista de “realização” do artista. Riggan sente-se vazio, fútil, entediado, sem outras motivações na vida. O filme não dá maiores detalhes de como foi exatamente a aproximação do ator-diretor-produtor Riggan com o texto visceral do escritor Raymond Carver, o atual objeto de sua adaptação para o teatro, nem explicita muito bem essa história de vida pessoal do próprio ator no passado, mas deixa entrever o tempo inteiro que é o paralelo com mais uma dessas histórias tradicionais das mega-estrelas do cinema, que fazem fama rápida e milionária na tela, encenando filmes de ação de um cinema em escala industrial do entretenimento. Riggan, contudo, surge em cena já demonstrando cansaço e insatisfação com o passado e, mesmo tentado por questões de natureza financeira ou na suposta retomada do brilho do passado perdido através de uma providencial reintrodução do super-herói a que deu vida nas telas, ele ainda assim altera seu próprio destino ao escolher a saída mais difícil e ao pretender introduzir uma peça dramática, mudando-se do cinema para o teatro e utilizando como livro-texto o denso romance do  escritor americano Raymond Carver : “ Iniciantes: Do que falamos quando estamos falando de amor?” Um drama que trata da profundidade e complexidade das relações humanas. Algo mais denso e autoral, radicalmente diverso de tudo que ele já havia realizado no cinema. Riggan terá que ser corajoso para superar as limitações que o cercam, e dentre elas, talvez a maior, por ser de ordem totalmente subjetiva, a presença inafastável de um “narrador” interno, que a maior parte do tempo é representada apenas como uma voz, em segundo plano, ou mais à frente no andamento do filme, será representada como a própria sombra de Riggan, algo que já tomou parte de sua personalidade e está dificultando com que o ator definitivamente o esqueça. O super-herói Birdman que se materializa como um “alter ego” por efeitos especiais em asas e formato dos seus filmes antigos, para aconselhá-lo a retornar ao mundo de antes. Esse narrador é uma espécie de consciência do mundo exterior, que sempre tenta acorrentá-lo ao seu passado, agourando seus projetos  de futuro com visão pessimista diante de um mundo caótico, contingente e lembrando-o da calma e bem sucedida vida confortável e rica que possuía quando seguia os padrões do “cinema de massas”com seu personagem antológico do super-herói “Birdman”. Essa consciência é acusadora e ao mesmo tempo sedutora, ao jogar duro com a situação material de quase penúria em que se encontra o ator-produtor-diretor, e simultaneamente ao tentar recolocar o brilho da fama pretérita em seus olhos, como “nova velha’ possível realização segura, desde que o ator aceite o jogo da grande indústria e volte a filmar seu antigo papel. Ela estará com ele a maior parte do tempo, jamais o abandona, mas não o condiciona, como o filme mostra, no sentido de impedir sua escolha libertadora. Riggan a ouve, sabe que ela existe, conhece seu discurso tentador à maneira de “Mephisto sobre o Fausto” de Goethe, e sabe ainda que seu passado não pode ser apagado, mas ao mesmo tempo ele não o enxerga como uma espécie de barreira no tempo ou imposição de valores determinantes ou um condicionante imutável para o seu agir no presente ,porque seu projeto de futuro está em construção (nesse ponto, há um paralelo muito forte com a proposta sartriana da Psicanálise existencial exposta em “O Ser e o nada”, uma vez que tanto o condicionamento exterior é relativizado e não determinante porque enfrenta de todo modo uma liberdade humana que tem caráter absoluto e ao mesmo tempo rompe com as estruturas propostas por Freud, entre outras coisas, quanto ao papel da infância como essencializador do adulto).  Em algum momento, ele “escolhe”, mudar, e não ser mais objeto do que sua história pretérita quis fazer dele. É o próprio conceito sartriano de liberdade falando pelos gestos de Riggan: “O que importa não é o que fizeram de você, mas o que você fez do que fizeram com você”. Ele usa da sua liberdade para escolher não ser condicionado pelo seu passado de popstar bem-sucedido, e arrisca de forma ousada jogar toda essa fama, conforto e dinheiro fora em prol de um projeto pessoal desafiador. Percebe que o que havia feito até então na vida não o realizara porque não se tratava da verdadeira arte, mas apenas entretenimento fútil.  Sente que algo em si, sua consciência e sua liberdade o chamam para uma realização maior. Ele então vai passar por diversos percalços nesse caminho para alicerçar seu projeto de liberdade, desde a falta de dinheiro para financiar sua nova peça, tendo que hipotecar a própria casa para atingir seus fins. Passa por problemas de credibilidade no meio artístico, uma vez que a “crítica profissional” engessada em seus equivocados conceitos do “belo’ e “bom” geralmente não aceita a novidade do mundo, o fato de que um herói de massas possa um dia trazer a público qualquer coisa artisticamente relevante, até mesmo a ponto de deitar por terra as noções arcaicas de “belo” e “bom’. A crítica profissional, na visão do filme, tem sempre o condão de “plasmar”, “etiquetar”, “imobilizar” o objeto de sua análise pelo poder do discurso midiático e na utilização do argumento de autoridade, no tempo e no espaço. É uma crítica que não absorve mudanças, não tem dinâmica. Portanto, dentro do seu ambiente e no “papel” de exercer a crítica de conteúdo, supostamente pura, termina por reafirmar os valores limitantes que a própria sociedade impõe. Portanto, ela ocupa um papel fundamental no “stablishment”. Riggan também tem problemas repetidos com a grande mídia, a mesma imprensa que ora o apoia, ora o massacra. Distorcem o que diz, a seu belprazer, e publicam sem o menor compromisso com a verdade dos fatos ou declarações. Usam sua imagem ora para ridicularizá-lo, ora para impedir que seu novo projeto venha à tona. Eles o apoiarão, desde que permaneça no seu “status” de sucesso, estagnado, e ela consiga assim ajudar a vender mais jornais e mais ingressos para o grande cinema de entretenimento. Eles com a mesma facilidade também o massacrarão ou o deixarão no anonimato se tentar fugir das garras da indústria cultural para vôos de maior altura. A mídia não busca, evidentemente, a realização  de obras profundas ou de qualidade, que necessariamente serão feitas para poucos, o que implica dizer pouco lucro, pouco marketing. Os meios de massa querem entretenimentos superficiais com grandes lucros, para muitos. Riggan sabe, o tempo todo, que  ao passo que o grande público e o sucesso mercadológico do cinema anteriormente lhe garantiram fama, eles são apenas a repetição de atos mecânicos e superficiais que representam a forma de agir e pensar da poderosa indústria cultural do entretenimento. Ela funciona basicamente com grandes fórmulas estáticas de sucesso, alavancando personagens caricaturais de sentido raso que caem no gosto do grande público. Eles nada acrescentam a suas vidas, nada trazem de ruptura com padrões pré-estabelecidos ou nada induzem no sentido de aprimorar ou ampliar sua reflexão ou experiência do viver. Numa expressão mais feliz: por seu compromisso essencial com o mundo material, eles limitam a experiência do viver. Apenas repetem padrões pré-estabelecidos socialmente,  determinadas visões alienantes do homem sobre a sua própria vida,  padrões que impedem-no de ver as reais estruturas que movem o mundo, e não podendo enxergar como a máquina funciona, jamais poderão interferir positivamente nesse contexto. Também a crítica profissional, consciente ou não do seu espaço, atua como um desestímulo à produção do novo, desestímulo a uma reengenharia do olhar sobre estruturas viciadas, uma vez que ela também, à sua maneira, estabelece “padrões de sucesso” para um nível mais complexo de entendimento, impedindo ou criando enormes dificuldades para quem está fora e pretende entrar nesse “círculo de iluminados” mas ainda assim, ela mesma, a própria crítica, acaba se prendendo  aos grilhões de determinadas estéticas , gostos ou visões fechadas de mundo. A crítica profissional  representa mais uma das garras imobilizadoras do sistema para que qualquer tentativa do “novo” seja morta ainda no nascimento. Observe-se que, em determinada cena do filme, no segundo encontro de Riggan com a personagem que representa a crítica de um grande jornal especializado em teatro na cidade de Nova York, ele a convida para a estreia de sua peça e ela, mesmo sem assisti-la, sem analisar de perto seus detalhes, sua performance, seu desfecho, utiliza um mero pré-conceito estabelecido, independente da experiência, para informar que já tem sua critica pronta pra publicação, e afirma sem titubear que a mesma será negativa. Diante do ator-diretor surpreso pela atitude, ela diz que é importante que todos saibam que gente como ele não tenha o condão de fazer qualquer coisa relevante. É uma espécie de vergonha para tal “classe” teatral da Broadway, o templo-mor do teatro americano que ele possa receber alguém que tenha sido um pop-star.

Nesse percurso tantas vezes solitário e ingrato na luta contra o mundo que quer permanecer intocado, conduzindo-se pelo jogo das aparências que fingem uma ordem rigorosa, em-si e previsível, uma auto-realização satisfativa que não há, Riggan muitas vezes se vê obrigado a improvisar. Ora improvisa vendendo os últimos bens que lhe restam, para bancar a produção cara da peça. Ora improvisa no papel de um pai que procura se redimir no campo afetivo pela ausência na criação da filha. Ora age temerariamente, ao escolher de modo frio os atores que vão incorporar seu elenco ou do modo inerte quando reage á suposta gravidez de sua amante. Todos esses improvisos ficam fortemente marcados pela trilha de influência jazzista, onde a bateria centrada nos tambores que dá o ritmo inicial do filme, continua mais forte agora, e o som aumenta de volume, causando mais tensão. O próprio baterista e seu instrumento aparecem de passagem, em duas  belas cenas do filme. Não é por acaso que o Jazz é um estilo musical que não respeita muito a melodia(algo previsível e calculado, como ocorre na maioria dos outros estilos mais conhecidos e populares como o rock, pop, o clássico, o blues) e cria dissidência ao fundar sua própria maneira específica de propor a música, baseada principalmente no improviso. No Jazz, principalmente, diferentemente dos outros estilos, não é possível saber o que vem logo em seguida na melodia, quando o músico improvisa. E torna-se mais difícil ainda prever a sequência se o único músico mostrado é um baterista, instrumento que por definição não permite sequer criar melodias, mas apenas ritmos e notas soltas. O mundo de Riggan respira improvisação, quer em cena, para suprir falhas de personagens dentro da peça que se está montando ou mudanças bruscas de contexto, cenários, falas esquecidas ou alteradas. Ou mesmo fora dela, como as dinâmicas que ele estabelece em sua vida pessoal tumultuada.

Em dado momento, Riggan passa a contar com o auxílio inusitado de outro personagem, “Mike” , brilhantemente interpretado pelo ator Edward Norton, que com sua atuação teatral intuitiva e visceral na peça em cartaz, ratifica com intensidade o texto original com uma melhor “pegada" do romance de Carver no palco, em comparação com o ator de poucas qualidades que antes faria seu papel, e é afastado após um “inusitado acidente’. São marcantes as cenas desse personagem polêmico tanto no palco quanto fora dele, e no contexto do filme, ele atua como um catalisador em face dos planos de Riggan. Inicialmente se opõe, critica, destempera, o que força Riggan a mostrar o seu melhor para atuar e dirigir. Num segundo momento, não consegue separar seu comportamento na vida pessoal da sua vida enquanto personagem no palco. Para Mike, tudo está misturado, e não fica claro quando é que o ator surge ou o personagem vai embora. Num primeiro momento,  numa das primeiras cenas do ensaio com o novo ator, Mike  encara a plateia com casa cheia na pré-estréia da peça,  observando que algumas pessoas filmam a encenação com seus celulares, e brada “E quanto a vocês, pessoas do grande público?? Será que não conseguem ver o mundo real, a não ser pela tela de um celular”? . Bem assim há outro momento inspirado por seu protagonismo, de grande revelação e beleza ao mesmo tempo cênica (porque diz respeito ao texto autoral que se ensaia no momento), cinematográfica (porque coloca em primeiro plano uma questão de metalinguagem que perpassa toda a obra, todo o filme) enquanto  mostra-se ainda uma questão universal de natureza filosófica e existencial. A cena ocorre quando Mike é questionado por sua jovem amante , filha do protagonista e diretor da peça, Riggan, perguntando-lhe se acaso ele não teria medo de que no palco as coisas pudessem dar errado no momento de sua atuação, e ele responde depois de pensar por um segundo ou dois que quando está atuando, nada pode dar errado, porque é “ele mesmo quem está lá, verdadeiramente”, no palco, enquanto sua vida aqui fora é que é irreal, cheia de desacertos, incongruências, caos e rupturas, uma vez que se trata da vida concreta. Essa belíssima fala que remete ao genial Artaud de “O teatro e seu duplo” também lembra de forma invertida a questão existencial, em contraponto com toda representação:  quem somos, afinal?


Isso significa que há novamente magia de viver, que o ar do subterrâneo, embriagado, como um exército reflui de minha boca fechada para minha narinas escancaradas, num terrível barulho guerreiro. Isso significa que quando represento meu grito deixou de girar em torno de si mesmo, mas desperta seu duplo de forças nas muralhas do subterrâneo. E esse duplo é mais do que um eco, é a lembrança de uma linguagem cujo segredo o teatro perdeu.  (...) E isso será bem perto de um grande grito, de uma fonte de voz humana, uma única e isolada voz humana, como um guerreiro que não tenha mais exército. Para descrever o grito com que sonhei, para descrevê-lo com palavras vivas, com as palavras apropriadas e para, boca a boca e respiração contra respiração, fazê-lo passar não para o ouvido, mas para o peito do espectador. Entre a personagem que se agita em mim quando, ator, avanço em cena e aquela que sou quando avanço na realidade, há uma diferença de grau, sem dúvida, mas em benefício da realidade teatral. Quando vivo não me sinto viver. Mas quando represento, sinto-me existir. O que me impediria de acreditar no sonho do teatro quando creio no sonho da realidade?” (Artaud, “O Teatro e seu duplo”,  Martins Fontes, 1987).


Se essa proposta, apesar de toda sua intrínseca beleza, fosse admitida como verdade, e o “jogo” da representação pudesse ser compreendido e estendido nesse contexto, por analogia, colocando-nos, a nós mesmos num outro plano hipotético como eternos atores representando continuamente nossas próprias vidas, ou um outro sentido possível, seria o mesmo que retomar a questão  tão bem colocada por Sartre no romance “A Náusea”, no sentido em que o mundo exterior é caótico e real porque contingente, imprevisto, e desmorona bem debaixo dos nossos pés, e dessa forma, a arte consubstanciada na forma da arte representativa, arte cênica na visão do que pretende “Mike”, seria também uma espécie de fuga, no sentido em que Roquentin mesmo entendia ser um dos papéis da arte. O papel de dar coerência, continuidade, sentido e uma certa tranquilidade a um mundo, a uma vida, a uma realidade na medida em que , por se tratar de algo inventado,  um mero exercício do imaginário, uma obra de arte não é como a própria vida, como o próprio mundo em si, algo trágico, dramático por natureza. Mike (Edward Norton) remete, com sua fala, à presença do “sentido” final e absoluto na obra, enquanto a vida não o possui. Sugerindo a presença de uma “finalidade”, uma “Lógica”, como  coerência e necessidade, enquanto o mundo não o possui. Se é assim que a leitura dessa última fala do personagem “Mike” pode ser tomada, então temos aqui uma espécie de consonância com o texto da “Náusea”, de Sartre, pois não é de forma diferente que o protagonista Roquentin entende o papel da arte. Ambos optam pela “má-fé’, Roquentin e Mike , ao reputar a um contexto externo, que não coincide com  as respectivas rotinas de suas próprias vidas, o engendramento de um mundo próprio repleto de sentido e história, em detrimento do que acontece na realidade.


A NÁUSEA” e “BIRDMAN”: paralelos entre os personagens ROQUENTIN e RIGGAN THOMSON

Queremos pensar que a ação do personagem “Riggan Thomson”, protagonista do filme “Birdman” é, em algum grau semelhante ao que acontece com “ Antoine Roquentin”, no romance “A náusea’”. Ambos “estão no mundo”, e em algum momento já na vida adulta, sem se saber bem o porquê , surge um determinado motivador que os força a mudar suas perspectivas diante da vida. No caso do romance, Roquentin é tomado pela sensação física, emocional e psicológica do mal-estar quando percebe o quão gratuito e sem-sentido é  o homem no mundo, e daí resolve abandonar sua profissão  para tentar retomar um projeto que julga mais original e supostamente capaz de lhe dar uma compreensão mais sólida do mundo, ou quem sabe retomar um “status” de continuidade, segurança e pleno do sentido que ora entende perdido depois da grande revelação da consciência da realidade de um mundo mutante, imprevisível. Fuga ou enfrentamento, depois do surgimento do conflito angustiante instaurado pela  “Náusea”, não dá mais pra fingir que não existe o problema da condição humana. No caso do personagem Riggan Thomson, do filme Birdman, embora o filme não mostre exatamente o momento em que teria se iniciado essa tomada de consciência, sugere com bastante força  que foi uma “escolha” do ator , por si mesmo, que deliberadamente recusou um projeto de continuidade do filme anterior que lhe foi oferecido—filme este que foi produzido segundo as regras do grande cinema de ação, com excesso de adrenalina, muitos efeitos e pouca reflexão—e parte deliberadamente para uma trajetória incerta e árdua  que é montar a peça dramática baseando-se no texto de um escritor reconhecido dentro de um cenário teatral que, por sinal, não é a sua área de formação. Entretanto, essa afirmação do ator, tomado isoladamente em sua atividade, é contraditória com o conjunto da obra que se ensaia e com o próprio sentido do texto que pretende dar o autor, Raymond Carver. No aspecto geral do filme conduzido por Iñarritu, e principalmente no texto de Carver, está mais do que claro o caráter descontínuo, trágico, incoerente e sem qualquer propósito dos relacionamentos humanos e da própria vida, se tomarmos os relacionamentos afetivos e amorosos como uma espécie de centro gravitacional em torno do qual giram grande parte das questões mais difíceis e profundas da experiência humana . O próprio texto de Carver é sugestivo ao ensaiar diversas possibilidades do amor como essa forma particularmente complexa de intersubjetividade humana. No conto “Iniciantes” (Do que falamos quando estamos falando de amor” quando ele narra as mais conhecidas formas de amor, desde o amor espiritual, defendido pelo personagem “Herb”, o amor apaixonado que por vezes resvala para a bestialidade e a violência, vivido no passado recente pela personagem “Terri”, o amor como dedicação e companheirismo de longa data, vivido pelo casal de velhos que sofre um acidente automobilístico e se encontra acamado num hospital, o amor “sossegado”, vivido pelo narrador “Nick” e sua noiva, e por fim o amor amizade, representado no pano de fundo pela conversa amistosa de um grupo de amigos que se gostam, numa tarde de sábado regada a muitas doses de gim tônica.

Assim como sugere a leitura da parte final do romance A Náusea, pela atitude do personagem Roquentim, onde ele termina por perspectivar uma espécie de saída para a condição terrível de estar acometido pela contingência do mundo, na medida em que vê na criação literária um porto seguro. Não se sabe exatamente “o quê” ele quer desenvolver enquanto conteúdo, mas a forma escolhida provavelmente será o romance. A se observar as sugestivas indicações de fuga que aparecem o tempo todo no livro, uma fuga psicológica para algum lugar aprazível no exato instante em que ele é acometido pelas vertigens, pelo tédio, pelo impacto de perceber a falta de um sentido imanente do próprio mundo, tudo indica que esse romance será mesmo algo que procure “mascarar a realidade dura e crua” revelada pela náusea. Ou seja, tendo ciência de sua condição no mundo, o personagem parece volitivamente olvidar-se dele, assumindo um conceito que , para Satre, é fundamental: a má-fé. A escolha do caminho que se faz, mesmo sabendo que esta saída, enquanto “saída”, não é de fato uma superação do problema que há. Roquentin, portanto, sabendo e sentindo o impacto dessa revelação poderosa sobre a vida, e sobre o seu mundo, “escolhe” alienar-se usando a arte como subterfúgio. No entanto, essa saída não é a única, pois como pretendemos demonstrar por analogia, Riggan Thomson, protagonista de “Birdman”, a nosso ver, em algum lugar de sua vida pretérita (cujo espaço-tempo o filme não informa literalmente, mas apenas sugere), escolhe um caminho inverso para um dilema semelhante ao que enfrentou Roquentin. Rico, bem sucedido, famoso, senhor de um mundo de aparências auto-suficiente e para muitos satisfatório, ele contudo não está satisfeito. Em algum instante, o impacto da Náusea o pegou pelo caminho? Ele então decidiu abandonar aquela vida fútil, superficial, para buscar uma maior autenticidade no seu existir e nesse projeto, adotar uma concepção de arte impopular, mas mais verdadeira, crítica, desveladora do real? Ou tudo não seria apenas um jogo de vaidades, e ele, imbuído do ideal de um artista purista, com pretensões de ser reconhecido por um “talento verdadeiro” no rigoroso meio teatral, buscaria, no fundo, apenas alimentar um ego desmedido no melhor conceito da mais pura vaidade humana? Queremos acreditar que a primeira hipótese é mais fidedigna ao que o filme procura mostrar, ainda mais se tomarmos em consideração a escolha do romance eleito para a formatação da peça teatral. Carver é um autor respeitado por sua seriedade, na medida em que faz da literatura um contínuo “chamamento” à consciência da real condição humana, repleta de fracassos, contradições, anti-heroísmos e cotidianos contra a tradição da literatura comercial, que vende belos sonhos em pacotes bem embrulhados, como comprimidos para dormir. Não fosse pela “escolha” do tema e autor, a difícil trajetória do personagem a partir do momento em que o filme já se inicia numa dinâmica de ensaios em pleno andamento para uma peça teatral com iminente estreia, seria facilmente derrubada em face de tantos obstáculos. Falta de dinheiro para produção, falta de apoio midiático, falta de crítica favorável, dificuldades com o elenco, inseguranças de ordem pessoal e afetiva, enfim a superação de tamanhas dificuldades para continuar remando contra a corrente do conformismo, do show-bizz, da alienação e acomodação, a corrente do “deixa tudo como está”, dão claramente mostras de que não se trata apenas de um projeto ególatra, ou se uma ponta disso puder existir, não maculará de toda maneira o resultado prático de sua intervenção no mundo real. O “sem-sentido” do mundo, da vida, do viver, é uma espécie de choque existencial para o protagonista, o historiador Roquentin, que a partir desse momento, passa a ter em nova perspectiva o mundo humano que o rodeia. Dotado de uma agudeza de percepção extraordinária, percebe a partir daí como o mundo cotidiano é uma espécie de falsa questão posta à mesa. Em vez de se digladiarem com problemas reais do viver, as pessoas, tanto individualmente quanto em classes, instituições, etc, são tomadas por uma total cegueira a respeito de si próprias, seus valores e seu estar-no-mundo numa espécie de desespero para que tudo , o mundo, os ritos diários e suas próprias vidas possam ser dotadas de algum sentido. Roquentim despreza esse sentido artificial, porque baseado em meras convenções que, ao passo em que alijam a humanidade da capacidade de ver a vida de fato, levam-nos como rebanhos tocados em direção a lugar algum, ainda torna impossível á humanidade progredir de fato porque a simples ciência de como tudo realmente é, de como as coisas realmente são, se forem alijadas de sua mera aparência, poria por terra o mundo humano na forma como é convencionalmente conhecido.

Roquentim não “planeja ver” isso, ou mesmo traça como objetivo de vida se tornar o crítico dos costumes, mas à medida em que sua experiência de vida o permite aprofundar-se nas questões humanas, ele é tomado por esse sentimento como uma espécie de fulguração. Um lampejo forte de consciência que o acomete inicialmente em situações específicas, em lugares públicos, e depois aos poucos vai se firmando à medida em que tal estado de humor repete-se constantemente, até que ele identifique na sensação de náusea o exato momento em que consegue “ver” o mundo sem sentido. Vê finalmente que todo sentido é algo inventado, e as pessoas são alienadas porque vivem essas vidas reificadas sem tomar ciência de que é assim que ocorre. O resultado mental supostamente decorrente de tal sensação física, emocional e existencial experimentada no cotidiano após essa descoberta é de um total niilismo, porque ainda não é possível ao personagem saber o que fazer com esse conhecimetno depois que ele o acomete. Roquentim é tomado de um profundo pessimismo realista sobre o mundo, sobre as relações humanas, sobre o agir institucional, sobre as finalidades discursivas atribuídas à vida humana. Tem a sensação corrente de que está tudo ao avesso, e justamente por saber agora que não há um sentido, porque por um lado, o sentido moral do mundo garantido pela visão cristã-espiritualista caiu por terra, e de outro lado, a racionalidade científica que prometia um mundo melhor agora dá mostras de sua total incompetência para melhorar, aumentar ou garantir a felicidade e plenitude do homem no mundo, Roquentim procura viver conforme seus próprios preceitos a partir de então.

Imbuídos desse espírito é que  lançamos o foco sobre a arte, procurando novos olhares sobre uma questão há muito colocada, pelo menos desde Platão a  Hegel, e que começou a tomar contornos diferenciados em Schopenhauer e Nietzsche. Esses autores  encontraram, cada um à sua maneira, respostas diferentes para o problema da arte e sua relação com o homem e seu lugar no mundo. Em Nietzsche, particularmente está a questão que se vincula ao questionamento-chave nas entrelinhas deste ensaio: na resposta ao problema do “trágico” da existência , em alguns momentos aquele autor sugere que ao homem em geral é melhor não conhecer a verdade da vida, ou seja, a contingência do mundo, a inexistência de um Deus benevolente, a presença do mal como efetividade real e principal causador da “condição humana”. Nessa abordagem, a arte poderia atuar como uma espécie de “fuga da existência por uma criação não necessariamente ligada a nenhum tipo de verdade absoluta, mas sim um subterfúgio para que não conhecendo a verdade cruel do mundo como ele de fato é, o homem não sucumba definitivamente diante do terror. Em Sartre, identificamos parte do questionamento na posição de Roquentin, em busca de algum tipo de “salvação” pela arte, mas na continuidade dos trabalhos filosóficos de Sartre, outras questões se colocam subjugando a primeira, uma vez que surge a necessidade de revelação do “status” real do mundo, para que a partir daí, mesmo com tudo que essa consciência signifique de terror, de pânico, de “Náusea”, o homem ainda assim possa se enxergar como uma possível saída dentro do seu próprio mundo, não atuando a arte nesse sentido como um “mascarador” do trágico, mas sim como um necessário “revelador”, para que a partir dessa revelação ele jamais possa se calar.

Se em Nietzsche, o “papel” da arte , naquilo que se convencionou denominar de “Arte trágica”, principalmente pelo estudo das formas de representação do teatro na Grécia antiga, é um papel de reforço na superação do lado terrível da vida através de um determinado mascaramento, um atenuante para que o homem consiga ver outros valores além dessa terrível verdade, em Sartre o “papel” da arte pode ser exatamente o contrário, no sentido em que ela pode ser um grande fator de desvelamento das condições em que está posto o mundo real, propiciando através disso, uma maior consciência do homem sobre o mundo, sobre o outro e sobre a sua presença no mundo,  o que resulta na ideia de que é muito melhor ao homem “conhecer essa trágica verdade do mundo”, do que ocultá-la de forma alienante

Iñarritu, intencionalmente escolhe para a “peça teatral” que ora se ensaia, justamente um autor que jamais poderia se enquadrar nos termos de permanência e inversão de “lugar no mundo’, revelados por Mike, um propósito que também poderia ter sido o mesmo de  Roquentin quando se dispõs a escrever um romance no final do livro “A Náusea”.  Carver é mais realista e consciente no seu papel de autor, criador, e não tem o mesmo sonho da suposta beatificação eventualmente proporcionada pela arte, como propõe Mike, pois tem outra concepção mais mundana da sua criação, bem como dos seus efeitos. A proposição de Mike, embora fale apenas de si mesmo e seja esteticamente bela, relembrando a pujante entonação de Artaud e possa soar, com todas as suas diferenças, como a melhor fórmula artística do teatro desde Shakespeare, onde a representação da vida é sempre maior que a própria vida, num olhar sartriano como exposto através do livro “A Náusea”, se esse livro pode ser considerado uma visão de autor, isso jamais será possível. Porque a peça, um exercício do imaginário para criar além do real, cria personagens e tipos, e seu sentido, continuidade, sua essência coesa e justificadora, embora possa ser também crítica, será sempre um “análogo”, e jamais a própria vida em si. As contradições da vida “aqui fora,” o real, as rupturas, os desafios, as dores e o sem-sentido da coisa toda é tudo aquilo de que deseja fugir Mike, quando afirma que o seu verdadeiro “ser” está no personagem, quando está no palco, e não na vida real aqui fora, onde não se reconhece na dinâmica do mundo real. 

A nosso ver o escritor Carver também é um artista engajado, porque sua obra pretende desvelar o mundo alienante e mistificado dos jogos de amor como “coisa” ou “fórmula” definida, a ser praticada como nos manuais. O realismo de Carver é uma ducha fria na proposta do “amor romântico”, por exemplo, ao eleger a via do mundo como sua passarela.  Isso é representado, neste caso da peça que ora se encena, baseada no romance de sua autoria, por um lado, pela  sugestiva proposta de estabilidade pueril do amor convencional  e por outro, trazendo questões da ordem da representação, sob a proposta ousada de novos formatos estéticos para a arte, formato este que também desafia, por sua forma e intensidade, a  alienante indústria cultural do entretenimento.

O filme de Iñarritu, afinal, é uma provocação, e apela aos sentidos do espectador para que este construa sua liberdade de posicionamento engajado em um determinado tipo de consciência do mundo. O diretor consegue de forma brilhante conduzir o espectador por dentro do mundo dinâmico e neurótico da sétima arte, utilizando-se da forma de metalinguagem para trazer uma reflexão não apenas sobre o “fazer” cinematográfico mas uma analogia mais ampla sobre a própria condição do homem no mundo, individual ou coletivamente.  Sua câmera, que a maior parte do tempo traz as cenas em tomada única, num só plano, ao mesmo tempo móvel e dramático,  acompanhando o frenesi dos personagens no trânsito entre palco e camarim, entre a rua e o palco, como metaforizando todas as nuances da vida como ela realmente se mostra, expõe  não só as estruturas-mestre do “know-how” dentro da indústria cultural representada pelo cinema, nos mais diversos aspectos: produção, financiamento, jurídico e direitos autorais, criação, elenco, figurino, divulgação e crítica, mas principalmente, no que diz respeito ao objeto deste ensaio, coloca questões fundamentais e mais abrangentes, talvez universalistas que criam todo um quadro de interesse paralelo para a observação fenomenológica e existencial.  O filme revela, a nosso ver, tomado em sua totalidade, muito do mecanismo de produção e legitimação da própria vida humana na contemporaneidade. Na verdade, é o texto que introduz o elemento caótico no filme, o elemento que faz o equilíbrio superficial do mundo “exterior” massificado pela alienação ruir. É o autor , Carver, que de repente toca o personagem de Birdman, para que ele introduza uma reflexão verdadeira no público através do teatro, esta sim a verdadeira arte criadora, e não a repetição monótona de “Birdman” e o lugar comum do super-herói, símbolo incapaz de permitir novas avaliações e reavaliações reflexivas e necessárias sobre a vida. A imaginação pode “nadificar” o mundo, e é como ela consegue ‘criar” algo que não está ali, saindo do “Em-si” estático, que apenas espera interpretação. Existe a atividade criadora, dinâmica e questionadora que se propõe mudar, mas tem que pagar um alto preço por isso. A grande questão aqui é “o ser no tempo” contrastando com o “ser e nada”. Para “Ser’, assumir sua existência definitivmente ,  e em Sartre isso implica num grande esforço de consciência e ação no mundo, é preciso também que haja em contrapartida a disponibilidade do tempo, que como o espaço, é inteiramente subjetivo. Para uma civilização composta por homens “sem tempo”, essas pessoas jamais existirão de forma autêntica, pois jamais assumirão sua verdadeira condição ativa e criadora na vida. A liberdade para elas, em consequência,  também  existirá de fato, embora exista sempre em hipótese, em potencial, como condição fundadora do homem. Seguirão sendo para sempre escravas de suas rotinas, cercadas por trevas numa imensa cegueira acerca das reais perspectivas do mundo, do viver. Birdman coloca em termos metafóricos as duas situações em cena: de um lado, o super-herói, “Birdman”, que encerra em si a extinção de todas as reflexões e da busca por qualquer sentido do mundo. O sentido já está dado, acabado, é um mundo de viventes passivos cuja superação só pode ser alcançada no cotidiano por um extra=humano, um super=humano, um super-herói. A necessidade que o protagonista tem de matar o seu próprio personagem existe porque somente assim conseguirá introduzir o outro elemento, trágico, da peça teatral. A saída do mundo banal, cotidiano, não pode ser o apego a qualquer projeto, mas deve ser um projeto que realmente enfrente o niilismo, a náusea, que busque perspectivas, senão também torna-se mero passatempo, mera alienação. O “Engajamento” pressupõe atitude ontológica do “Para-si” ao se colocar no mundo como projeto, não pode ser qualquer projeto.



A METALINGUAGEM em “BIRDMAN” E SEU PARALELO COM O MOVIMENTO DO “PARA-SI-PARA-OUTROS” SARTRIANO.


Em Sartre, o  movimento do “Ser-para-si” com relação ao “Em-si” ou ao “Ser-para-outro” é semelhante ao que faz o recurso instrumental e narrativo da metalinguagem, no filme em observação. O para-si , ao colocar seu objeto, precisa necessariamente estar à presença do em-si, para que através dessa relação a consciência do mundo se forme, e simultaneamente precisa estar à presença do outro, para que ele próprio tome consciência de sua subjetividade. Tal movimento é idêntico ao que realiza a metalinguagem, ao por seu objeto em dois espaços, no filme em questão. No primeiro , o movimento análogo propiciado pela metalinguagem coloca um enredo crítico e denunciador das engrenagens do grande cinema, sua ganância de lucro fácil e suas fórmulas milionárias que repetem formas sem conteúdo, Portanto, exibe seu objeto pelos análogons em movimento (atores, cenários, trilhas, textos), apelando fortemente ao espectador no intuito de  revelar a construção ou de certa forma a “desconstrução” da cena cinematográfica. Mas no segundo, ainda através da metalinguagem, o filme também propõe a visão do cinema pelos olhos críticos do teatro, estabelecendo um diálogo produtivo entre as duas artes naquilo que cada uma tem como elemento próprio, porque o que se pretende encenar (retratado pelo filme) é de fato uma peça teatral, que faz migrar todo o elenco, a produção, o roteiro e propósitos da sétima arte para o teatro durante um instante, mas ainda assim figurados em última instância pelo próprio cinema, que é o veículo pelo qual a trama vem á tona para o espectador. Tomando as lentes de Sartre de empréstimo como leitura privilegiada desse movimento, considerando o recurso de metalinguagem como analogia ao movimento do “para-si” “para-outro” sartriano, na medida em que ela também põe seu objeto como desvelamento na presença do olhar do outro, construindo sua existência a partir daí e colocando o resultado- filme “Birdman” como objeto desejável a partir de uma postura “engajada” na sétima arte. A partir do surgimento e bom uso dessa metalinguagem que age como “para-si” no desvelamento do fenômeno, temos vários momentos onde essa leitura reveladora nos pode conduzir.

Um primeiro momento de revelação cristalina acerca dos mecanismos que fazem a engrenagem da indústria cultural funcionar, e qual é o seu principal combustível. O filme evidencia o interesse geral da indústria cultural  na produção rasa de conteúdo, encorpada pela infinidade de efeitos especiais(característica inerente dos filmes de super-heróis, tomada como exemplo) escolha de atores e atrizes com padrão físico desejável e uma divulgação massiva contando com aliados espalhados pelas mais diversas mídias em sintonia, e alguma omissão ou ajuda indireta de parte da crítica especializada, sempre utilizada como legitimação da força do “stablishment”. Ora, o que é afinal, a propagação e difusão massiva do filme de super-heróis? Que valores representam, que posturas preconizam para o homem diante do mundo , e  “Quem” é o super-herói, afinal? Alguém que pode eventualmente ter surgido como todo homem no planeta Terra ou mesmo fora dela, mas que de todo modo, para quem os problemas humanos corriqueiros estão há muito superados, porque algum ou alguns super-poderes o colocarão sempre em condição de total superioridade com qualquer humano na direção de uma possível solução. A sua condição na Terra, no mundo, está dada, e de pronto, já resolvida. O humano, ao contrário, é falível, mortal, não tem poderes extra nem a determinação anormal e imbatível de “fazer o bem”, uma vez que sua própria ética é sempre variável, histórica e por isso sujeita às instabilidades dos respectivos contextos políticos, morais e circunstanciais. São antípodas, por fim, o super-herói e o humano. O cinema, quando alimenta a “ viagem” massivamente na forma de produto raso da indústria cultural que lota as salas em torno do mundo apenas como entretenimento sabe dessa condição e sabe do efeito que ela provoca, mas se importa apenas com o lucro, e não com o impacto negativo desse tipo de alienação sobre a vida das pessoas. Do outro lado da relação, há também as pessoas, que aceitam ser cooptadas e que se dirigem a um cinema única e exclusivamente para “fugirem” da banalidade e da complicação de suas dramáticas vidas contemplando uma tela grande de cinema com uma lata  de “coke” na mão e um pacote gigante de pipoca na outra, curtindo alguém geralmente bonito que tem uma capa ou asas e além de escapar ileso de tantos tiros, raios e violências, ainda consegue angariar a simpatia amorosa da mocinha enquanto  através de uma imanente alma boa e um espírito sempre ético, doar o bem á humanidade. A crítica mais virulenta encontra fundamentos no simples fato de constatar a existência do entretenimento, de modo geral? É óbvio que não. As atividades lúdicas, recreativas ou de fuga são parte integrante da história humana. Contudo, se esse perfil cultural passa a se tornar dominante em uma dada sociedade, e se por trás ainda dessa forma específica de produzir em larga escala determinados valores em detrimentos de outros, determinadas “verdades” em detrimento de outras, a partir desse instante é que se coloca a maior urgência e imperativo do olhar crítico, como forma de ampliar o olhar do homem e da sociedade sobre aquilo que em última instância os constitui.

O segundo momento de relevância para nossa observação está bem representada no papel do personagem Mike (Edward Norton), quando afirma que no palco, quando atua, ele é ele mesmo, e ao contrário , na vida real, “lá fora”, ele se perde.  Diante da “Náusea”, ou seja, diante da pressão do mundo que o coloca contra a parede com suas dores, sua contingência, sua descontinuidade, Mike  responde negativamente, porque busca a fuga na arte dramática como saída. Uma saída alienante, portanto, repleta de má-fé.

O terceiro elemento, que revela o verdadeiro interesse do diretor ao legar essa fantástica obra cinematográfica, foi a escolha de Carver para autor a ser adaptado para o teatro. Carver é um autor engajado, e demonstra esse engajamento ao narrar toda a complexidade da vida humana, real e factível, utilizando-se das relações afetivas e amorosas para isso. Da mesma forma, o filme pretende o denunciar o funcionamento, o conteúdo e as estratégias da grande indústria cultural. Se Inãrritu, no aspecto geral do filme, é um desvelador, um crítico poderoso porque traz a lume todas as engrenagens importantes que movimentam um dos aspectos mais importantes da nossa vida coletiva,  a escolha acertada de  Carver como livro-texto, no detalhe, olhando-se no particular de sua obra em questão “Do que falamos quando estamos falando de amor”, se dá porque o escritor também faz isso de forma brilhante com um texto dramático que rasga todas as aparências para falar das afetividades e conflitos humanos de uma maneira realista, crua, não velada. Ambos, Carver autor falecido em 1988 romancista, literato, e Iñarritu, cineasta, compõem uma parceria atemporal e engajada com o claro intuito de tocar o espectador do teatro, do cinema, o leitor, o humano contemporâneo que habita as ruas ou as casas pasteurizadas e assépticas aonde só chega o entretenimento viciado e fugaz em vez de uma perspectiva artística capaz de resgatá-los do mundo alienante composto pela média das criações culturais em nosso meio.

O quarto momento é representado pelo próprio personagem Riggan, cuja atitude talvez seja a mais complexa e contraditória dentre as personagens. Ele é ambíguo e paradoxal em suas atitudes, quando de um lado é forçado pelo mundo do “show-bizz”, mas por outro pretende seguir firme naquilo que no presente abraça como seu “projeto” e justificativa de nova vida. Uma cena na metade do filme reflete de forma exemplar toda a contradição e banalidade a que está sujeita a criação artística, quando sugere a fragilidade humana diante do poder da crítica e do poder da indústria cultural. Um passeio inusitado do ator, de cuecas, nas ruas de N. York na proximidade da Broadway na noite de pré-estréia da sua peça, pois uma vez tendo saído um instante para fumar do lado de fora do teatro e impossibilitado de retornar pela porta lateral do estúdio, termina perdendo seu roupão e para retornar ao estúdio tem necessariamente que passar no meio do público,  sendo ridicularizado no caminho de volta, filmado por diversos celulares e enquanto entra novamente no teatro pela porta da frente, ainda seminu, é visto como “personagem”, e é aplaudido porque todos pensam que ele está  intencionalmente representando algum improviso. Portanto, de um lado, Riggan é um decidido e vitorioso dono de sua nova liberdade, ao resolver enfrentar tudo e todos em torno de um novo projeto de vida, recusando com isso a fazer parte do “Stablishment” que procurava aniquilar sua iniciativa seduzindo-o para o retorno ao papel do super-herói que no passado garantiu boas bilheterias. Mas Riggan, mesmo tendo tido uma entrada brilhante nessa nova vida ao demonstrar a força de sua superação pessoal frente ao problema do mundo, buscando autenticidade e projeto no lugar onde todos procurariam apenas usufruir de uma fama fácil, contradiz-se fortemente  no final do filme, aproveitando a atitude, uma deixa idêntica do personagem que interpreta na peça em andamento, quando tenta  cometer suicídio em pleno palco, na frente de centenas de espectadores. O personagem de Carver, na montagem do romance que  ora se encena no teatro, tenta se matar com um tiro de revólver na cabeça por conta de sua mulher que o abandona depois de sofrer maus tratos por muitos anos. Mesmo ficando seriamente ferido, não morre no mesmo instante, mas passa ainda alguns dolorosos dias no hospital antes de morrer. Contudo, no caso da tentativa de suicídio de Riggan, da mesma forma um suicídio mal sucedido cujo tiro apenas atinge seu  nariz, não se sabe exatamente qual o motivo ou os motivos imediatos para o ato. Há várias questões do mundo real que poderiam ser uma provável causa. O filme mostra Riggan bastante angustiado depois de uma calorosa discussão com a importante Crítica do jornal “NYT“ (interpretada pela atriz Lindsay Duncan) que o humilha dizendo que seu talento é medíocre, além de ameaçá-lo com uma crítica tremendamente negativa no dia seguinte à estréia. Paralelo a isso, o narrador oculto na figura do homem-pássaro continua tentando seduzi-lo a uma volta ao passado, suas finanças vão mal, assim como seus relacionamentos pessoais. Seu advogado e produtor o avisa de problemas que surgirão com processos referentes a um ator acidentado em cena. A sequência pré-tentativa de suicídio sugere, enfim, que Riggan (simulando um esterótipo realista do artista bem intencionado que não consegue subverter a ordem pernóstica da grande indústria cultural com seus objetivos mais “puros” e autênticos) em algum momento desistiu do seu projeto engajado de enfrentamento do mundo, e depois de ter sentido em algum momento de sua vida  o despertar-para-o-mundo no momento fundante propiciado pela Náusea, finalmente ele capitulou diante do caos e do absurdo, ao tentar fazer cessar seus próprios esforços e a existência  da roda de Sísifo com a sua extinção.

De todo modo, vemos a saída pelo suicídio, assim como a saída mais fácil de Mike ao “entregar-se” como ser humano ao papel enquanto atua, a ponto de admitir que sua vida real é a vida vivida no palco, ambas como subterfúgios para não enfrentarem as verdadeiras questões da mundanidade. Ambos os personagens, que juntamente com o escritor Carver, que aparece somente no texto que se ensaia na respectiva peça, são a nosso ver, a tríade fundamental da temática de cunho existencialista levada á tela pelo diretor Iñarritu. E em algum lugar do caminho, os dois primeiros, Mike e Riggan abrem mão dos seus projetos e da sua liberdade para, em vez de superar a tragédia do viver através de uma forma de arte com maior plenitude e enfrentamento, entregarem-se cada um a seu modo. Um pela alienação, outro pelo suicídio. Está claro, numa analogia sartriana que ambos , em algum momento, tiveram individualmente o contato com a sensação existencial da náusea,  e diante do terror da vida, escolheram a anestesia, o que revela uma atitude de má-fé e livre escolha de tentar abdicar da própria liberdade, o que de resto seria impossível segundo o conceito de “liberdade absoluta” do filósofo. O detalhe relevante é que, quanto a Riggan, uma vez que de fato não se matou e seu ato em cena foi, posterior e inusitadamente considerado pela mesma crítica e pela imprensa que o enxovalhavam como “algo genial”, um inesperado e virtuoso final para uma brilhante peça, tudo se inverte, e ele próprio, ao contrário do que se esperava, e ao contrário do que a leitura mais aprofundada e compreensiva do conto hermético de Carver no faria crer, agora virou novamente “pop-star”, retornando aos noticiários como um personagem Cult, venerado em seu novo “momento”. Importante frisar que isso não ocorre pelos méritos intrínsecos da adaptação da obra do escritor Carver, e nem sequer é mencionado o trabalho e o empenho geral e do mérito na montagem de uma peça teatral na Broadway, com todas as previsíveis dificuldades da empreitada. Riggan retorna ao estrelato por um simples  acidente, porque além do seu gesto de tentar matar-se em pleno palco ter se tornado ‘cult’, algumas outras atitudes, falas e situações de sua vida pessoal transformam-se em “viral”, um termo contemporâneo para destaques midiáticos com grande tendência de público nas redes sociais. Como reiteração dessa ambiguidade que no fundo revela o abandono do projeto original de engajamento e enfrentamento, logo em seguida, ainda no hospital convalescendo do tiro no nariz, ele, ciente do seu novo “sucesso”, resolve sair pela janela “voando”, como nos velhos tempos de “Birdman” sugerindo a leitura possível de um retorno ao mundo de super-heróis, que finalmente sairá vitorioso diante do fracasso do novo projeto. Uma metáfora possível para o “grande final” abre o espaço para se questionar a noção de ‘sucesso’, ou de “projeto bem-sucedido” da forma como se entende a expressão em nosso mundo. Se, por um lado, aderir à fuga, utilizando a má-fé como guia para legitimação de um “mundo perfeito”, previsível e paradisíaco, configura-se atitude voluntária de alienação diante de uma consciência que nunca se afasta, contudo o enfrentamento e a consequente exposição das estruturas reais do caos que a tudo governa podem se mostrar duros demais ou até mesmo insustentáveis ao revelar simultaneamente a angústia fundadora de todo o existencialismo que senão historicamente, pelo menos por proximidade temática já esteve presente desde Agostinho, passando por Déscartes, Pascal, Kierkegaard e Nietzsche, até atingir de forma tão pertinente e visceral a contemporaneidade de Heidegger e Sartre? Convergindo com o existencialismo sartriano, concordamos com a noção de que existe de fato uma “derrota”, se após a  instauração da consciência reveladora do ser-no-mundo, a atitude humana persiste em desviar-se para a alienação, que seja ativa ou omissiva. Mas por outro lado, em que medida a ação afirmativa e o chamamento do projeto para a ação tendo em foco a busca da sua autenticidade traz, por si só, qualquer garantia de um tipo de “vitória” para contrapor-se à “derrota” declarada da primeira via? Que tipo de “Vitória”, se existe, será essa? É o que tentaremos expor em seguida, à guisa de conclusão deste Ensaio.


O CINEMA ENGAJADO : A ARTE CONTRA O ABSURDO DO NIILISMO e o PARADOXO DO “FRACASSO COMO POSITIVIDADE”

Para Sartre , o sentimento da “ Náusea” é o primeiro momento de revelação do que o mundo realmente”é”: contingência, caos, mundo sem-Deus, sem razão e com o homem jogado à própria sorte. Por isso, apesar do grande impacto sobre o vivente que assim se “liberta” dos condicionamentos externos,  a Náusea é por si só um “status” afirmativo dentro da escala da vida, na medida em que é um tipo de despertar de um longo sono narcótico. Esse despertar, se for encampado por um projeto que seja assumido de forma autêntica, será criador, através de uma nova consciência de estar no mundo, e nesse contexto a vem a ocupar  um lugar essencial, pelo espaço privilegiado que ocupa como linguagem ao tornar possível o surgimento e intensificação das intersubjetividades. Entretanto, se  não houver essa transposição a partir da Náusea, as opções são “alienação” pela pura má-fé, quando o “para-si” mente para si mesmo, em vez de assumir sua consciência no tempo e no mundo como projeto, e pretende assim fingir que nada acontece, como sugere o destino de Roquentin . Ou, se o sujeito ciente da transitoriedade e do caos que regem a vida, se acovarda, se desespera, existe a possibilidade ainda de se configurar um estado de “absurdo”, se tudo isso resvalar para o niilismo puro e simples da omissão, da não-tomada de posicionamento, uma vez tendo conhecido aquilo que é, o ser do mundo. Essa “não-tomada” de posicionametno, por si só, dentro da temporalidade presente, uma vez que o passado tomado equivocadamente como condicionamento e o futuro tomado como perspectiva lógica de ordenação previsível são nada mais do que fugas do presente, possíveis escapatórias para o “não agira agora”, tudo isso representa involuntariamente uma tomada de posicionamento indireta, na medida em que o fazer humano, suas nuances, suas opiniões, ações e omissões não podem escapar à própria história. Agindo ou omitindo a respeito de sua nova ciência da vida, essa atitude se configurará numa voz deliberada assumindo ou negando o projeto como viabilidade no caminho do desvelamento e posteriormente no seu enfrentamento, uma vez que a posição do homem diante do mundo é  necessariamente de estranhamento e conflito, na sua origem.

Queremos propor uma abordagem mais extensiva do conceito de “absurdo” do que o proposto por Sartre em “A Náusea”. Na sua referência, Sartre praticamente reduz a “Náusea” e o “Absurdo” a uma mesma situação de contingência, caos e imprevisibilidade do mundo, quando o personagem Roquentin é tomado pelo sentimento de mundo revelador enquanto está sentado num banco de praça, ao lado da castanheira mais famosa da história da literatura.


(...)Mas desejaria fixar aqui o caráter absoluto desse absurdo. Um gesto, um acontecimento no pequeno mundo colorido dos homens não é jamais senão relativamente absurdo: em relação ás circunstâncias que o acompanham. Os discursos de um louco, por exemplo, são absurdos em relação à situação em que este se encontra, mas não em relação ao seu delírio. Mas eu, ainda agora, tive a experiência do absoluto: o absoluto ou o absurdo. Aquela raiz – não havia nada em relação a ela que não fosse absurdo. Oh! Como poderei fixar isso com palavras? Absurdo: com relação ás pedras, aos tufos de relva amarela, à lama seca, à árvore, ao céu, aos bancos verdes. Absurdo, irredutível, nada – nem mesmo um delírio profundo e secreto da natureza – podia explicá-lo. Evidentemente, eu não sabia tudo, não assistira à germinação nem ao crescimento da árvore. Mas diante daquela grande pata rugosa, nem a ignorância nem o saber importavam: o mundo das explicações e das razões não é o da existência. Um círculo não é absurdo, é perfeitamente explicável pela rotação de um segmento de reta em torno de uma de suas extremidades. Mas também um círculo não existe. A raiz, ao contrário, existia na medida em que eu não podia explicá-la”.  (Sartre J.-P. , A Náusea, 2011, p. 173).

Entretanto, vemos uma contradição nessa abordagem comparativa. A grande revelação da Náusea, é exatamente do caos, da contingência do mundo e da não necessidade de qualquer ordenação lógica, previsível, numa sentença: dos artifícios humanos no esforço de criar sentido onde não há. Portanto, tal situação não pode ser, por si só, em termos lógicos, equivalente à ideia de absurdo. Se a essência, a forma real do mundo aparecer é essa revelada pela náusea, é portanto da natureza do mundo ser caótico e imprevisível e dessa forma, resulta que qualquer tentativa de mascarar essa realidade é que será absurda. É uma evidente contradição lógica que a essência do mundo seja caótica e contigente, como se descobre após o “toque” existencial e ontológico da Náusea, se ao mesmo tempo consideramos que essa ideia é absurda. Ela não será mais absurda se considerarmos que a partir do momento de revelação, o caos e a contingência é que fazem o atributo daquilo que é, que definem sua essência, e não mais o espanto por constatação de como é que ele deveria ser. Náusea reveladora e absurdo, são, portanto, na nossa visão, divergindo do que Sartre propõe, no precitado texto, conceitos e momentos diferentes da vivência no mundo. Portanto, a nosso ver, embora reconheçamos que tal tema sobre o conceito de “Absurdo” não está muito presente no autor de forma mais nítida, o que em parte talvez seja consequência da analogia do conceito referido de que Náusea= absurdo, entendemos que o “Absurdo” é na verdade o movimento humano onde o “para-si” tenta velar de si mesmo , auto-enganando-se pelo recurso conhecido da má-fé, ao construir uma ordem pretensamente estável e justificadora de um outro mundo que por si só é um antípoda do mundo real. Ao passo que essa tentativa revela, por si só, um tipo de “negação” da ciência da realidade agora descoberta pela Náusea, ela é também uma tentativa niilista, porque não cria valores reais, de desvelamento do real que possam vir a criar chances para o enfrentamento de como o mundo é, mas permite o transpasse como mágica para um mundo intocado e onírico onde tudo é justificado, onde o reino dos sentidos está pleno de razões e a vida enfim pode se auto-acalentar sossegada sem o incômodo de toda Náusea. Em nossa proposta de releitura, portanto, e no cerne do enfrentamento do niilismo absurdo caracterizado pela falta da ação engajada, colocamos a proposta da arte como um elemento privilegiado para ensejar a tomada de consciência e a visão para potencial ação. A Náusea é , sim , como preceitua Sartre, o grande momento revelador e fundador da angústia que tudo instaura, mas o absurdo, se identifica na verdade é com o niilismo da “inação” ou da “fuga” e não com a Náusea, quando esse absurdo na verdade advém da postura humana relutante ao negar para si mesma a chance de mudar uma realidade que prefere não conhecer, porque aposta num outro mundo intocado e feliz, perfeito e repleto de razão, que agraciará seus adeptos da mesma forma que a pílula azul mantém adormecidos os mortais que doam sua energia vital e orgânica para as máquinas em “Matrix”, enquanto suas mentes navegam ricas e fluidas, reproduzidas através de engenhosos programas de computadores que simulam a realidade virtualmente.

Nossa especial atenção na observação de “Birdman”, que recoloca em cena um artista –ator-diretor engajado assumindo um projeto original de vida autêntica na medida em que percebe finalmente a vida alienada , banal e fútil em que  estava envolvido quando mergulhado no show-bizz, pretende mostrar que essa atitude é verdadeiramente um ótimo e rico exemplo da leitura Sartriana no que diz respeito à valoração de uma existência autêntica e recriação do mundo pelo papel privilegiado da arte, uma vez que Riggan , o protagonista, é um sujeito que traz para si um projeto de vida desvelador através da pegada mais artística do teatro de autor em detrimento do cinema de massas, superando o estado de Náusea, que é o primeiro momento da consciência, sem cair no absurdo niilista de que “não é possível criar nada, não adianta criar nada, uma vez que tudo é caos”, mas ao mesmo tempo não representa a negatividade de uma vida acomodada e cega sob o conforto da ignorância voluntária, camuflada de má-fé coletiva. Nesse sentido é que “Birdman” se coloca entre a “Náusea” e o “Absurdo”, como uma proposta de enfrentamento de toda narcose coletiva, na medida em que entendemos a Náusea como  o momento primordial e fundador da angústia ponto-de-passagem para revelação do estado do mundo e do homem dentro dele, e o absurdo, em consequência, divergindo no particular com relação a Sartre que identifica esse conceito com o próprio caos do mundo, constatamos na diferenciação pela atitude de inércia voluntária ou não, na busca da narcose alternativa e persistente, que o absurdo de fato não é o mundo em seu natural estado caótico, mas a construção de um olhar que procura mascarar esse estado de contingência. Se a Náusea é a lente que enxerga o caos, o absurdo é a atitude humana que procura velar essa visão.

O filme em comento, ao enfrentar todos os contextos negativos interiores e exteriores que sempre jogam contra quem realmente quer ser autêntico no árduo terreno da arte, (uma vez que toda vida inautêntica é sempre mais fácil e auto-resolutiva), Riggan, colocando em cartaz  uma peça teatral dramática e densa , que explora e aprofunda os questionamentos em torno do tema amor para chegar ao cerne da existência humana sobre o planeta, atua como um artista criador, no melhor sentido do que pensou Sartre com alguma influência da tese Nietzschiana, decerto, mas com abordagem e desfecho diferente, para o papel privilegiado que a arte ocupa em todo o contexto de sua obra. Entretanto, é possível ver na condução provocativa do tema pelo diretor Iñarritu, que tal projeto do ator-diretor personagem Riggan, que finaliza-se na fuga pelo suicídio, assim como de forma semelhante a parte final do romance “A Náusea” nos revela o protagonista Roquentin querendo apostar na “fuga” da dor-de-vida através da criação de um romance, também  mostra-se como “projeto falho” ao final. Óbvio que não falhos enquanto “propostas reais” de trabalho autoral, porque tanto o filme de Iñarritu quanto o romance sartriano são legítimas obras de arte, em tudo que se propõem enquanto tal. Mas seus protagonistas ensaiam um verdadeiro “fracasso” ao final de suas trajetórias, e esse fracasso nos parece indissociavelmente vinculado à presença do para-si-para-outro no mundo, neste caso citado como elementos de representação da literatura e da sétima arte, respectivamente. Isso aparece de forma interessante na explanação de Bornheim:

 “A conclusão geral a que chega a análise de todos esses comportamentos é que nós somos devolvidos, circularmente, do ser-que-olha ao ser-visto, e que não podemos sair desse círculo: qualquer que seja a nossa atitude diante do outro, nossa relação se define como instabilidade. Trata-se sempre do mesmo ideal impossível de captar simultaneamente a liberdade e a objetividade do outro enquanto esta objetividade determina o ser-para-outro. Vale dizer que outro não pode, a rigor, ser apreendido. A tentativa de reconhecimento da liberdade do outro termina por “constranger” o outro a ser livre a a paralisar minha liberdade. Entende-se , então, a desoladora conclusão a que chega Sartre: “O respeito pela liberdade do outro é uma palavra vã: mesmo se pudéssemos projetar o respeito dessa liberdade, cada atitude que tomássemos em relação ao outro seria um roubo dessa liberdade que pretendêramos respeitar”. (EM, p. 480).  (Bornheim, 2000, 4ª reimpressão, 3ª edição).


O fracasso proposital e provocativo, do ponto de vista da criação artística de Sartre e Iñarritu ensejado  tanto por Roquentin quanto por Riggan representa, a nosso ver, a expressão do conceito de fuga à natureza conflituosa do mundo humano. Contudo, há uma positividade nesse evento. Revelar algo sobre o “para-si-para-outro” que ainda era desconhecido e uqe não surge automaticamente, enquanto ainda se está às vésperas de “embarcar’. Está claro que ambos os personagens ao final de suas respectivas trajetórias “fogem” do mundo que os cerca, porque a permanência no engajamento de seus projetos originais colocaria para eles necessariamente não uma vitória, que seria o resultado imaginável e desejável para os “heróis virtuosos” da vida real, que renunciaram à fuga e se propuseram o enfrentamento, mas um outro tipo de derrota ao perspectivar, num segundo momento, acerca da relatividade e fugacidade de toda ação humana, em razão da sua própria complexidade, da historicidade, sua finitude e das inter-subjetividades que estão envolvidas, além  da real impossibilidade material de , através de uma obra, uma imagem, um gesto, uma voz ou uma letra, poder garantir, de “per se’, que os resultados aconteçam numa ordem favorável, previsível e mecânica no sentido de cooptar o “outro” para seus projetos de desvelamento do mundo. Com efeito, surgir como estímulo para outras consciências, em busca da sua criatividade imaginativa ou espontaneidade, ou em outros termos, cooptar de forma mais persistente o outro pode soar como coerção ou constrangimento da liberdade alheia, e assim frustrar por via invertida e não intencional o propósito original de toda ação engajada, ,mesmo que pelas vias da arte, uma vez que é muito tênue o limite entre “solicitar a liberdade do espectador’ e “conduzi-lo na minha direção”. Ainda na preleção de Bornheim:

Da frustração da categoria ser-para-si-para-outro surgem noções como pecado e culpa. O pecado original procede de meu surtoe m um mundo em que há o outro. Diatne do outro eu sou culpado; culpado porque, quando visto pelo outro, experimento minha própria alienação; culpado ainda porqeu , quando olho o outro, eu o constituo como objeto. Nada posso fazer pela liberdade do outro, pois qualquer iniciativa nesse sentido se obriga a traatá-lo como instrumento e a considerar sua liberdade como transcendência-transcendida. “Só posso atingir o outro em seu ser-objeto” e, por isso, “sou culpado diante do outro em meu próprio ser”, (EN,p. 481). A consciente constância do fracasso pode suscitar uma derradeira atitude diante do outro: o empreendimento de sua morte. Esse comportametno se eonctra na resignação fudnamaental euqe se chama de ódio. O ódio consiste no abandono definitivo de qualquer empenho por realizar a união com o outro. Quando odeio, afirmo minha liberdade como posição absoluta em face do outro. Certamente, esse sentimento não chega a obliterar o reconhecimento da liberdade alheia; ainda assim, o desespero faz com que o ódio só veja o outro-objeto e queria destruí-lo. Ale´m disso, se a própria relação com o outro se denuncia, em sua essência, como conflituosa, entende-se que o ódio não possa ser adstrito a tal sitaução particular; muito mais, o ódio é ódio de todos os outros concentrados num só. E realmente ,o seu projeto inicial pretende suprimir as outras consciências. Mas o ódio não passa de uma paixão inútil. Mesmo se todas as consciências fossem destruídas, elas continuariam a me perseguir do fundo do passado. Com efeito, o ódio não permite sair do círculo. Ele representa a última tentativa, a tentativa do desespero. Após o fracasso dessa tentativa, só resta ao para-si integrar-se no círculo e deixar-se oscilar entre as duas atitudes fundamentais (EN, p 484). (...) A experiência do nós não representa um enriquecimento e nada modifica nos resultados obtidos pelas análises anteriores. “É, pois, em vão que a realidade humana procuraria superar esse dilema: transcender o outro ou deixar-se transcender pelo outro. A essência das relações entre consciências não é o ser-com, é o conflito” (EM, p. 502).  (Bornheim, 2000, 4ª reimpressão, 3ª edição, p. 101-109)


O andamento “bem-sucedido” aos olhos do outro, acerca do projeto em que ora me engajo não garante absolutamente que ele seja bem sucedido aos meus próprios olhos. E ainda, se fizermos a necessária contextualização numa cultura histórica , onde ser “bem-sucedido” significa em última instância ratificar o modo de ser de um sistema que por princípio deveríamos enfrentar ao escolhermos o seu desvelamento pelo engajamento, fracassar assume visceralmente um valor positivo, pela negação estrutural do valor cuja expectativa alimentava. É portanto, um evento paradoxal. Nesse fracasso, que é um fracasso não do indivíduo, mas da coletividade, está inserido o para-si-para-outro como algoz e criador. Por isso, por definição a “escolha” pelo mundo real, atitude inerente a todo engajamento, traz todo o peso do mundo em seu bojo, porque como no dizer de Sartre, em “Que é a literatura?” cada escolha individual é simultaneamente sempre uma escolha universal da própria humanidade, em alguma direção. Roquentin e Riggan, ambos já haviam ultrapassado a etapa em que um determinado evento-Náusea os colocou no centro do mundo, com a visão aberta, “jogados”. Uma vez iniciada a caminhada,  antes que ela chegasse ao fim, ambos abandonam o projeto pela fuga, numa configuração que se confunde a desistência do engajamento essencialmente com o absurdo que é o niilismo, a ausência de criação de novos valores, uma vez descoberta a natureza caótica, sem-sentido e contingente que é  o mundo. Com efeito, se na ação engajada, eu faço uma escolha, ela não é jamais somente minha. Escolhendo a mim, escolho também ao outro , no mesmo ato, mas o grande problema que se coloca ao final e´ saber até que ponto minha presença no mundo, minha ação revelada agora por minha arte, será esse eterno “apelo” ou “solicitação” à espontaneidade da imaginação e da própria liberdade do engajamento alheio num projeto de desvelamento que poderíamos considerar não um paraíso harmonioso onde a vontade  os interesses de todos os homens convirjam, mas um “ser-com-nós-em-permanente-conflito” administrável, ou será apenas mais uma doutrina dentre tantas outras a constranger cegamente o outro em sua liberdade, cooptando-o á força para mais um projeto do barco em que ora partimos, “embarcados”, como no dizer do sábio Pascal, mas em cujo fundo, ora vendado a nossos olhos, repousa um enorme rombo no casco, que a meio da viagem fará soçobrar a embarcação quando a ilha que intentávamos alcançar já estava tão perto dos olhos? O indeterminado da vida, o indeterminado do homem, não permite que haja uma resposta satisfativa ou ação conceitual oriunda desse questionamento, sem que se esteja fazendo necessariamente um tipo de doutrinação castradora da liberdade, mas poder ao menos colocar a questão, enquanto se contempla a experiência humana na história, desde as “Cavernas de Chauvet”, dançando com aquela humanidade pré-histórica em volta das fogueiras, junto com suas sombras e seus animais na parede , ou passando pelo “Teatro trágico grego” como mais um cidadão da antiga Hélade escondido num dos cantos da arquibancada enquanto as máscaras e a representação das forças da natureza ou da comédia cotidiana  traziam ao seu olhar  a força e a multiplicidade morfológica dos deuses com toda a sua ira ou sua volúpia,  até a contemporaneidade mais simples da sala de um cinema perdido lá no meio dos confins do nada, onde toda a evocação da vida, da morte, das dores e prazeres possíveis se revelam diante de tantas consciências em ebulição quando a luz se apaga e as cortinas se abrem, deixando a voz e a imagem da tela soar seus cantos de sereia para que nossa imaginação sedenta possa ‘embarcar’, tudo isso é uma experiência digna em sua plenitude e afetividade capaz de mostrar de forma direta, sem necessidade de qualquer outra explicação ou apelo proposicional no terreno discursivo, toda a beleza e o estranhamento de ser gente-no-mundo e estar ao mesmo tempo construindo e sendo construído exatamente naquele instante irrecuperável no tempo em que o próprio tempo se faz.      *****


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BIBLIOGRAFIA
Artaud, A. (1998). O Teatro e seu Duplo. São Paulo: Martins Fontes.
Bornheim, G. (2000, 4ª reimpressão, 3ª edição). Sartre. São Paulo, SP: Perspectiva.
Carver, R. (2009). Iniciantes. São Paulo, SP: Companhia das Letras.
Morris, K. G. (2009). Sartre, Introdução. São Paulo, SP: Artmed.
Sartre, J. P. (2005). Situações I, Críticas Literárias. São Paulo: Cosac Naify.
Sartre, J.-P. (2011). A Náusea. Rio de Janeiro: Nova Fronteira (Para Coleção Saraiva de Bolso).
Sartre, J.-P. (2010). O Existencialismo é um Humanismo. Petrópolis, RJ: Vozes.
Sartre, J.-P. (1996). O Imaginário. São Paulo, SP: Ática.
Sartre, J.-P. (2015). O que é a subjetividade? Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
Sartre, J.-P. (2000). O Ser e o Nada, 8. ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes.
Sartre, J.-P. (1999). Que é a literatura? São Paulo, SP: Ática.