: "BIRDMAN" : A Arte, entre a Náusea e o Absurdo
(Ensaio sobre cinema, filosofia e vida, de um ponto de vista Antropológico)
“(...)Eu conseguia ouvir meu coração batendo. Eu
conseguia ouvir o coração de todo mundo. Eu conseguia ouvir o ruído humano que
nós, sentados lá, fazíamos, nenhum de nós se movendo, nem mesmo quando a
cozinha ficou escura”. (Carver, Raymond. “Do que falamos quando estamos falando
de amor”, (Iniciantes, 1981)
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INTRODUÇÃO
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REPRESENTAÇÃO
E
SUBJETIVIDADE
IMAGEM
E
CONSCIÊNCIA
LIBERDADE
ABSOLUTA E
EXISTÊNCIA
“A NÁUSEA” E A ANGÚSTIA QUE TAMBÉM É FUNDAMENTO
ONTOLÓGICO.
DEUS
CONTINUA MORTO e o REI ESTÁ
NU
O
ENGAJAMENTO COMO ATITUDE DESVELADORA DA REALIDADE HUMANA
ARTE
RUPESTRE , TEATRO GREGO e CINEMA
ANTROPOFAGIA E
PEDRA-DE-TOQUE: O CINEMA COMO “ARTE QUE
SE ALIMENTA DAS ARTES”, E COMO ELEMENTO PRIVILEGIADO PARA O DESVELAMENTO DO
MUNDO
“BIRDMAN”,
(A INESPERADA VIRTUDE DA
IGNORÂNCIA).
“A NÁUSEA” e “BIRDMAN”:
paralelos entre os personagens ROQUENTIN e RIGGAN THOMSON
A
METALINGUAGEM E SEU PARALELO COM O MOVIMENTO DO “PARA-SI-PARA-OUTROS” SARTRIANO
O CINEMA
ENGAJADO : A ARTE CONTRA O ABSURDO DO NIILISMO e o PARADOXO DO “FRACASSO COMO
POSITIVIDADE
BIBLIOGRAFIA
INTRODUÇÃO
Muito
antes de chegar a escrever as primeiras palavras, o homem já desenhava. No
belíssimo documentário “Caverna dos sonhos esquecidos” , rodado em 2010 dentro
da “Caverna de Chauvet”, no sul da França, o cineasta alemão Werner Herzog nos
mostra este que poderia ser considerado
o primeiro museu da humanidade: uma série de pinturas rupestres que se revelou
uma das maiores descobertas arqueológicas já realizadas e que segundo estudiosos
são as mais antigas representações gráficas que chegaram até nossos dias, posto
que são oriundas de povos que habitaram o planeta há quase quarenta mil anos
atrás. A um olhar curioso é possível
apreender sem dificuldades, através das impressionantes imagens de estilo
predominantemente realista, muito acerca do ambiente e da forma de vida do
denominado “homem primitivo”. Existem nítidos desenhos de partes de animais, em
detalhes como cabeça, garras, presas ou
pele, além de perfis ou frontais de animais inteiros como ursos, bisões, cavalos selvagens em
perspectiva, leopardos, leões da montanha, rinocerontes e até mesmo extintos
mamutes, estáticos ou em posição que sugere movimento. Há também luta entre
animais e algumas pinturas de mãos
humanas , além de um pingente de pedra representado por uma estalactite
que pende do teto baixo da caverna, desenhada em carvão figurando parcialmente
uma mulher e um bisão entrelaçados
sugestivamente no mesmo desenho. O que
encanta sobretudo nessa arte, além do seu frescor, preservada durante tantos
milênios pelo microclima interno do ambiente e por um acidente geológico que
tornou a antiga entrada natural da caverna inacessível durante todo esse tempo
para invasores ou as variações climáticas agressivas, é a sua ousadia estética,
a riqueza dos traços, das cores e da concepção de movimento. A sua
“modernidade”, por assim dizer, é desconcertante. Longe de serem rabiscos
toscos ou pueris que pudessem ratificar o equivocado discurso acerca das
limitações comparativas do “homem
primitivo” apregoado por algumas correntes teóricas que tendem a supervalorizar
a evolução tecnológica no delineamento do ‘progresso”, há nos desenhos uma
incrível complexidade e uma rara beleza.
Como
se sabe, a maioria dos desenhos foi
realizada com carvão sobre pedra de fundo amarelo claro ou bege , raspada muitas vezes previamente para uniformização.
Em outros casos, utilizava-se preparados
com o próprio sangue de animais como tinta. Os materiais mais usados como
aglutinante para as pinturas rupestres foram sangue, argila, excrementos
humanos, látex de plantas, gordura e clara de ovos de animais. A cor era obtida
misturando-se o pó de rochas, com destaque para o óxido de ferro, que tem a
coloração vermelho-alaranjada. A
constatação de restos de fogueira no centro das câmaras, em posição estratégica
quanto às paredes pintadas, é compreendida por muitos com a funcionalidade de ,
além de propiciar fisicamente uma maior aproximação e aquecimento dentro do
grupo nas frias noites de inverno, possuir uma geometria intencional e estratégica para projetar as sombras de seus corpos nas
paredes onde estavam as pinturas, de modo que houvesse uma interação dinâmica
entre as sombras dos ocupantes da caverna
e as imagens de animais na parede como numa projeção. Por diversas
razões observadas “in loco” e por analogias com outros estudos sobre a era
Paleolítica, sabe-se também que em geral essas cavernas não eram utilizadas
como moradia permanente, mas apenas eventualmente, o que sugere sua utilização
de forma cerimoniosa para rituais.
Nesses
desenhos, a noção de “movimento” e a
representação para além da concepção meramente passiva da figuração também se fortalece quando se
observa em detalhes que alguns animais têm sombras e perfis de traços duplos ou
triplos, como se tivessem três ou quatro pernas ou vários chifres, todos
desenhados em proporção sequencial, como
nos mostra a rica filmagem de Herzog e os detalhes das fotos. Há várias sequências de ilusão de movimentos de
pernas ou chifres em posição de ataque ou corrida, sugerindo a nítida intenção
de se criar a ideia sequencial e contínua como num filme. Somando-se a essa experiência observada na
Caverna de Chauvet outras descobertas em
diversos sítios arqueológicos ricos na arte rupestre espalhados pelo mundo, bem
assim a analogia com relatos de viagem e estudos antropológicos realizados ‘in
loco” sobre algumas tribos localizadas já entre os séculos XVII-XIX entre os
nativos da América do Norte, Oceania e até mesmo no Brasil, povos que ainda
nesta fase atual de sua existência cultuavam como tradição ritual a dança em
torno das fogueiras, não é demais concluir que há quarenta mil anos atrás, em
Chauvet, houve dentro daquelas cavernas a mais antiga mistura da arte figurativa com suas pinturas
e desenhos, sombras e ilusão de movimento com o teatro de sons e danças ,
criando o primeiro equivalente da experiência cinematográfica da humanidade de
que se tem notícia. Um filme onde os próprios espectadores são simultaneamente
diretores e atores, interagindo entre si
próprios, suas sombras e com os animais e os ambientes pintados nas paredes de
pedra.
O
achado arqueológico exibido no documentário de Herzog talvez tenha sido sob
muitos pontos de vista o mais radical e importante por se tratar, até hoje, da
mais antiga arte paleolítica e da
história do homem que chegou até nós. Entretanto, em diversas outras incursões
nesse campo há experiências igualmente
comparáveis em magnitude, espalhadas por diversos pontos do planeta, ainda que
mais recentes. A reprodução do conteúdo dos painéis parece seguir uma tendência:
cenas de animais, caçadas, desenhos de perfis humanos estilizados, arco e
flecha, lanças e fogueiras. Dentre essas imagens, existe um tipo, em
particular, que está presente em várias dessas pinturas, embora assuma formatos
estéticos diferentes: os painéis de mãos. Em Chauvet, estão logo na entrada
antiga e principal da caverna, dezenas
de mãos impressas em vermelho escuro, tinta predominante a base de sangue. Uma
impressão do formato da mão por inteiro, a chamada técnica de “positivo”, onde
o artista simplesmente mergulha a mão na tinta e depois a pressiona sobre a
parede, num grande e curioso painel
composto de dezenas de mãos sobrepostas, em cor vermelho escuro. Na
“Cueva de las Manos”, sítio rupestre na Patagônia Argentina em que há impressionantes
pinturas datadas de 10.000 anos , há painéis com centenas de mãos, curiosamente
todas de mão esquerda, a maioria delas impressas por uma outra técnica,
denominada “negativo” (estêncil), onde o artista primeiro coloca sua mão sobre
a parede, e depois sopra a tinta sobre ela por um tubo, e quando a retira,
deixa marcado apenas o formato delineado da mão, com a tinta em volta. Nesses
painéis, que estão entre os mais belos já descobertos, há mãos de todos os tamanhos, formatos e cores,
pintadas tanto nas paredes quanto nos tetos das câmaras. Curiosamente, esses desenhos de mãos também
são encontrados, com variações, em diversos outros sítios. Às vezes isoladas,
muitas vezes em blocos. Quem são
eles? Velhos, jovens, mulheres,
crianças? Como viveram aquelas pessoas cujas mãos emolduraram as paredes de
pedra por toda uma eternidade inimaginável para nós, contemporâneos, que durou
40.000 anos? O que pensavam, como sentiam individual ou coletivamente, qual a
intenção das pinturas e desenhos, o que esperavam da vida e quais eram suas
maneiras de colocar em prática, no chamado “mundo real”, seus sonhos e
realizações? Ou por outro lado, é
possível que o “mundo real” para eles, de forma muito diferente da maneira como
hoje definimos o termo, não tivesse nada de concreto e fosse ainda habitado por
deuses e entidades metafísicas abstratas ou corporificadas em formato totêmico humano, animal, raio sol ou
trovão? Como celebravam as alegrias,
como assimilavam suas dores e perdas, como se protegiam do frio, da chuva e das
doenças? O que gostavam de comer, como
organizavam sua vida nas formas grupais de modo a sobreviver num ambiente
hostil dentro de uma natureza sempre plenamente desfavorável ao humano?
Essas pinturas, emblemáticos símbolos do
ser que, consciente ou não da importância de seu ato, pintou as cavernas com
sua própria identidade, são em essência a própria humanidade, aquilo de
abstrato ou de concreto que permanece quando se pensa na nossa particular forma
de habitar o planeta. Portanto, apesar de representarem de um lado a
experiência única e insubstituível, personalíssima no tempo e no espaço
enquanto atividade e expressão direta do indivíduo ou do grupo que as
realizaram, de outro , de forma ambígua como ambígua fluída e indeterminada
também é a presença do homem no mundo, aquelas mãos são também as minhas, são
as mãos dos meus pais, dos meus bisavós, dos meus vizinhos. Aquelas mãos sou eu
e também é o outro. São atestados vivos e coletivos de nossa presença no mundo,
uma testemunha de nossas dores, alegrias, êxitos e fracassos, uma exasperada
declaração de vida, são gritos
proferidos bem alto diante do universo, procurando respostas e indagando sobre
a diferença e a singularidade que nós, humanos, representamos em face do mundo
e da natureza, à qual, por um lado, estamos umbilicalmente ligados num
pertencimento visceral desde que nascemos, mas ao mesmo tempo completamente
desvinculados do ponto de vista existencial, a ponto de constituirmos, a nossa
espécie, através da consciência e da cultura, uma categoria inteiramente
apartada do resto dos animais, plantas e coisas, e até certo ponto estranhos
dentro deste mesmo planeta repleto de vida.
Nesse olhar para longe e ao mesmo tempo
tão perto, para nossas origens, não sabemos com exatidão a respeito do real
significado ou dos usos de outras formas de expressão da humanidade em tão
remotas eras, simplesmente pelo fato de que seu conteúdo real e objetivo não
pode ser reconstituído. Não há como se reproduzir o som, a música, embora
tentemos imaginá-la pelos fragmentos de instrumentos rústicos descobertos. Há
descobertas esparsas e descontextualizadas de utensílios domésticos e
fragmentos de armas, restos do que parecem ter sido rústicos instrumentos
musicais como flautas de ossos, esculturas de madeira ou marfim e instrumentos
percussivos. Por sua própria natureza mais primitiva e instintiva, portanto
mais natural, sua fluência mais “fácil” do que a linguagem figurativa ou
escrita dentro das aptidões humanas, é possível que mesmo antes da formação de
uma linguagem verbal mais desenvolvida e provavelmente antes da melhor
elaboração de uma figuração por imagens, a música tenha estado presente
primeiro na vida desses antigos povos. De todo modo, nenhuma outra forma de
arte parece ter sido tão elaborada, rica e importante no sentido da construção
de uma narrativa histórica passível de ser legada às futuras gerações quanto as
pinturas rupestres. Todos aqueles
desenhos e pinturas da Caverna de Chauvet, juntamente com as outras descobertas espalhadas pelo
planeta que compõem os ricos achados
arqueológicos de pinturas rupestres são o primeiro momento dramático de que se
tem notícia sobre o homem tentando compreender figurativamente a si mesmo e
documentando sua subjetividade na relação com o outro e com o mundo através da
arte. É de difícil investigação ou talvez mesmo impossível a tarefa de tornar
tangível a íntima motivação de cada artista que elaborou cada pintura , em cada
um desses desenhos, como de resto é sempre difícil essa prospecção em qualquer
tempo ou lugar. Quem pintou ou desenhou tais obras, embora tivesse por certo
uma dada intencionalidade para o contexto em que viveu, contribuiu
inexoravelmente para o desvelamento ou o encobrimento da realidade vivida com
seu trabalho, de forma que a sua intencionalidade particular estará sempre em segundo plano frente ao
sentido individual ou coletivo da
apropriação de sua obra pelo olhar posterior, a partir do momento em que ela
surge e de certa forma não mais lhe pertence.
No que diz respeito a este ensaio, o foco entretanto é outro: deixando
temporariamente de lado especulações sobre a motivação última de cada
indivíduo, procuraremos analisar o
efeito e o processo de construção da obra de arte a partir do momento em que
foi criada e legada à humanidade, observando na expressão desse legado em que
medida a atividade criadora é formadora de subjetividade, e também em que
sentido essa subjetividade , tornando-se necessariamente olhar e experiência
com o outro, é também inter-subjetividade a marcar em última instância a
própria presença do homem na história.
Apropriando-nos, nesse intuito, de
alguns conceitos elaborados pelo filósofo Jean-Paul Sartre
(1905-1980), em particular da noção de subjetividade, a apreensão do objeto
artístico neste caso não dispensa a
noção de intencionalidade, mas passa a
enxergá-la como uma determinada atitude que está inexoravelmente vinculada ao
contexto social em que surge o artista. Na medida em que esse artista criador,
ao realizar a obra, voluntária ou involuntariamente materializa uma
corporificação qualquer, que pode tomar
tal ou qual imprevisível formato ora
composto de tintas, carvão e estampados
nas paredes de pedra, ora na forma de
esculturas, telas, música, escrita,
teatro ou cinema, nossa hipótese, ora concordando, ora divergindo, mas sempre
seguindo o fundamental rastilho teórico sartriano, é que esse artista comporá,
ao final, sabendo disso ou não, um determinado auto-retrato de si mesmo e da própria sociedade à qual pertence, que no
fundo é
nada mais que a testemunha temporal de sua história, enquanto grupo ou indivíduo, e essa obra
material se tornará de fato arte no instante em que for apropriada pelo olhar do outro. A partir
desse trajeto, bom base no conceitual sartriano, principalmente aqueles
elaborado nos livros “O que é subjetividade”, “O imaginário”, “A Náusea” e “Que
é a literatura?”, a intenção é construir uma ponte para chegarmos à
abordagem da arte, em geral, como um tipo de ação privilegiada no
desvelamento da realidade do mundo e enquanto tal, em razão da sua natureza de
linguagem e intersubjetividade, tornando-se potencialmente o melhor elemento
para a compreensão de como se forma a consciência engajada na relação do homem
com o mundo e do homem consigo mesmo, enquanto indivíduo e enquanto coletividade.
Por que Sartre, por que a escolha, em
consequência, pela Fenomenologia como nosso guia e em alguns momentos por que a
escolha por essa particular expressão da fenomenologia chamada politicamente,
por assim dizer, de “Existencialismo” como fios condutores da análise
pretendida neste trabalho? A resposta a nossos olhos é simples: É porque
segundo nosso entendimento, corroborando uma vez mais a visão que o próprio autor em estudo tem
sobre a fenomenologia a partir de Husserl, em primeiro lugar, adotamos também o
consenso de que foi com Husserl e a nova abordagem gnosiológica tornada
possível para a filosofia, superando velhos paradoxos das escolas tradicionais,
bem como a partir daí, essa via que simultaneamente recoloca em termos ontológicos a presença do homem no
mundo a partir da forma como ele conhece
o mundo e se reconhece nele, as lentes fenomenológicas tornam-se, no nosso
entendimento, a única aproximação possível do pensamento filosófico com o tênue
e frágil “desvelar” da obra de arte, sem que esta seja destruída ao final.
Sobretudo a escolha pelo grande diferencial destas lentes em detrimento de
outras, é porque vemos em Sartre e na via fenomenológica uma essencial tentativa de resgate do poder
da vida, da espontaneidade e criatividade humanas , além da preservação de certa forma de
encantamento, o “estranhamento” original que possivelmente fundou a filosofia
na Grécia antiga, desse “Páthos” no melhor sentido em que os gregos entendiam
essa palavra, que implica em sempre ter novos olhos para o mundo, um mundo
dinâmico e mutante, que a cada segundo lança novos desafios para ser
apreendido, interpretado ou recriado em novos significados que nunca se
esgotam. Esse “Páthos” que se manifesta na produção do conhecimento e na
estreita relação do homem diante do mundo mediado por uma intencionalidade que
também é, por fim, curiosidade existencial e uma busca incessante pelos limites
da vida enquanto esse conhecimento se dá, fazendo cair os antigos véus que
embaçavam todas as possibilidades escolásticas enquanto regras imutáveis do
pensamento e que propunham determinar a
forma definitiva e acabada as vias limitadas do ser. Como muito bem expressado
pelo próprio autor, no famoso texto “ Uma ideia fundamental da fenomenologia de
Husserl, é assim que surge a intencionalidade” como conceito-chave e condição
do homem estar no mundo:
“(...) Para Husserl e os fenomenólogos, a
consciência que tomamos das coisas não se limita em absoluto ao conhecimento delas. O conhecimento ou ‘pura representação” é
apenas uma das formas possíveis da minha consciência “de” tal árvore: posso
também amá-la, temê-la, detestá-la, e essa superação da consciência por si
mesma, que chamamos de “intencionalidade”, reaparece no temor, no ódio e no
amor. Detestar outrem é ainda uma maneira de explodir em direção a ele (...).
Husserl reinstalou o horror e o encanto nas coisas. Ele nos restituiu o mundo
dos artistas e dos profetas: assustador, hostil , perigoso, com portos seguros
de dádivas e amor”.
(Sartre, 2005, p.55-57)
Nesse contexto, lançamos o foco sobre o
“status” privilegiado da arte, e dentre elas sobre uma arte em particular, o
cinema, como potencialmente a experiência contemporânea que apresenta um maior
conjunto de recursos para solicitar o envolvimento e a liberdade do seu espectador
no processo de construção e desvelamento do real. Para isso, utilizaremos como
exemplo uma leitura possível do filme
“Birdman”, filme recentemente realizado
pelo cinema americano, como uma escolha pessoal dentre tantas outras formas de
propostas e linguagens possíveis, mas
com o intuito de destacar na arte do cinema um formato privilegiado para
colocar seu objeto e estabelecer uma determinada vinculação particularmente
rica com o espectador, uma vez que ele geralmente se utiliza, de uma só vez e
simultaneamente, de elementos de som, imagem, texto e movimento para sua
realização, tornando a nosso ver, mais ricas e multifacetadas as possibilidades
de estimular ou solicitar a participação do olhar do outro. A partir daí,
imediatamente um questionamento se coloca: nessa perspectiva do tema proposto
por Sartre em “O imaginário”, onde a arte surge como uma atividade capaz de
solicitar, através da materialidade que compõe esse analogon a liberdade do
outro através da imaginação, em que sentido ela própria se constrói enquanto
ação capaz de desvelar ou encobrir o mundo ? Ou seja: se a arte pode ser uma
ação desveladora sobre o mundo, e admitimos que o cinema, sem dúvida, é um tipo de arte, todo cinema, toda produção
cinematográfica será capaz de trazer ou colocar-se de tal modo que seu apelo à
liberdade do espectador surja necessariamente? Ou antes, em determinado olhar
do cinema, como de resto pode ocorrer também em qualquer tipo de atividade
artística, isso se coloca exatamente para servir a um fim contrário? Nesse trajeto, sempre utilizando as lentes
de Sartre como pano de fundo teórico, tentaremos pensar a subjetividade humana
a partir da arte, mas também compreendendo os elementos da arte que resultam
historicamente como reflexo direto de uma dada subjetividade humana, coletiva
ou individual no tempo, numa via
contínua e de mão dupla, que coincide com o próprio ser do homem dentro da sua
temporalidade histórica, em linhas gerais o que Sartre denomina “Ser-Para-si”, e mais ainda na extensão do
conceito ao “Ser-Para-outro”, porque seria impossível admitir o homem em seu
mundo sem que isso pressuponha imediatamente uma forma de relação com o outro,
com a presença e o olhar do outro na definição mesma do “que eu sou”, e sem
pressupor ainda alguma forma de arte para intermediar essa relação.
REPRESENTAÇÃO E SUBJETIVIDADE
No
tema escolhido para abertura deste ensaio, a contemplação dos fabulosos
desenhos, não somente na caverna de Chauvet documentada por Herzog, mas também
dos encontrados em Altamira , Pont D’arc
ou Lascaux dentre outras espalhadas por
vários pontos do planeta, todos representantes de períodos, povos, culturas e
épocas diferentes, podemos saber muito sobre a forma de vida antiga da humanidade,
mas também muito nos é velado, como de resto ocorre com muitos objetos
artísticos quando interpelados pelo nosso olhar, pela nossa presença. Segundo
Sartre, essa ambiguidade se explica porque a riqueza da experiência original
perceptiva não poderá jamais ser “revivida” em toda a sua plenitude apenas pela
figuração da pintura ou desenho. Tal experiência do mundo foi provavelmente
testemunhada apenas pelos próprios “artistas”, no momento de materialização,
corporificação do seu objeto. Para quem está ali, hoje, na caverna,
contemplando os desenhos e pinturas ou de longe, vendo-os através das imagens
digitais por um filme gravado há mais ou menos cinco anos, a experiência é de
outra natureza, pois contemplamos formas materiais por ele denominadas
“Analogons”. A partir daí, construímos imagens reflexivas ou imaginativas, mas
nunca reconstruímos a experiência original. Ainda assim, mesmo que em termos
absolutos esse conhecimento seja impossível, é possível contudo identificar em
diversos formatos, cores e perspectivas da sua figuração, além da “escolha” dos
elementos específicos feita por aqueles povos para representação, muitos outros
aspectos da sua vida através da sua arte. Podemos “ler” nos desenhos sobre
caçadas a importância do aspecto coletivo das manifestações, o caráter nômade
dos grupamentos e a dependência da proteína animal para sua subsistência
enquanto ainda não se tornavam povos sedentários. É possível também identificar
alguns tipos de armas ou instrumentos, a
preferência pela realização de desenhos dentro de grutas e outros locais
protegidos em vez de ao ar livre, o que nos leva logo a indagar qual o papel
central ocupado pelas grutas e cavernas na vida de povos nômades que
sabidamente não construíam habitações permanentes, e ainda através do estudo
mais aprofundado, descobrir até mesmo os equipamentos utilizados nas pinturas e
a composição de suas tintas, além da datação do período em que foram feitas,
suas diversas épocas sobrepostas, uma vez que tais desenhos, mesmo em cada
caverna ou gruta tomada individualmente, não foram produzidos todos de uma só
vez, numa mesma época, e certamente não apenas por uma pessoa ou mesmo apenas
uma única geração de uma mesma tribo ou clã. Todavia, do mesmo modo como
“vemos” boa parte das informações a partir do que é informado diretamente pelos
traços, cores e formatos, por outro lado é impossível obter de imediato outras
informações sobre muitos outros aspectos de natureza mais complexa como a
religiosidade dos grupos, sua relação com os deuses ou os elementos da
natureza. Como há poucos desenhos de vestimentas, não é possível “ver” o tipo
de trajes que comumente usavam, e se havia distinção de castas, algum sistema
hierárquico, não sabemos como era a regular divisão de tarefas dentro daquela
dada sociedade, nem mesmo a repartição das riquezas ou a administração pública
e privada de cada grupo no seu cotidiano. Não sabemos das preferências e gostos
individuais dentro de cada núcleo familiar nem as características que o
compunham. Não sabemos sequer a natureza e a finalidade específica dos desenhos
espalhados por tantos lugares do nosso planeta, uma vez que essas pinturas
datam tão longinquamente. Seriam memória
coletiva, glorificação de feitos heroicos passados ou uma representação visual de rituais praticados
previamente como preparação para caçadas futuras, um registro de natureza espiritual pedagógica
ou apenas lúdica? Talvez, num contexto onde a linguagem verbal ainda era pouco
desenvolvida, tenha sido apenas uma forma de legar uma narrativa visual para suas
gerações seguintes, com o objetivo de criar uma coesão que fortalecesse cada
vez mais o grupo? De todo modo, a experiência artística, quer seja uma mera
“fruição estética” ou uma “observação fenomenológica” que procura se aproximar
do seu objeto aos poucos, com maior profundidade, situação que nos é permitida
pela contemplação das pinturas legada na forma de análogons nas paredes das
cavernas, não são a experiência original, irrecuperável, que aqueles povos
vivenciaram, e nossas imagens construídas de forma reflexiva ou criadora
imaginativa sobre o que se vê , por si só, operam uma espécie de redução, num
primeiro momento, porque a realidade múltipla e complexa, a experiência da aparição do fenômeno que foi vivenciado
pelos povos pintores é reduzido em sua multiplicidade de objetos (cores, traços,
texturas) através dos analogons, e num segundo momento, sem contudo recriar a
história original ou mesmo sem conferir qualquer tipo de novo atributo ao
objeto. Essa “observação fenomenológica” também pode ser expandida do ponto de
vista imaginativo, quando nossa consciência “constrói” novas possibilidades
através da imagem que vivencia valorativamente, e essa atividade imaginativa,
criadora, pela liberdade inafastável que sua existência pressupõe, é que em
última instância vai caracterizar a maneira particular do homem estar no mundo.
Toda consciência necessariamente é composta desses “três estágios”, que na
verdade não são coisas, lugares ou nenhum tipo de substância, mas apenas
caracterizam um tipo de ação, ou seja, a forma da consciência “estar presente”
ao mundo: a percepção, a reflexão e a imaginação.
Do
ponto de vista deste ensaio, o que nos interessa no momento na observação de
tais objetos é que não sabemos a rigor, em nenhum instante, apenas pela
contemplação visual de tais pinturas, qual a influência que essa espécie de
arte exercia sobre o homem que as pintou. Entretanto, é razoável pensar pelo
que podemos perceber, e se adicionarmos observações e estudos paralelos
mediados por outras formas de conhecimento científico, que tais desenhos por sua
magnitude, temática e qualidade não tenham passado despercebidos ou representado algo banal ou sem valor pelos
indivíduos e povos antigos que os criaram, bem assim é bastante sensato
concluir que as próprias escolhas materiais, imaginativas e estéticas adotadas
pelos artistas paleolíticos, a sua forma da criação, as noções de proporção,
cores, os objetos, tudo isso revela subjetividades eloquentes sobre esses
mesmos artistas e sobre o contexto em que vivia seu povo, e ao mesmo tempo isso
denuncia suas características determinadas enquanto indivíduos e principalmente
enquanto sociedade, numa relação de reciprocidade dinâmica entre indivíduo e
grupo social que é visceral e se expressa tantas vezes involuntariamente . Essa
noção de subjetividade, adotada para o propósito deste trabalho de forma
explícita ou subentendida, está sempre vinculada ao conceito como exposto por
Sartre, principalmente na obra “O que é subjetividade” (Ed. Nova Fronteira,
2014):
“(...) a subjetividade é interiorização e
retotalização, isto é, no fundo, para retomar termos mais vagos, e ao mesmo
tempo, mais conhecidos: vive-se; a subjetividade é viver o seu ser, vive-se o
que se é, e o que se é em uma sociedade, pois não conhecemos outro estado do
homem; ele é precisamente um ser social, ser social que, ao mesmo tempo, vive a
sociedade inteira do seu ponto de vista. Considero que um indivíduo, seja ele
quem for, ou um grupo, ou um conjunto qualquer, é uma encarnação da sociedade
total enquanto ele tem de viver o que ele é. Aliás, é apenas porque podemos
conceber o jogo dialético de uma totalização de envolvimento, isto é, de uma
totalização que se estende ao conjunto social, e de uma totalização de
condensação, o que chamo de encarnação, que faz com que cada indivíduo seja, de
certo modo, a representação total de sua época. É apenas por causa disso que se
pode conceber uma verdadeira dialética social; em tais condições , considero
que essa subjetividade social é a própria definição de subjetividade. A
subjetividade no nível social é uma subjetividade social. O que isso quer
dizer? Quer dizer que tudo o que um indivíduo faz, todos os seus projetos,
todos os seus atos, tudo o que ele suporta também, só reflete—mas não no
sentido escolástico do reflexo de certa tradição marxista--, só encarna, se
preferirem, a própria sociedade. Assim Flaubert escreve Madame Bovary! Que faz
ele? De um lado, quer traçar uma descrição objetiva de determinado meio, o meio
rural da França nos anos 1850, com suas transformações, o aparecimento do
médico que substitui o atendente sanitarista, a ascensão de uma pequena
burguesia não religiosa etc. Tudo isso, ele quer descrever perfeitamente
consciente. Mas, ao mesmo tempo, quem é ele próprio que está escrevendo assim?
Ele nada mais é que a encarnação de tudo isso. Na realidade, era filho de
médico, filho de médico que vivia no campo, ele mesmo morava fora da cidade de
Rouen, num lugarejo chamado Croissé, tinha ligações com o universo dos
proprietários rurais, não investia seu dinheiro como era o costume na época, em
transações industriais, ele era precisamente o que descreve. Vai ainda mais
longe porque, na medida em que é rico e vítima de sua família, continuando no
ambiente doméstico, dominado primeiro pelo pai e depois pela mãe, em situação
bem parecida com a situação feminina da época, ele projeta seu ser na heroína
do livro. Ou seja, há duas estruturas nesse livro, que são a mesma coisa,
porque só se totaliza o ser social que se é, e o mesmo tempo, se descreve a
sociedade que se vê! O que é muito interessante no caso de Flaubert é que haja
não uma sensibilidade extraordinária, fora do comum, transformada por vícios ou
por uma infância particularmente sinistra, mas uma vida real da época que se
projeta sob uma forma subjetiva em um livro que pretende descrever objetivamente
a época. (...) Se eu escrevesse um romance sobre o que me cerca, o romance
seria eu próprio, como uma projeção e, ao mesmo tempo, tudo o que me cerca;
aliás, eu sou aquilo que me cerca, de modo que encontramos aqui uma
retotalização prática que é a mesma que encontraremos em toda parte”. (Sartre J.-P. , O que é a subjetividade?,
2015, p. 99-101)
Ressalte-se contudo, que ao utilizarmos o exemplo acima,
uma simples tentativa de se compreender por comparação e gradação histórica o
alcance de alguns possíveis significados da arte paleolítica, porque esta é
sobretudo uma arte visual e o primeiro registro documentado, além de uma
narrativa extremamente rica acerca da atividade artística do homem sobre a
Terra, o que ora se pretende, embora possa haver em nossa análise elementos
emprestados de outros campos do saber apenas para propiciar uma ordenação
discursiva, não pretendemos abranger em profundidade o campo de discussão
próprio da Antropologia, da Arqueologia ou enveredar pelas inúmeras teorias
estéticas da arte, mas sim permanecer no âmbito das considerações filosóficas
sobre a relação entre a experiência estética, tomada como sentido genérico e
característico da expressão humana, forma inafastável de estar no mundo, e seu
rico papel enquanto formadora da subjetividade individual e coletiva, e
simultaneamente compreender o objeto de arte como ação: produto e produtor
dessa subjetividade na história, uma vez que em algum momento sua própria
narrativa se constituirá autonomamente, por diversas formas, a partir desse
tipo especial de “fazer”, uma ação
privilegiada dentre outras para a compreensão da plenitude da vida e do homem.
Seguindo
por esse viés conceitual, é necessário ponderar inicialmente que nossa leitura
de Sartre, tanto na obra “ O Imaginário”
como o “Ser e o nada” nos autoriza a
inferir que embora o “problema” e o “projeto” ontológico propostos pelo autor,
do qual somos partidários e que sem dúvida colocou Sartre definitivamente como
um dos mais fortes fundamentos para o ramo de estudos que se convencionou
chamar de “crítica e subjetividade”, esse mesmo “projeto ontológico” que ainda
hoje é equivocadamente motivo para tantas divergências, polêmicas e propostas
alternativas de compreensão no terreno das “humanidades”, notadamente depois da
acepção do Estruturalismo, por outro lado o problema temático e histórico do
conhecimento dentro da tradição filosófica nos parece definitivamente
resolvido, uma vez que a Fenomenologia foi capaz de superar a velha dicotomia
entre sujeito x objeto da forma como o pensamento clássico a propunha, com
ênfases equivocadas ora no “mundo material” que lhe atribuía uma causalidade e
autonomia incabíveis, ora no psicologismo que situava “na mente” as
possibilidades de vir a conhecer o mundo, na medida em que essa mente de certa
forma criaria internamente, de forma reflexiva (de reflexo, imagem espelhada e
não de reflexão, processo de mediação), aquilo que percebe no mundo exterior.
Em Sartre, as questões essenciais da
gnosiologia clássica deslocam-se
definitivamente para a abordagem do fenômeno, pois não há mais um mundo
“oculto” pelo véu da ‘coisa-em-si” e a própria consciência não é mais “coisa”
nem “substância”, mas relação.
“O pensamento moderno realizou progresso
considerável ao reduzir o existente à série de aparições que o manifestam.
Visava-se com isso suprimir certo número de dualismos que embaraçavam a
filosofia e substituí-los pelo monismo do fenômeno (...). O fenômeno é o que se
manifesta, e o ser manifesta-se a todos de algum modo, pois dele podemos falar
e dele temos certa compreensão. Assim, deve haver um fenômeno de ser, uma aparição do ser, descritível como tal. O ser
nos será revelado por algum meio de acesso imediato, o tédio, a náusea, etc, e
a ontologia será a descrição do fenômeno de ser tal como se manifesta, quer
dizer, sem intermediários”. (Sartre J.-P. , O Ser e o Nada, 8. ª ed, 2000, p. 15-19)
Dessa
forma, em consonância com as palavras do autor nas citadas obras, este ensaio não pretende, por considerar
plenamente resolvida a questão, em momento algum explorar ou abordar qualquer
possível “fenomenologia da percepção” ou “teoria do conhecimento” quando se
propõe a analisar uma obra de cinema como meio para introduzir e mostrar a
relevância e atualidade das lentes Sartrianas como leitura do mundo. A
consciência, afinal, não é um lugar nem uma substância, como já foi dito com
muita propriedade. É uma relação que pressupõe a existência de sensações e imaginação envolvendo homem e
mundo e o homem consigo mesmo, num processo contínuo e infinito, mas ao mesmo tempo um processo histórico e
temporal que sempre assumirá materialmente esta ou aquela característica
preponderante, porque o contexto é algo que não se pode perder de vista.
Afinal, “Toda consciência é consciência
de alguma coisa”. O objetivo aqui é apenas ressaltar como essa importante mudança
de eixo na formulação do problema do conhecimento que por sua vez muda
radicalmente o “status” do homem no mundo, recolocando a questão do ser através
de nova compreensão do conceito de consciência, e a partir dela, os
desdobramentos necessários dos conceitos de liberdade, engajamento e má-fé,
tendo a arte como mediador entre homem e mundo, e o homem para consigo mesmo,
através dos outros.
IMAGEM
e CONSCIÊNCIA
Para
Sartre, a imagem é um ato, oriundo de uma intencionalidade da consciência,
posto que esta não é uma coisa, mas sim uma relação :
“ Em consequência, diremos que a
imagem é um ato que visa em sua corporeidade um objeto ausente ou inexistente,
através de um conteúdo físico ou psíquico que não se dá em si mesmo, mas a
título de representante analógico do
objeto visado(...) Não se pode estudar à parte a imagem mental. Não há um mundo
de imagens e um mundo dos objetos. Mas todo objeto, quer se apresente á
percepção, quer apareça ao sentido íntimo, é suscetível de funcionar como
realidade presente ou como imagem, segundo o centro de referência escolhido. Os
dois mundos, o imaginário e o real, são constituídos pelos mesmos objetos; só
variam os agrupamentos e a interpretação desses objetos. O que define o mundo
imaginário tanto quanto o universo real é uma atitude da consciência”. (Sartre J.-P. , O Imaginário, 1996, p. 37)
Para
compreender a real extensão do conceito de imagem e sua estreita vinculação com
a consciência, é necessário também a
explicitação do sentido de consciência. Para Sartre, seguindo a linha fenomenológica traçada por
Husserl, “Toda consciência é consciência de alguma coisa”, sempre, e há vários
tipos de consciência que necessariamente surgem na experiência do homem com o
mundo, todas formas de ação de uma mesma consciência. Sartre mostra uma
consciência de percepção, num primeiro momento,
dada pela apreensão imediata dos objetos que aparecem aos sentidos. As
inter-relações existentes entre as coisas no mundo são infinitas, impossíveis
de serem apreendidas em sua totalidade. Dessa forma, a percepção assimilará do
objeto apenas determinadas informações que constituirão aquilo que podemos
conhecer sobre a realidade. Mesmo que
sejamos expostos aos mesmos objetos novamente,
certamente surgirão outras informações, novas formas de perceber uma
mesma realidade, mas nunca será possível a apreensão absoluta de uma
totalidade. A partir daí, a consciência que não é lugar nem coisa, sai do
comportamento “ativo” de investigação e assume atitude um pouco mais “passiva”
, uma atitude de reflexão sobre o objeto que lhe foi dado, de uma maneira
particular, aproximando-se dele e refletindo sobre si mesma. Mas nossa
consciência, justamente por não poder conhecer os objetos da realidade de uma
forma pura ou absoluta, pela infinitude de relações de que o real é composto,
cria uma outra forma de apreender os dados da experiência, ao agrega às
percepções valores emocionais, afetivos: a consciência imaginativa. É
principalmente sobre esta última forma de consciência que Sartre vai
desenvolver suas teses na obra “O imaginário”. Imaginar é negar, de certa
forma, a realidade pura do objeto no mundo apreendido pela percepção, à medida
em que a consciência humana sempre vai valorar esse processo com características emocionais, individuais e
únicas na forma de imagens e informações particulares para cada conhecimento
assimilado. Imaginar é perceber de uma maneira completamente particular,
individual, afetiva e única também por ser pertinente á história de cada um,
esta ou aquela maneira específica de se relacionar com o objeto em questão. E
como regra indissociável, uma forma de se livrar de todo psicologismo ou
idealismo, está claro para Sartre desde sempre que essa imaginação criadora não
altera a existência do objeto percebido. Dessa forma, em termos absolutos, para
Sartre a Consciência, à medida principalmente em que é imaginativa, possui
total liberdade, porque podemos fazer o uso que quisermos dela, podemos fazer
surgir o objeto para nosso imaginário, ele estando presente , ausente ou
inexistente, tornando desnecessária a
repetição da experiência original da percepção do real como única fonte de
conhecimento.
Assim
ratifica-se uma vez mais a proposta fenomenológica de superação da antiga
gnosiologia clássica na bipolarização entre sujeito x objeto, pela
independência: a imagem de minha consciência imaginativa não é o objeto, não é
a realidade exterior nem lhe causa qualquer movimento ou ação, alteração de
seus atributos físicos. Contudo, pode ocorrer a situação onde minha imagem se
altere a qualquer momento por uma
mudança no objeto, temporalmente, mas sem que isso apresente minha consciência como um mero “reflexo” do
que se passa com ele, uma vez que na consciência mesmo não há nada, ela é
apenas relação com seus objetos. Consciência é na verdade a relação entre o
observador e aquilo que ele vive como experiência . Por óbvio, não temos como
conferir atributo de realidade baseando-nos exclusivamente nas nossas imagens
mentais. A consciência imaginante é criativa e livre portanto, porque “recria”
os objetos espontaneamente. Toda consciência também é afetividade,
espontaneidade e motivação, quando imagina:
“ (...) Uma consciência é
inteiramente síntese, íntima de si mesma: é no mais profundo dessa
interioridade sintética que ela pode juntar-se, por um ato de retenção ou de
protensão, a uma consciência anterior ou posterior. Melhor ainda: para que uma
consciência possa agir sobre outra consciência, é preciso que seja retida e
recriada pela consciência sobre a qual deve agir. Não se trata jamais de
passividade, mas de assimilações e desassimilações internas no seio de uma
síntese intencional que é transparente para si própria. Uma consciência não é
causa de outra consciência: ela a motiva (...) A síntese da imagem vem
acompanhada de uma consciência muito forte de espontaneidade, de liberdade,
poderíamos dizer”. (Sartre
J.-P. , O Imaginário, 1996, p. 44-48)
Frisando
o que já foi mencionado na abertura deste Ensaio, a observação das pinturas do período
paleolítico incita a muitos questionamentos. Tais respostas, quando são
alcançadas, o são sempre, ou por intermédio da imaginação criativa, que
desenvolve uma narrativa paralela ao que está sendo visto, ou por meio de uma
forma reflexiva, onde a consciência recorre ao auxílio de outras espécies de
conhecimento ou outras ciências
pela mediação e formulação das probabilidades, hipóteses e teorias que
preenchem as lacunas do que não está imediatamente à disposição dos sentidos ou
da percepção sobre seus reais objetos, já perdidos no tempo. De todo modo, não
podemos, segundo Sartre (O Imaginário), para alcançar qualquer resposta,
recorrer mais à percepção original do
objeto que deu origem às pinturas simplesmente porque não o temos mais
diante de nós, no tempo nem no espaço. Temos apenas sua imagem. E de outro
modo, também essa experiência original não é mais a única possível para que
haja alguma espécie de vinculação entre o espectador e o objeto que se observa,
uma vez que essa “imagem” surgiu como
itermediação. Para nós, contemporâneos, também não estão mais
imediatamente ao sabor de nossa percepção todas as infinitas e irredutíveis
situações reais vividas por cada um daqueles indivíduos ou grupos representados
nesses verdadeiros painéis artísticos. Não sabemos nem mesmo se elas eram uma
figuração de algo que se passou na vida do artista ou uma preparação para algo
futuro. De todo modo, somente quem
poderia tê-la experienciado originalmente foi o próprio artista-ancestral
(“homem primitivo”) que a viveu, em algum momento de sua vida, e dessa forma
tentou recriar como registro de um passado perceptivo ou como augúrio de um futuro imagético essa experiência sob a
forma de uma cópia material do objeto de suas percepções nas paredes das
cavernas, ainda que essa experiência de desenhar ou pintar o que viu ou
imaginou, por si só, opere um tipo de redução sobre todas as possibilidades do
real. Segundo nossa leitura de Sartre, representar por imagens é
irremediavelmente reduzir a realidade absoluta intangível do mundo, portanto a
imagem será sempre menor e menos rica do que o objeto real da percepção, num
primeiro momento, até que a imaginação se apodere da ação, recriando novos
significados para o que se vê. Os outros que vêem as pinturas posteriormente, sempre
as terão como referência entre aquele objeto real fruto da percepção de alguém
e a imagem que formarão a partir daí, subjetivamente (intelectual, existencial
e afetivamente) pela relação instaurada por um olhar que vê o desenho mas
também vê a si mesmo, enquanto consciência.
O objeto que faz a ligação entre o imaginado e o real é conceituado por
Sartre, na definição de “Analogon” :
“(...)
Empregamos três procedimentos para reencontrar o rosto de Pierre. Nos três
casos, descobrimos uma “intenção”, e essa intenção visa, nos três casos, o
mesmo objeto. Esse objeto não é nem a representação nem a foto, nem a
caricatura: é meu amigo Pierre. Além disso, nos três casos, viso o objeto da
mesma maneira: é no terreno da percepção que eu quero fazer aparecer o rosto de
Pierre, que quero “torná-lo presente’. E, como não posso fazer surgir sua
percepção diretamente, sirvo-me de uma certa matéria que age como um análogon,
como um equivalente de percepção. (...) Em consequência, diremos que imagem é
um ato que visa em sua corporeidade um objeto ausente ou inexistente, através
de um conteúdo físico ou psíquico que não se dá em si mesmo, mas a título de
“representante analógico” do objeto visado (...)”. (Sartre
J.-P. , O Imaginário, 1996, p. 34-37)
Portanto,
esse “analogon” que nada mais é que um “equivalente de percepção” sempre será
representado pelo objeto de arte independentemente da intenção de seu criador,
porque é isso que permite a transição entre a abstração criadora para
materialidade da imagem, e vice-versa. A rigor não sabemos, a respeito dessas
pinturas, se para o artista a experiência estética íntima foi perceptiva para a realização de uma dada pintura, em
particular, num primeiro momento quando provavelmente observou os animais na
natureza ou atividades de caçadas cuja aparência iria reproduzir ou imaginativa
num segundo momento, enquanto estava na caverna com seu carvão e sua tinta,
tendo como painel as próprias paredes e como rascunho a consciência dinâmica de
uma cena-objeto real percebida que depois
tornou-se imagem ou, ao contrário, baseado em observações anteriores do mundo à
sua volta, primeiro ele imaginou uma
cena ou uma caçada provavelmente bem sucedida a se realizar no futuro, e
apelando a um recurso de memória e revivamento de sua percepção daqueles
objetos , bisões, leões, mamutes, essas imagens surgiram novamente para ele não
como uma renovação da percepção original de um objeto que não se encontra mais
presente no local e no momento, mas como um recurso da consciência reflexiva e
imaginativa que traz-lhe novamente a imagem para possibilitar sua criação
artística. Para Sartre e a fenomenologia, evidentemente que a imagem do bisão
não é o bisão real, nem é a consciência em sua atividade perceptiva, uma vez
que seu objeto real não se encontra mais presente, mas a imagem formada,
daquele bisão, ou da particularidade de um bisão com tais e quais
características físicas específicas é resultado de uma atuação reflexiva e criativa de uma
consciência que pode pensar a si mesma e à própria experiência. Na condição de cenas reais percebidas, as
experiências humanas cuja figuração as pinturas retratam seriam compostas de uma quantidade infinita de
detalhes, de riquezas de formas, cores, conteúdos, movimento, cheiros e sons
que jamais poderiam ser inteiramente transpostos representativamente para a própria cena
pintada nas paredes e apreendida como imagem. O processo consciente de formação
da imagem, por si só, atua de forma a reduzir a infinitude de dados presentes
na percepção da realidade. Todo o resto,
tanto os antigos que eram os contemporâneos dos homens ou mulheres que
realizaram essa arte quanto os que
vieram depois , e isso vale também para nós mesmos, situados a quarenta mil
anos mais tarde, os desenhos são apenas símbolos, representações ou “analogons”
como mencionado acima. Uma referência simbólica material a partir da qual
determinada forma é utilizada por um
criador, um artista, para se comunicar com um outro observador.
LIBERDADE ABSOLUTA E EXISTÊNCIA
Uma
vez que é através da imaginação (imaginário) que o homem “nega” o mundo e o
conhecimento como mera passividade, à medida em que exerce ativamente a criação
sobre tudo o que vê (experimenta), está, dessa forma, colocada definitivamente
pelo autor a questão da liberdade, que é dupla: gnosiológica, porque desafia e
supera a tradição da teoria do conhecimento dentro da escola filosófica, e ao
mesmo tempo em termos ontológicos, porque é uma liberdade absoluta e real,
intrinsecamente vinculada com a forma de surgir o homem no mundo. O homem, em
certo sentido, se confunde com a liberdade, ele “é” liberdade, para Sartre,
condição esta da qual sequer tem “liberdade” para deixar de ser. Se nossa
consciência não é a causa primeira e última das alterações dos atributos dos
objetos, e ao mesmo tempo se não somos
meros receptores passivos ou escravos dos objetos que há no mundo,
é a nossa liberdade de fugir aos
condicionamentos externos de toda natureza que nos recoloca o mesmo mundo
enquanto ilimitadas possibilidades. A intencionalidade, nesse contexto, assume
papel preponderante, e sempre virá “carregada” com formas “não-puras” de
conhecimento, como se fosse apenas um conhecimento frio, lógico, proposicional.
O fato de se pensar “toda consciência é consciência de algo” revela sua intencionalidade
e a sua capacidade de pôr um objeto (consciência tética, posicional). Contudo,
uma vez que ela tem a capacidade universal de pôr esse objeto, simultaneamente
ela se torna não-posicional (não-tética) com relação ao que está ao seu redor
(pano de fundo e horizontes). Esse importante termo que implica em movimento da
consciência de aproximação ou afastamento do seu objeto é muitas vezes
comparado com “atenção” ou “foco”, mas não sem um empobrecimento conceitual.
“Imaginem agora uma sequência encadeada
de explosões que nos arrancam de nós mesmos, que não deixam a um “Nós mesmos”
sequer o ócio de se formar atrás delas, mas que nos jogam, ao contrário, além
delas, na poeira seca do mundo, sobre a terra rude, entre as coisas; imaginem
que somos assim repelidos, abandonados por nossa própria natureza em um mundo
indiferente, hostil e recalcitrante. Vocês terão captado o sentido profundo dda
descoberta que Husserl exprime nessa famosa frase: “Toda consciência é
consciência de alguma coisa”. Não é
necessário mais do uqe isso para pôr termo à filosofia aconhegante da
imanência, na qual tudo se faz por compromisso, por trocas protoplasmáticas,
por uma morna química celular. A filosofia da transcendência nos joga na via
expressa, entre ameaças, sob uma luz ofuscante. Ser, diz Heidegger, é
estar-no-mundo. Compreendam esse “estar-no” como um movimento. Ser é explodir
para dentro do mundo, é a partir de um nada de mundo e de consciência para
subitamente explodir-como-consciência-no-mundo. Se a consciência tentar se
reconstituir, coincidir enfim consigo mesma, então imediatamente, a portas
fechadas, se aniquilará. Essa necessidade da consciência de existir como
consciência de outra coisa que não ela mesma, Husserl a chama de
“intencionalidade. (...) essa superação da consciência por si mesma, que
chamamos de “intencionalidade”, reaparece no temor, no ódio e no amor. Detestar
outrem é ainda uma maneira de explodir em direção a ele; é encontrar-se
subitamente diante de um estranho cuja qualidade objetiva de “odiável’ vivemos
e sofremos antes de tudo. Eis que essas famossas reações “subjetivas’ – ódio,
amor, temor, simpatia – que boiavam na malcheirosa salmoura do Espírito de
repente se desvencilham dele: são apenas maneiras de descobrir o mundo. São as
coisas que subitamente se desvendam para nós como odiáveis, simpáticas,
horríveis, amáveis. Constitui uma propriedade
dessa máscara japonesa ser terrível – uma inesgotável e irredutível propriedade
que constitui sua própria natureza --, e não a soma de nossas reações subjetivas
a um pedaço de madeira esculpida. Husserl reinstalou o horror e o encanto nas
coisas. Ele nos restituiu o mundo dos artistas e dos profetas: assustador,
hostil, perigoso, com portos seguros de dádiva e de amor. (...) afinal de
contas, tudo está fora, no mundo, entre os outros. Não é em sabe-se lá qual
retraimento que nos descobriremos: é na estrada, na cidade, no meio da
multidão, coisa entre as coisas, homem entre os homens”. (SARTRE, “Situações
I”, Críticas Literárias, pg 56-57, Ed. CosacNaify, 2005, S. Paulo-SP)
Nesse
caminho para a melhor compreensão da consciência e sua relação com a imagem e
posicionamento como mediadores do mundo, surgem importantes conceitos como
o “Ser-em-si,” o “Ser-para-si” e
ampliando-se este último no que diz respeito à importância fundamental do
aspecto de inter-subjetividade presente nesse processo, Sartre introduz a noção
de “Ser-para-outro” , elemento chave
para a tese central deste Ensaio. Para Sartre essas são as formas de aparição,
a maneira como surgem as coisas e o homem no mundo, e como eles se inter-relacionam entre si. A
intencionalidade da consciência desenvolve um papel fundamental nessa relação
que se estabelece a partir daí, uma vez que a condição de o homem estar no
mundo do ponto de vista gnosiológico inaugurado pela fenomenologia Husserliana
é fundante e indissociável de sua existência:
“A consciência é fundamental para a
realidade humana, de acordo com Sartre, não só porque os seres humanos são
necessariamente conscientes, mas porque uma explicação completa da consciência
implica explorações do seu sujeito, dos seus objetos e das suas modalidades – e
essas últimas produzem uma descrição totalmente completa do ser dos seres
humanos como o que Heidegger chamou de “ser-no-mundo”: sujeitos livres corporais
imersos em um mundo intersubjetivo de objetos significativos e dotados de valores. Isso ajuda a explicar
por que, ás vezes, Sartre usa, de maneira intercambiável, os termos
“consciência” e “realidade humana” e por que seu termo técnico “ser-para-si”
parece algumas vezes referir-se estreitamente à consciência e outras vezes ao
ser humano em geral. Por que, fora o precedente histórico de Hegel, Sartre
escolhe esses termos particulares “ser-para-si” e “ser-em-si”? O fato de que
toda consciência é consciência de algo
é um fio condutor através desse labirinto. O ser-em-si, Sartre nos diz, é em si mesmo, ao passo que o
ser-para-si não é. Do fato de que a consciência é de algo podemos inferir que
tem um ‘dentro’. Ela é apenas esse ser para além de si mesma. Como uma relação entre um sujeito e um objeto, a
consciência não pode existir sem algo para preencher o espaço vazio. Sartre,
algumas vezes caracteriza a consciência como uma “falta perpétua’. Seres-em-si,
em contraste, “são completos neles mesmos”, pois não lhes falta nada”. (Sartre,
Uma Introdução. MORRIS, Katherine J., Artmed Ed. , São Paulo, 2009, pg 85-87).
Ainda
a respeito do conceito do “Para-si”, é esclarecedora a abordagem do professor
Gerd Bornheim , que introduz a principal motivação de Sartre para a criação
daquela que é considerada sua maior obra filosófica: “O Ser e o Nada. Ensaio de
ontologia fenomenológica”:
“O para-si, o que é ? Sartre desenvolve
seu pensamento de modo análogo às suas reflexões sobre o em-si. Em ambos os
casos trata-se de partir de um plano fenomenológico que é abandonado,
gradativamente, a favor da busca do fundamento. Assim como a análise do
fenômeno apresenta caráter regressivo, cujo sentido está no desvelamento do ser
entendido como positividade pura ou identidade absoluta, assim também
arrancando do plano fenomenológico, Sartre procura atingir o fundamento do para-si. Antecipemos: esse
fundamento é o nada; e as análises fenomenológicas têm um caráter regressivo
porque a partir da descrição de certas
experiências, pretende-se atingir aquilo que torna possíveis essas mesmas
experiências. O pressuposto básico das análises encontra-se na compreensão do
homem como ser-no-mundo. Não se aborda a consciência tão-só enquanto presa a si
ou enquanto confinada nos seus próprios limites. Por certo, em determinado
sentido ela vive voltada para si própria – já por isso Sartre a designa com a
expressão “para-si”, a consciência é para-si por isso que aparece a si mesma.
(...) nessa perspectiva, pode-se dizer que a consciência permanece presa a si,
sem conseguir abandonar-se. Por outro lado, contudo, o ser mesmo da consciência
é a intencionalidade. Vale dizer que, se ela se experimenta como relação a si
própria, concomitantemente se relaciona ao em-si; e essa duplicidade deve ser
explicitada em sua unidade profunda. Se a consciência é para-si, opõe-se ao
outro que não ela, opõe-se ao em-si. E a oposição não se verifica meramente em
um plano gnosiológico, nem autoriza a enxergar no para-si uma substância
subjetiva; com efeito, se a oposição é radical e se o em-si é o ser, então o
para-si, sendo fundamentalmente outro que não o em-si, só pode ser nada – e um
nada que deve ser elucidado em um plano ontológico, como fundamento do
para-si”. (BORNHEIM, Gerd . Sartre. Metafísica e Existencialismo, pg 37-39, Ed.
Perspectiva, São Paulo, SP, Brasil. 2000, 4ª reimpressão, 3ª edição).
O
“ser-para-si”, além disso, é também “ser-para-outro”, pois uma vez que o homem surge no mundo, nunca é
sozinho, seu próprio “status” de homem, de humanidade, não é objetivo nem
autônomo, porque perceber o próprio mundo é perceber-se na relação com ele e
simultaneamente com o outro, necessariamente. Assim, Sartre coloca em
definitivo a importância desse conceito, no “Ser e o Nada”:
“Consideremos, por exemplo, a vergonha.
Trata-se de um modo de consciência cuja estrutura é idêntica a todas que
descrevemos anteriormente. É consciência não-posicional de si como vergonha e,
como tal, um exemplo do que os alemães denominam “Erlebnis”; é acessível à
reflexão. Além disso, sua estrutura é intencional; é a apreensão vergonhosa de algo, e esse algo sou eu. Tenho vergonha do que sou. A vergonha, portanto, realiza uma
relação íntima de mim comigo mesmo; pela vergonha, descobri um apecto do meu ser. E, todavia, ainda que certas
formas complexas e derivadas da vergonha possam aparecer no plano reflexivo, a
vergonha não é originariamente um fenômeno de reflexão. Com efeito, quaisquer
que sejam os resultados que se possam obter na primeira, é vergonha diante de alguém. Acabo de cometer um
gesto desastrado ou vulgar; esse gesto gruda em mim, não o julgo nem o censuro,
apenas vivencio, realizo-o ao modo do Para-si. Mas, de repente, levanto a
cabeça: alguém estava ali e me viu. Constato subitamente toda a vulgaridade de
meu gesto e sinto vergonha. Decerto, minha vergonha não é reflexiva, pois a
presença do outro à minha consciência, ainda que á maneira de um catalisador, é
incompatível com a atitude reflexiva: no campo da minha reflexão, só posso
encontrar a consciência que é minha. O outro é o mediador indispensável entre
mim e mim mesmo: sinto vergonha de mim tal
como apareço ao outro. E, pela aparição mesmo do outro, estou em condições
de formular sobre mim um juízo igual ao juízo sobre um outro objeto, pois é
como objeto que apareço ao outro. Contudo, este objeto que apareceu ao outro
não é uma imagem vã na mente de outro. Esta imagem, com efeito, seria
inteiramente imputável ao outro e não poderia me “tocar”. Eu poderia sentir
irritação ou ódio diante dela, como diante de um mau retrato meu, que me desse uma feiura ou uma vileza de expressão
que não tenho; mas tal imagem não poderia alcançar-me até a medula: a vergonha
é, por natureza, reconhecimento.
Reconheço que sou como o outro me vê
(...)”. (Sartre, “O Ser e o Nada”, pg. 289-290).
Se
a relação do “Para-si” com o “Em-si” coloca a posição da consciência no espaço
e no tempo, resolvendo a questão do conhecimento pela via ontológica, contudo é
“o outro” que lhe dará sua subjetividade, o “outro” que lhe dirá quem ele
realmente é, ao propiciar que ele se veja por seus olhos como exterioridade
(objetividade), num primeiro momento, que se tornará interioridade
(subjetividade) num segundo momento. E esta apreensão do outro é imediata,
inafastável, confrontando em definitivo
qualquer alegação ou hipótese sobre acobertamento de um suposto
solipsismo e assumindo a total condição de alteridade e intersubjetividade da
consciência no mundo, nessa relação que a constitui não como um lugar ou coisa,
mas como ação: afinal, contra o solipsismo e o determinismo, a resposta
Sartreana encontra expressão na famosa frase hegeliana: “ A consciência é o que
não é e não é o que é”, chancelando o conceito de que uma consciência não pode
ser seu próprio fundamento, coincidente consigo mesma (cogito Cartesiano) mas é
sempre consciência de alguma coisa. Esse aspecto de inter-subjetividade do
para-si e sua inafastável condição de somente existir em relação com o outro é
o aspecto que mais nos interessa neste ensaio, por entendermos a partir daí a
abertura para a compreensão da pertinência e a dinâmica do fazer artístico,
independente de qualquer que possa vir a
ser seu objeto específico.
Pelo
exposto, por um lado assim estaria
resolvida a questão clássica da “teoria do conhecimento” dentro da tradição
filosófica, bem assim de outra mão torna-se mais visível a posição da “condição
humana”, colocando-se uma nova forma de consciência que é presença no mundo e
existência simultaneamente. Somos livres! Entretanto, essa liberdade,
palavra-chave fundamental para se compreender as mais relevantes propostas
conceituais de Sartre, nem sempre é percebida enquanto tal, e a maioria
esmagadora das vezes o homem, individual ou coletivamente estará sempre atuando
para negá-la, para esquecer-se dela, para agir como se ela não existisse. Com
efeito, porque essa não é apenas uma liberdade conceitual, formal. Para Sartre,
essa é uma liberdade absoluta, e o seu reconhecimento implica, a partir a
tomada de sua total consciência, na possibilidade de implementação de mudanças
radicais na forma de se estar no mundo. Contudo, por diversas razões, todas em
maior ou menor grau mergulhadas em alguma atitude de má-fé, o homem cria,
historicamente, inúmeras teias que o prendem a determinadas visões e atitudes
alienantes, a ponto de prosseguir caminhando intencionalmente com o propósito
de não ver ou não assumir essa liberdade extrema. Mas, ser livre, afinal, para
o autor, não é necessariamente uma espécie de bênção, uma graça ou algo que o
valha. Existe um alto preço a ser pago por essa liberdade, que em hipótese
alguma está relacionada a felicidade ou algo que o valha. Ser livre, no sentido
em que pensa Sartre, é antes assumir um encargo pleno de responsabilidades, uma
“condenação” a recolocar o homem no centro de sua própria vida, como seu
próprio ator e diretor no filme que surge quando ele é jogado no mundo,
situação original de todo homem que, por um lado, se o retira definitivamente da subjugação teológica,
material ou psicológica de toda natureza, ao mesmo tempo coloca uma “bomba” em
suas mãos, que é a questão existencial de saber como dar uso à sua plena liberdade sem naufragar
definitivamente, agora que nem mesmo Deus poderá mais ampará-lo e ciente de que
todas as suas escolhas também são opções que exerce em face de toda a
humanidade, assim disposta no mesmo barco, e sujeita coletivamente a sofrer os
efeitos condensados de todas as escolhas individuais. Esse conceito, que
relaciona a um só tempo liberdade, engajamento, projeto e má-fé está colocado
de forma didática na famosa conferência “O Existencialismo é um humanismo”:
“(,,,) o homem não é nada além do que ele
se faz. Esse é o primeiro princípio do existencialismo. É isso também que se
denomina subjetividade, e esse é o termo pelo qual nos criticam. (...) Pois
queremos dizer que o homem existe antes de tudo, aquilo que projeta vir a ser,
e aquilo que tem consciência de projetar vir a ser. O homem é, inicialmente, um
projeto que se vive enquanto sujeito (...) Assim, a primeira decorrência do
existencialismo é colocar todo homem em posse daquilo que ele é, e fazer
repousar sobre ele a responsabilidade total por sua existência (...) o homem
que se engaja e que se dá conta de que ele não é apenas o que escolhe ser, mas
é também um legislador que escolhe ao mesmo tempo o que será a humanidade inteira,
não poderia furtar-se do sentimento de sua total e profunda responsabilidade.
Obviamente, muitas pessoas não se mostram ansiosas, mas nossa opinião é que
elas mascaram sua angústia e evitam encará-la; certamente, muitas pessoas
acreditam que, ao agir, estão comprometendo apenas a si próprias e se lhes
dizemos: “Mas, e se todo mundo agisse assim?” elas dão de ombros e respondem:
“Nem todos agem assim”. Mas, na verdade, a pergunta que deve ser feita é: “O
que aconteceria se todos agissem do mesmo modo?” E não se tem como escapar
desse pensamento inquietante sem uma espécie de má-fé. Aquele que mente e se
escusa dizendo que nem todo mundo age assim é alguém que não está bem à vontade
com sua consciência, pois o fato de mentir implica um valor universal atribuído
à mentira. Mesmo mascarada, a angústia se manifesta”. (Sartre J.-P. , O Existencialismo é um Humanismo,
2010, pg 19-22)
“A NÁUSEA” E A ANGÚSTIA QUE TAMBÉM É FUNDAMENTO
ONTOLÓGICO
Para
o homem, possuir e ter a ciência de que possui tanta liberdade à disposição é
algo que intimida, causa vertigens e
muitas vezes o terror, como brilhantemente exposto no romance “A Náusea”. A
esse respeito, apenas um parêntesis : abstraindo-se possíveis questões teóricas
acerca da “autoria” do romance “A Náusea”,
colocadas em termos editoriais logo na abertura do livro, bem assim as
especulações sobre o rigor possível com que o pensador Sartre teria abordado as
questões subjacentes, uma vez que
evidentemente trata-se de um romance filosófico, onde um dos recursos
literários é que a própria autoria é colocada em suspenso, e não propriamente
um “livro de filosofia”, propomos para efeito deste ensaio, que o protagonista
desse romance, o personagem Roquentin, seja de fato compreendido como o “alter
ego” de Sartre, falando por ele, e por ele propondo uma possível saída
existencial pela arte, a “salvação do homem” diante do grande problema da
existência, a partir do momento em que ele é finalmente desvelado, impondo-se
de forma inexorável como uma possível liberdade de escolha. Feita essa
ressalva, prosseguimos com a acepção de
que o romance “A náusea” é uma história contada em forma de diário, numa
linguagem ora descritiva, ora temporal-narrativa, ora repleta de uma belíssima
prosa poética com traços de surrealismo, onde
o protagonista Roquentin é um historiador imbuído de um projeto de
escrita biográfica sobre um dado político com relevo dentro da história da
França, o “Senhor de Rollebon”. No intuito de realizar seu trabalho, ele
muda-se para a cidade de “Bouville”, onde estão os registros necessários para
suas pesquisas. Enquanto pesquisa os arquivos de época e aos poucos se envolve
com a atmosfera própria do contexto em que atuou essa figura histórica,
Roquentin passa a perceber, num
crescendo de intensidade que envolve tanto pensamento como emoção e sensação
corporal, um sentimento desagradável que a princípio não sabe dizer bem o que
é. Essa “sensação incômoda” passa a surgir cada vez mais frequentemente, em
diferentes contextos, até que em dado momento o protagonista é inteiramente
tomado por ela, ao perceber em definitivo qual era a causa do seu mal-estar e
como isso estava indissociavelmente vinculado à forma como funciona a
verdadeira engrenagem da vida, representada ao fim pela contingência do mundo. É
importante a constatação de que essa “verdade” surgida abruptamente, mas não
sem antes vir pontuando aos poucos e sinalizando o problema em vários momentos
da narrativa, não é uma “verdade intelectiva”,
lógica ou racional, mas sim uma verdade visceral, corporal, fisiológica,
afetiva, numa palavra: existencial, que
implica a descoberta do “absurdo” que é estar vivo num mundo indeterminado.
“A palavra “absurdo” surge agora sob
minha caneta; há pouco no jardim não a encontrei, mas também não a procurava, não
precisava dela: pensava, sem palavras, sobre
as coisas, com as coisas. O absurdo
não era uma ideia em minha cabeça, nem um sopro de voz, mas sim aquela longa
serpente morta aos meus pés, aquela serpente de lenho. Serpente ou garra, ou
raiz, ou gafa de abutre, pouco importa. E sem formular nada claramente,
compreendi que havia encontrado a chave da existência, a chave de minhas
Náuseas, de minha própria vida. De fato, tudo o que pude captar a seguir
liga-se a esse absurdo fundamental. Absurdo : ainda uma palavra; debato-me com
as palavras; lá eu tocava a coisa. Desejaria fixar aqui o caráter absoluto
desse absurdo (...) Mas diante daquela grande pata rugosa (raiz da
castanheira), nem a ignorância nem o saber importavam: o mundo das explicações
e das razões não é o da existência”.. (Sartre
J.-P. , A Náusea, 2011, p. 172)
A
nosso ver, a palavra “Absurdo” nesta exposição do autor pode e deve ganhar
outras conotações, uma vez que não partilhamos de uma primeira possível
sugestão de que o absurdo necessariamente se confunde com a “Náusea” diante da
contingência do mundo, tema sobre o que falaremos mais à frente. De todo modo,
a narrativa de Sartre no livro “A Náusea” reflete a situação onde a experiência
do mundo desautorizou o homem a recorrer a Deus, à ciência e agora ele
encontra-se isolado e perdido (daí o constante e tão criticado solipsismo que
envolve o personagem, uma vez que na
falta de uma “resposta’ do mundo á altura, ele se refugia em si mesmo,
aprofundando cada vez mais a angústia), num mundo a rigor sem sentido, mas que
contudo lhe oferece diversas formas alienantes de tentar preencher esse grande
vazio. O mal-estar característico da “Náusea”, termo latino que remete
originariamente ao grego “Nausia”, do prefixo “Naos”, “Navio”, evoca simultaneamente
tanto a sensação de vertigem de quem está em alto mar, sujeito a tempestades e
por isso sente o mundo rarefeito, com perda do referencial sólido que agora não
mais se vê na navegação em alto mar, ou então estando perto da costa e se
encontra em movimento mesmo atracado por causa da força das marés, os objetos
girando rápido demais ao seu redor. Ao mesmo tempo o termo sugere também o enjôo de estômago característico
nessas situações: a ânsia, o pré-vômito,
a incapacidade de manter alimento no estômago e a necessidade imediata de
expelir tudo na esperança de que o mal-estar cesse de alguma forma.. Também não
é de se menosprezar que essa vertigem sentida no ataque de náusea também pode
se dar, fisiologicamente, pela afetação do órgão interno do equilíbrio, entre
ouvido e cérebro. O que fazer para parar com essa terrível sensação? Em algum
momento se pergunta o protagonista Roquentin, terrificado pelo seu estado quase
doentio. Compor ou ouvir uma música? Escrever um livro? Matar-se? E se , agora
transpondo o questionamento em metáfora para o mundo humano, esse suposto
perfeito equilíbrio próprio preexistente e seguro de um organismo ainda não
atingido pela vertigem da náusea for algo, além de transitório, extremamente
artificial, um equilíbrio simulado apenas para que não se possa ver a “verdade”
e sentir de fato o lado caótico da existência no cotidiano? Embora seja
histórico o registro de que o título original da obra, para Sartre, deveria ser
“Melancolia”, o que de todo modo não estaria fora do âmbito filosófico a que o
tema central se desenvolve, “Náusea”, uma alteração editorial, teve o feliz
condão de precisar o estado de espírito de toda uma geração representada por
“Roquentin”, e parece ter sido ainda a
palavra perfeita para descrever todo o enredo, uma vez que a sensação de
perda de referenciais sólidos acomete o protagonista a maior parte do tempo, a
partir do instante em que sente a grande “vertigem” da existência como uma
espécie de revelação agnóstica e psicossomática que não é dada por um deus e ao
mesmo tempo possui efeitos imediatos na interação entre corpo e mente,
colocando em xeque a clássica dualidade. Ressalte-se que essa sensação também
aflora em diversos momentos em situações onde ele também sente enjôos. Nesse
sentido, a subjetividade e relatividade infinita do termo “Melancolia” perde em
muito para a objetividade possível de Náusea, na acepção original do termo. De
todo modo, a passagem onde o personagem Roquentin sente o impacto da
“descoberta” do que tanto o aflige, além da beleza literária do trecho, é
determinante para se compreender o cerne da filosofia existencial Sartreana a
partir da temática introduzida brilhantemente nesse romance:
“Esse momento foi extraordinário. Eu
estava ali, imóvel e gelado, mergulhado num êxtase horrível. Mas , no próprio
âmago desse êxtase, algo de novo acabava de surgir; eu compreendia a Náusea,
possuía-a. A bem dizer, não me formulava minhas descobertas. Mas creio que
agora me seria fácil colocá-la em palavras. O essencial é a contingência. O que
quero dizer é que, por definição, a existência não é a necessidade. Existir é
simplesmente estar aqui; os entes
aparecem, deixam que os encontremos,
mas nunca podemos deduzi-los. Creio
que há pessoas que compreenderam isso. Só que tentaram superar essa contingência
inventando um ser necessário e causa de si próprio. Ora, nenhum ser necessário
pode explicar a existência: a contingência não é uma ilusão, uma aparência que
pode se dissipar; é o absoluto, por conseguinte a gratuidade perfeita. Tudo é
gratuito: esse jardim, essa cidade e eu próprio. Quando ocorre que nos
apercebamos disso, sentimos o estômago embrulhando, e tudo se põe a flutuar
como na outra noite no Rendez-vous des Cheminots: é isso a Náusea(...)”. (Sartre J.-P. , A Náusea, 2011, p. 175)
DEUS CONTINUA MORTO e o REI ESTÁ NU
A
sensação da falta de sentido do mundo não é algo fácil de se experimentar. Se a
antiguidade, desde os primórdios, sempre inspirou ao homem um temor perante as
forças gigantescas e terríveis da natureza, como o raio, o trovão, as enchentes,
os terremotos se vulcões, o que provavelmente se instituiu como uma primeira
noção de sentimento espiritual, essa sensação logo tornou-se rito para as
sucessivas gerações posteriores, a ponto de legitimar-se o viver em termos de
sua justificação perante o sagrado. Para o homem , bastava saber ou sentir que
pertencia a uma outra esfera superior de justificativa do mundo, para que sua
própria vida existisse plena de razão, e a humanidade, coletivamente ou na
presença última de seus indivíduos, estivesse satisfeita em suas motivações.
Muito
depois na história, com o advento da ciência moderna, paulatinamente a noção de
Deus e da magia inerente ao mundo e simultaneamente inacessível ás artimanhas
da razão foram perdendo espaço para o novo sentido de “descoberta’ capitaneado
pelo sentimento de lógica racional argumentativa e investigativa que a partir
desse instante passou a relegar Deus e a explicação puramente espiritual do
mundo a segundo plano. Nesse instante, a ciência, nova espécie de “religião”, passou
a governar o dito mundo real, coincidindo no plano econômico da nova era com o
advento da sociedade burguesa industrial. Nesse sentido, a pertinência da
conhecida frase de Nietzsche, de que “Deus está morto”, e a consequente livre
apropriação do verso Shakesperiano do “Rei Lear” para constatar em definitivo
que se Deus morreu, o homem está sozinho, “O Rei está nu”, uma vez que para
aquele dado mundo onde a plenitude de sentidos e explicações para o viver não
encontrava mais referências válidas em perspectiva com os novos paradigmas
colocados pela razão científica ou as formas tradicionais de
religiosidade. Entretanto, a ciência
também encontrará sua prova mais dura após o auge do iluminismo, quando o mundo
supostamente iluminado que ela deveria guiar foi duramente sufocado por
aparentes retrocessos nos aspectos humanos, consolidando uma ideia
contraditória de que avanços científicos, tecnológicos ou industriais,
denominados comumente “evolução” não encontraram historicamente contrapartida
no quesito “humanidade”, uma vez que , como muito bem retratado pela primeira
vez por Kant na “Crítica da razão prática”, esse avanço tecnológico não
significaria, necessariamente, uma correlação com um suposto avanço “moral” ou
“espiritual” da própria humanidade.
Dessa
forma, se por um lado, “Deus morreu” porque o mundo guiado e justificado pelas
forças metafísicas no sentido religioso do passado perdeu sua essência, a nova
deusa que havia ocupado seu lugar no mundo contemporâneo, a ciência, também
perderia seu status de deidade absoluta em face de uma realidade que muito
embora tenha trazido mudanças estruturais na forma de se pensar o mundo e de
interagir com ele pelo domínio relativo das técnicas, revelou-se também
impotente para garantir a plenitude de um sentido capaz de abarcar em sua
completude a experiência humana sobre o planeta, e sua forma definitiva de se
relacionar não apenas com o mundo exterior mas o homem consigo mesmo.
A
prova cabal dessa sentença condenatória das ciências como justificativa para o
mundo pós-morte de Deus, são as atrocidades vividas pelo planeta no século XX,
as grandes guerras genocidas, o aumento em escala global da crueldade, a
utilização da própria lógica científica e do cabedal teórico das ciências em
grupo para endossar a grande matança de inocentes com as melhores armas
químicas, bombas de destruição em massa, procedimentos burocráticos estatais
altamente eficientes para eliminar vidas com o menor gasto de tempo e
recursos, e legitimar governos
despóticos sanguinários mesmo depois de toda a suposta experiência redentora
racional do “século das luzes”.
No
romance “A Náusea,” ao perceber, enfim, e nomear o sentimento que tanto o
incomoda, Roquentin termina sua trajetória
com o propósito de, não sendo mais possível ignorar que essa situação
existe, e uma vez ciente de que essa contingência vertiginosa é inegável, conclui que apenas a arte poderia salvá-lo.
Pela forma particular como enxerga a arte e seu efeito benéfico, principalmente
a música ou a literatura romanesca, elege essa experiência humana como a a
única capaz de estabelecer um porto
seguro contra suas angústias, porque elas poderiam criar certezas e
estabilidade para combater o diagnóstico e as consequências duras de um mundo
atormentado e imprevisível, motivo pelo qual se propõe a criação de um romance
para, através da criação artística, conseguir “superar” tal contingência. Dessa
forma, espera recuperar algo de previsibilidade e de conforto para um mundo que
acaba de subitamente mostrar-se desprovido de qualquer nexo ou necessidade.
Nessas
alturas, a pergunta que se coloca ao fim da própria leitura da citada obra, e
que é talvez o principal objeto deste ensaio é : A arte, em geral cumpriria
esse papel? Ou antes, é a visão voluntariamente limitada de Roquentin, ao mesmo
tempo pontuada pelo desespero enorme em lidar com todo o mal-estar e o
inusitado da recente descoberta que o
fazem buscar um “caminho da salvação” ainda alienante, mesmo depois de
encontrar a estrutura do verdadeiro problema? Qual o conceito de arte e o propósito
que em si encerra, a ponto de atender ao desespero de Roquentin, ou
contrariamente, arriscando-se a aprofundar cada vez mais o problema na medida
em que dado tipo de experiência artística poderia sim revelar cada vez mais as
arestas da contingência, das incertezas e das angústias que compõem o ser do
homem no mundo? A arte “salva”, em alguma medida, encobrindo a dureza do mundo
contingente ou ao contrário, ela pode atuar como um tipo de desvelador de
alguma profundidade, propiciando, em vez disso, lentes mais poderosas para que
o homem possa ver melhor dentro das próprias engrenagens da vida, de modo a se
colocar com mais transparência qual é o verdadeiro problema da existência, numa
visão que incita conceitualmente à ação para transformação do mundo? A
abordagem dessa questão tomando-se como guia o papel da sétima arte é o
objetivo que será retomado à frente.
O
ENGAJAMENTO COMO ATITUDE DESVELADORA DA REALIDADE HUMANA
A palavra “engajamento” etimologicamente tem
origem no termo francês engager, que significa “dar em garantia”, “empenhar” ou
“dar como caução”. O verbo engajar ainda pode ser utilizado no sentido de
dedicação, ou seja, fazer algo com afinco e vontade. Na nossa leitura, a
acepção que a palavra precipuamente adquire em Sartre, encontra-se
indissociavelmente vinculada ao conceito de intencionalidade, pois não é
possível engajar-se, criar um “projeto” baseado na livre escolha de escolher
ser livre, sem que esse ato esteja repleto de intenção, sem que a consciência
descubra-se a si mesma na ação, que ela se afirme cada vez mais visceralmente
no seu ser-no-mundo. É ainda através do engajamento que o homem liberta-se de
uma vez da má-fé ao trazer para si, através da ciência da verdadeira engrenagem
que faz girar o mundo, toda a responsabilidade
por sua manutenção ou sua alteração. Enquanto o “Engajamento” traduz a
autêntica atitude humana de assumir-se perante o mundo e no mundo, a
“Má-fé” é uma forma de se tentar a fuga
diante do problema da existência e da condição humana definitivamente
colocados. Para Sartre, não há inocentes
porque não há para o homem a opção de deixar de ter consciência do mundo e de
si próprio, contudo por diversas razões é possível que nem sempre se esteja plenamente consciente de
seu papel uma vez “embarcado”, termo tomado de Sartre a Pascal. Muitos fogem,
ou relutam em assumir a tarefa. “Engajamento”, nesse contexto, seria assumir-se
de forma autêntica diante da angústia surgida simultaneamente com a consciência
de seu status de liberdade absoluta
no mundo, enquanto seu contrário, a “Má-fé” traduz a experiência da homem que
pretende fugir do problema, e nesse processo mente para si mesmo e para os
outros, agarrando-se a tábuas de salvação de diversas naturezas, mas sempre com
o mesmo propósito. A religião, a ciência, algumas formas de arte, uma possível
“má consciência”, que ludibria
constantemente a si mesma , dentre muitos outros possíveis, são caminhos de
fuga comumente adotados para tentar encobrir a assustadora e imensurável
liberdade de saber-se “jogado” no mundo. Por outro lado, como preleciona o
próprio autor , nem sempre essa fuga pela má-fé é assim tão ostensiva ou
declarada, ou possui um objeto específico, simplesmente porque embora ao homem
caiba a sina inexorável de “estar embarcado”, uma vez que não há como se
afastar da consciência do mundo, muitas vezes não se tem a própria consciência
de se “estar embarcado”:
“(...)Se todos os homens embarcaram, isso
não quer dizer que tenham plena consciência do fato; a maioria passa o tempo
dissimulando seu engajamento. Isso não significa necessariamente que tentem
evadir-se pela mentira, pelos paraísos artificiais ou pela vida imaginária:
basta-lhes velar um pouco a luz, ver as causas sem as consequências, ou
vice-versa, assumir o fim silenciando sobre os meios, recusar a solidariedade
com seus pares, refugiar-se no espírito de seriedade; tirar da vida todo o
valor, considerando-a do ponto de vista da morte, e ao mesmo tempo, tirar da
morte todo o seu horror, fugindo dela na banalidade da vida cotidiana; persuadir-se,
quando se pertence à classe opressora, de que se pode escapar à sua classe pela
grandeza dos sentimentos e, quando se faz parte dos oprimidos, dissimular a
cumplicidade com os opressores, sustentando que é possível se manter livre
mesmo acorrentado, desde que se tenha o gosto pela vida interior. A tudo isso
podem recorrer os escritores, tal como as outras pessoas. Alguns há, e são a
maioria, que fornecem todo um arsenal de ardis ao leitor que quer dormir
tranquilo. Eu diria que um escritor é engajado quando trata de tomar a mais
lúcida e integral consciência de ter embarcado, isto é, quando faz o
engajamento passar para si e para os outros, da espontaneidade imediata ao
plano refletido. O escritor é mediador por excelência, e o seu engajamento é a
mediação. Mas , se é verdade que se deve pedir contas à sua obra a partir de
sua condição, é preciso lembrar ainda que a sua condição não é apenas a de um
homem em geral, mas também, precisamente, a de um escritor (...)”. (Sartre
J.-P. , Que é a literatura?, 1999, p. 61-62)
Dentro de várias
formas possíveis de se pensar essa realidade do engajamento como via autêntica
para uma consciência humana se posicionar com relação ao mundo ou “dentro
dele”, a nosso ver a arte eventualmente pode assumir um papel essencial,
principalmente porque dentro das atividades humanas, ocupa um lugar
privilegiado como espaço de produção, conhecimento e re-conhecimento da
presença humana no mundo, tanto como indivíduos quanto como coletividade. As
artes, por natureza, independente do seu elemento característico agrupam,
socializam, permitem o reconhecimento de vivências, memórias e prospecções
sobre a coletividade e os indivíduos que a constituem. Contudo, não
necessariamente a arte ocupará sempre esse espaço potencial, como se vê no final do romance “A Náusea”. A concepção e o interesse da
arte, no contexto da obra, é definitivamente diversa do que ora se propõe neste
ensaio. O personagem Roquentin, depois da ciência da revelação propiciada pela
contingência do mundo e do papel efêmero do homem dentro do planeta, busca
algum tipo de “salvação’ pela arte, mais propriamente através da escrita de um
romance, entendendo-a como algo que lhe poderá trazer conforto pelo
encobrimento daquela situação anterior incômoda e avassaladora. Isso nos leva
inevitavelmente a uma constatação ambígua: A arte pode tanto significar ou
servir como meio para intensificar ou desnortear a ação do homem em busca do
engajamento. Com efeito, as formas de engajamento são variáveis, porque se a
consciência no mundo se dá justamente de forma relacional, uma vez ela própria
esteja no mundo, não é possível determinar aprioristicamente “qual será” a
fórmula mágica que irá fazer despertar neste ou naquele sujeito (para-si) a
consciência de sua realidade. Uma consciência jamais “determina” outra
consciência, embora possa motivá-la.
Sartre insiste,
na obra “Que é a literatura?” que a escrita, particularmente a prosa, pela
natureza própria do seu fazer, ao lidar diretamente com signos, teria assim uma
forma naturalmente privilegiada para “causar” as condições ideais para permitir
o engajamento. O escritor, segundo Sartre, tem o condão de conduzir o leitor, e
através disso, um espaço incomum para o seu convencimento ou para solicitar a
sua liberdade criadora e imaginativa na tarefa coletiva de desvelar-lhe o mundo
em prol de um projeto maior, algo que as demais artes, que continuam no
ambiente de pré-significação, lidando diretamente com as “coisas” e não com os
signos, não teriam. Em “Que é a literatura?”, Sartre não somente propõe,
em três momentos, contra-atacar as críticas que vinha sofrendo acerca da não
definição mais rigorosa da tal “saída pela arte” ( tema este bastante
referenciado na história da filosofia, presente na filosofia contemporânea
principalmente a partir de Kant e através dele , Schopenhauer e Nietzsche) ou
seja, o enfrentamento, a “salvação” ou “resolução” definitiva do problema da
condição humana diante do mundo proposta
no romance “A Náusea”, como também expõe de forma histórica o papel do escritor
desde o começo dos tempos, associando-o,
na retrospectiva de cada
contexto, ao pensamento social de sua respectiva época. Nessa tarefa, conceitua
o que entende por atividade da escrita, suas motivações mais relevantes e os
possíveis efeitos na construção da liberdade humana através do desvelamento da
realidade por um trabalho consciente do artista, principalmente do escritor. E
ainda, ao construir ou descrever de forma positiva as linhas de ação possíveis
para o escritor imbuído dessa proposta, simultaneamente define como também é
possível renunciar a esse projeto de consciência e liberdade, assumindo outro
papel que será apenas o de mascarar a própria realidade para que apenas o
entretenimento, as ideologias políticas embotantes ou valores ilusórios entrem
em campo, alijando o homem, ao final, do caminho crítico, do engajamento ou da
liberdade, uma vez que atuará como possível cooptador , através da má-fé, de todas essas
consciências que abdicam de sua liberdade para uma voluntária adesão ao não
reconhecimento do mundo, e através disso, para a total inação, uma vez que
qualquer mudança nas engrenagens do mundo pressupõe um conhecimento desvelado
que mostre quais são e como elas funcionam.
““O escritor pode dirigir o leitor,
e se descreve um casebre, mostrar nele o
símbolo das injustiças sociais, provocar nossa indignação. Já o pintor é mudo:
ele nos apresenta um casebre, só
isso; você pode ver nele o que quiser.
Essa choupana nunca será o símbolo da miséria: para isso seria preciso que ela
fosse signo, mas ela é coisa. (...) Se assim é, compreende-se facilmente a
tolice que seria exigir um engajamento poético. Sem dúvida a emoção, a própria
paixão – e por que não a cólera, a indignação social, o ódio político—estão na
origem do poema. Mas não se exprimem
nele, como num panfleto ou numa confissão. À medida em que o prosador expõe
sentimentos, ele os esclarece; o poeta, ao contrário, quando vaza suas paixões
em seu poema, deixa de reconhecê-las; as palavras se apoderam delas, ficam
impregnadas por elas e as metamorfoseiam; não as significam, mesmo aos seus
olhos. A emoção se tornou coisa, passou a ter a opacidade das coisas; é turvada
pelas propriedades ambíguas dos vocábulos em que foi confinada. E, sobretudo,
há sempre muito mais em cada frase, em cada verso, como no céu amarelo acima do
Gólgota há mais que uma simples angústia. A palavra, a frase-coisa,
inesgotáveis como coisas, extravasam por toda parte o sentimento que as
suscitou. Como esperar que o poeta provoque a indignação ou o entusiasmo político
do leitor quando, precisamente, ele o retira da condição humana e o convida a
considerar, com os olhos de Deus, o avesso da linguagem? (...)”. (Sartre J.-P. , Que é a literatura?, 1999)
O
importante conceito de “engajamento” como forma intencional do “fazer” de uma
arte que procura desvelar o mundo para que uma determinada verdade possa surgir
à consciência individual ou coletiva, e a partir desse primeiro momento, onde
se instaura o conhecimento do que é, coloque-se em consequência a situação
inafastável da escolha como atuação da liberdade no mundo real, e essa escolha
permitindo uma definição a posteriori da qualidade de autêntica , identificada
com o agir verdadeiro consigo mesmo, ou inautêntica, quando essa consciência
escolhe “não escolher” ou escolhe supostamente encobrir a verdade trágica e
nauseante do mundo contingente. Ainda assim essa “não escolha” se mostrará uma
escolha, na história e no tempo caracterizada sobretudo pela má-fé. Portanto, apreender algumas possíveis
inter-relações existentes entre imagem e subjetividade é buscar na história a
própria forma de ser do homem no mundo, uma vez que não há como existir a
experiência humana sem que haja também uma forma de narrativa de estar no
mundo, seja ela escrita, verbal, sonora, ou imagética. Por sua vez, o legado
dessas experiências, que são constituídas pela humanidade enquanto vive
individual ou coletivamente, também são o substrato que de alguma forma
conduzirão ou ao menos influenciarão as experiências futuras.
Como
dito, em “Que é a literatura”, Sartre menciona logo no início da primeira
parte, no tópico “O que é escrever”, a diferenciação de propósitos e a capacidade de análise que as diversas artes
possuem, conforme suas distintas naturezas, creditando à literatura, e mais
particularmente à prosa, o condão de propiciar e desenvolver sua experiência de
forma a criar as melhores condições para o “engajamento” do leitor, do que
fariam , por exemplo, a música ou as artes figurativas com relação ao
espectador e bem assim a própria poesia com relação ao seu público. Isso,
porque segundo Sartre, o escritor (prosador) pode melhor “dirigir” o
leitor. Divergimos nesse particular,
principalmente porque entendemos que outras artes, no elemento que é próprio a
cada uma, também podem capturar o espectador e agir como um catalisador da
intencionalidade do olhar do outro para a constituição de um projeto desvelador
da realidade tão autêntico ou poderoso quanto a escrita no formato prosa. Isso
se dá principalmente por causa da subjetividade individualizadora de cada ser
humano, sua história pessoal, seu estado de estar no mundo, e sua relativa
capacidade de estar consciente de si próprio, uma vez que essa mesma
consciência não é necessariamente uma consciência “intelectual”, mas também e
talvez principalmente seja uma consciência com fortes traços de afetividade e
emoções, tais como memória individual, ódio, amores, pequenas ou grandes
felicidades e tristezas. Decorre daí que cada para-si em sua atividade natural
de envolvimento com o que o rodeia (em-si), e no processo de se aperceber da
sua realidade externa (percepção), absorvê-la e mediá-la pelo pensamento
(reflexão) ou a partir daí criá-la para além do campo mensurável (imaginário),
desenvolve através de sua história uma forma ou outra de linguagem mais
privilegiada com o mundo. No que o próprio Sartre denominou de “apelo” ou
“solicitação da liberdade do leitor”, entendemos que pela subjetividade
que esse processo tem como pressuposto,
tal capacidade de ser pedra de toque, capaz de sensibilizar e atrair para si o
olhar do outro, também cabe às demais artes, mesmo que elas estejam, por
definição, menos afeitas ao território do “significado” propriamente dito.
Trata-se, muito mais propriamente , de falar de um “espectador” e não
necessariamente , em termos absolutos, de um “leitor”, uma vez que pelas razões
subjetivas acima expostas, tal sujeito poderá ser “tocado”, “ter sua liberdade
solicitada” ou “sentir o apelo” do artista criador por um modo diferente do que
seja uma leitura de texto , que por sinal, na forma como a cultura no ocidente
se desenvolveu, tem uma tendência original, uma predisposição inata de
privilegiar através da prosa o olhar intelectual, racional, em detrimento de
como opera essa sensibilização, apelo, evocativo, na esfera da música, da
pintura, poesia ou do teatro, artes que atuam predominantemente na esfera
emocional, memorial-afetiva, física enfim. O próprio Sartre conceitua os termos
numa das melhores passagens do livro “ Que é a literatura?”.:
“Uma vez que a criação só pode encontrar
sua realização final na leitura, uma vez que o artista deve confiar a outrem a
tarefa de completar aquilo que iniciou, uma vez que é e só através da
consciência do leitor que ele pode perceber-se como essencial à sua obra, toda
obra literária é um apelo. Escrever é apelar ao leitor para que este faça
passar à existência objetiva o desvendamento que empreendi por meio da
linguagem. Caso se pergunte a que
apela o escritor, a resposta é simples. Como nunca se encontra no livro a razão
suficiente para que o objeto estético apareça, mas apenas estímulos à sua
produção; como tampouco há razão suficiente no espírito do autor, e como a sua
subjetividade, da qual ele não pode escapar, não consegue esclarecer a passagem
para a objetividade, a aparição da obra de arte é um acontecimento novo, que
não poderia explicar-se pelos dados
anteriores. E como essa criação dirigida é um começo absoluto, ela é operada
pela liberdade do leitor, naquilo que essa liberdade tem de mais puro. Assim, o
escritor apela à liberdade do leitor para que esta colabore na produção da sua
obra (...) a imaginação do espectador tem não apenas uma função reguladora, mas
constitutiva: ela não apenas representa: é chamada a recompor o objeto belo
para além dos traços deixados pelo artista (...)”. (SARTRE, Que é a literatura,
pág. 39-40)
Enfrentando
um problema específico mencionado pelo autor,
não concordamos com a hipótese de que uma tela como “Guernica”, de Pablo
Picasso, não tenha engajado sequer uma alma em favor da paz ou da luta contra a
opressão durante a guerra civil espanhola, simplesmente porque no âmbito da
experiência individual, subjetiva, da apreensão do objeto de arte pelo
espectador, o resultado final da construção da própria arte na relação entre
espectador e obra, é imprevisível.
Dependerá, não apenas da prosa “diretiva” do autor, como propõe na soberania da
prosa condutora do leitor sobre o engajamento, mas dependerá em muito das
situações subjetivas desse leitor, sua condição emocional, sua história de
vida, seu momento no tempo e relativa sensibilização para o que está sendo
dito. Até mesmo seu grau de alfabetização ou contato prévio com a leitura, em
geral, poderá alterar a questionável previsibilidade dos esperados efeitos.
Seria o mesmo que dizer, por contraponto, que todos que leram na mesma época,
um panfleto escrito em texto formato prosa, motivador , incitando, ou à defesa
do totalitarismo, ou ao contrário, na luta contra toda tirania, todas essas
pessoas que leram esse tipo de texto necessariamente tenham manifestado o desejo
ou efetivamente se engajado de alguma forma ativamente ou a favor ou contra a
situação trágica ocorrida na Espanha, à época, coisa que a história mostra que
não ocorreu. Embora Sartre afirme com toda certeza as virtudes da prosa
engajadora, não há uma lógica rigorosa, matemática ou mesmo existencial nisso
tudo. Existe ainda um outro ponto, que pesa a favor de toda arte como possível
apelo ao engajamento, que não seja necessariamente o instrumento prosa escrita.
Toda obra tem sempre seu contexto, e por mais que se queira pensar que simples
garatujas ou pinturas geométricas lançadas sobre um mural, uma folha, uma tela,
determinada música, gesto ou peças esculpidas possam não ter uma repercussão
imediata ou um apelo específico sobre seu espectador, ela é dotada de uma
capacidade única de tocar aquele que a experiencia. Por isso, novamente ao
propor que apenas a prosa poderia ser capaz de propiciar o engajamento, o autor
reduz equivocada e perigosamente a natureza e o eventual “papel” que poderiam
desempenhar as outras artes. Principalmente na conceituação excludente das
artes que lidam com símbolos em favor da prosa, por natureza o palco por
excelência do domínio dos signos, relevando a pintura, a escultura, a música a segundo plano. Essa
argumentação a nosso ver, favorece
essencialmente o estilo argumentativo e lógico, cartesiano portanto, da forma
como foi construída a prosa em nossa cultura ocidental, causando, em detrimento
dessa visão, um apequenamento das demais artes figurativas ou da poesia, porque
guiam-se por outra dinâmica que não seria, hipoteticamente, “dirigir”ou
“causar” mecanicamente no seu público espectador, leitor etc, a necessária
convergência para o objeto unívoco da pretensão autoral: pode-se mesmo inferir
que seria o objetivo final de todo autor, oseu maior desejo: trazê-lo, o
leitor, para um convencimento sobre o que é tal realidade, de como ela é
composta, e quais seriam os mecanismos para transformá-la, a partir do momento que a consciência da sua
totalidade surge com o desvelamento propiciado pelo texto. Ora, essa
argumentação ingenuamente pressupõe que toda prosa é absolutamente capaz de ser
realmente objetiva, cartesiana, centrada em sua forma de se fazer como retrato
fiel de uma dada realidade, e a partir daí, seu objeto seria fácil , automática
e inteiramente apreensível pelo olhar ou pensamento do outro da forma exata
como a propôs o autor. Isso não chega a ser um erro comparável ao que pretende
a proposta de logicização do pensamento através da busca de uma linguagem
“purificada pela “arrumação objetiva” das palavras, como assim o pretendeu o
famigerado grupo de pensadores que ficou
conhecido como“Círculo de Viena”, até porque ao que se saiba, Sartre em nenhum
momento propõe que essa linguagem deva ser “pura” e absolutamente objetiva ou
lógica. De todo modo, trata-se de ledo engano. Mesmo que em princípio
concordemos com a ideia de que
comparando-se as demais artes como a pintura, a música, a escultura ou a
poesia, e seu elemento primal possa muito bem ser respectivamente a tinta, as
notas musicais , pedaços de pedra ou palavras soltas, coisas que por si sós não
possuem significado, enquanto a matéria prima da prosa, ao contrário, por
possuir palavras em contexto, segundo Sartre, “explicativo” e “argumentativo”
por si só , e evidentes no convencimento pela direção do leitor, cremos que é
impossível pensar uma realidade artística onde tais preceitos sejam detectados.
A prosa jamais será “pura” e “objetiva” a ponto de “dirigir” de forma tão
autônoma e eficaz o olhar do leitor. Ou se ela o faz em algum momento, não
vemos por que razão ela o faria melhor ou mais eficientemente do que as outras
artes citadas. Isso porque mesmo a prosa sendo de natureza explicativa,
argumentativa, as palavras não perdem em absoluto seu caráter afetivo,
cultural, e até certo ponto extremamente subjetivo na apreensão de quem lê. Não
fosse assim, todos os leitores que acabaram de devorar um livro em prosa
concluiriam seu livro, seu texto, sua análise filosófica tendo exatamente a
mesma conclusão entre si próprios e convergentes com aquilo que se propõe o
autor, concordando ou negando o que acabaram de experienciar. Por que isso não
ocorre? Se pedíssemos a diversas pessoas que acabassem de ler qualquer texto em
prosa, numa determinada experiência de campo, o mesmo texto seria provavelmente
interpretado de diversas maneiras diferentes, com mais ou menos detalhes : uns
não entenderiam sequer um propósito do autor, outros entenderiam parcialmente,
uns entenderiam questões que não estão postas, outros acrescentariam suas
próprias questões, como aliás é bem comum acontecer numa sala de leitura de
classe. Essa experiência simples e direta demonstra que também a prosa não
possui esse grau quase “absoluto” na possibilidade de direção do leitor, porque
ela também traz em si o problema geral do símbolo, que precisa ser
interpretado. Não é, como pretende Sartre, o “imperativo do signo”, ao
contrário das demais artes, mas partilha com todas as demais o pressuposto de
que precisa ser interpretada também, e isso põe por terra sua pretensão de
privilégios de natureza, e ao colocar como pressupostos enormes subjetividades
individuais-existenciais (formação do leitor, perfil cultural, história de
vida, situação momentânea no mundo) e coletivas de contexto (grau de liberdade
ou de opressão, interação com o meio, estruturas familiares, políticas,
religiosas, econômicas, etc) para leitura e apreensão de conteúdo. Quanto às
demais artes, há ainda outra consideração que vai contra a exposição de Sartre
no citado texto. A poesia, assim como a pintura, a escultura ou a música,
possuem significação em suas elaborações por uma razão também muito simples: a
argumentação de Sartre , parcialmente correta por sinal, é de que tintas
isoladas com suas cores, notas isoladas com seu natural alheamento, pedaços de
rocha que não são esculturas ou madeira ou palavras soltas cujo sentido é
indeterminado, nada disso constitui narrativas ou tecidos capazes de “Mostrar
significado” a alguém, e por isso seriam abordagens de segunda linha na
comparação com a prosa, é preciso considerar também que notas isoladas, por si
sós, não constituem música, são apenas sons na verdade. Portanto, para serem
música, no sentido literal, precisam sofrer determinado encadeamento,
sequenciamento de notas para formar acordes ou melodias, materialização por
instrumentos, quer seja voz, percussão, cordas, sopro, etc. No exato momento em
que essas notas esparsas se corporificam, cria-se enfim o que podemos chamar
música, e a partir daí, sua dada configuração, suas particularidades no tempo e
no espaço, na história enfim, vão caracterizá-la, dentre todas as outras
configurações possíveis, como um verdadeiro tratado eloquente de sua
humanidade, de sua expressividade, o que poderemos chamar em sentido mais amplo
de total engajamento como proposta. Uma mesma música, dependendo do contexto
onde é tocada, bem como da forma de sua execução, pode se tornar parada marcial
às margens de um campo de batalha ou apenas virar atração para as crianças em
uma pracinha de uma pequena vila de interior. Portanto, o que vale não é o
signo em si mesmo, toda significação em certo sentido é dada pelos contextos
onde a arte surge, não por ela mesma. Por isso, mesmo a prosa deverá passar por
esse crivo histórico e contextual antes de se decretar sua total inteligibilidade
e ressignificação por parte dos leitores numa mesma linha, na mesma “direção”
que pretende necessariamente dar o escritor-prosador. Raciocínio análogo, a
nosso ver, pode ser estendido ás demais artes que não a literatura em prosa.
Esculturas enquanto são pedras ou madeiras, não são esculturas, são apenas
objetos sem significado. Entretanto, “montados”, colocados, desbastados sobre
um bloco, sua imagem exposta neste ou naquele local, para este ou aquele
público, nesta ou naquela época histórica, resultarão em significações
poderosamente eloquentes. Isso porque o resultado da obra material, apreendido
pelo “outro” expressa exatamente sua história, do grupo a que se pertence, seu
momento no mundo, sua inteira subjetividade, e essa subjetividade está ali
presente e pode ser detectada também, como na música, pelo espectador. Pode ser
considerado um tipo de engajamento, segundo nossa acepção, porque
diferentemente do que Sartre propõe, ela pode induzir imaginativamente no olhar
do outro conteúdos de diversos tipos de motivação. Por analogia, também a
pintura ou a poesia ocupam esse espaço, na mesma consideração. Tintas não são
pinturas, cores ainda não são pinturas, como corretamente asseverou Sartre mas
como no exemplo dado, do casebre, que “ainda não é nada” porque não pode
convencer ninguém, há um equívoco por se excluir nessa análise o contexto em
que tal casebre surge. Nenhum desenho, pintura, som ou escultura surge isolado
de um contexto ou abstratamente, no tempo e no espaço. O contexto é inevitável.
Do mesmo modo, letras ou palavras soltas podem ainda não ser poemas ou
conteúdos passíveis engajar ninguém, porque segundo o filósofo nada diriam a
princípio sobre a miséria humana, riqueza, felicidade, etc embora possa ter
sido essa a intenção original do pintor, do poeta . Como explicitado no caso da
música e da escultura, o mesmo raciocínio crítico se aplica a essa abordagem a
nosso ver superficial sartriana, porque letras soltas, assim como tintas,
cores, pedaços de madeira ou pedra, etc de fato ainda não é nem mesmo poema, e
por si só, dizem absolutamente nada. Contudo, palavras dispostas aleatoriamente
ou de forma encadeada , com sequência intencional, tudo isso já não são mais
apenas palavras soltas e constituem sentido e significação por conta do
contexto. A escolha desta ou daquela palavra, bem como seu lugar na geografia
do poema, antes ou depois, ou ao lado, estão repletos de sentidos e
subjetividades. A pintura do casebre, exemplo escolhido por Sartre, está
repleta de significados, por diversas razões. Primeiro pela escolha de se
pintar um casebre, segundo porque dificilmente um casebre virá ao mundo de uma
tela sozinho. Sempre será um casebre com esta cor, esta perspectiva, esta
mistura entre marrons, cinzas e brancos. Tem-se geralmente uma composição com
grama, céu, flores, pássaros, gente ou o que for, independentemente do estilo e
da forma utilizada pelo pintor para expressar sua determinada visão sobre o
mundo, a obra é repleta de subjetividade histórica, individual, coletiva, e no
nosso entendimento pode sim solicitar a liberdade da humanidade que a contempla
na construção de um engajamento desvelador ou no encobrimento total ou parcial da dor- de-
vida pela construção de um paraíso perfeito porque previsível e distante do
mundo. Nosso entendimento crítico é de que o “império da prosa” ou o termo
“leitor” aplicado ao espectador da obra literatura formato prosa deva ser
compreendido de forma extensiva e mais genérica como espectador, aplicado a
todo contemplador-co-criador das obras de arte em geral, porque obra de arte
não é o objeto em si mesmo, mas a imagem ativa e espontânea que acaba de ganhar
vida, e além disso, a subjetividade participante do espectador é ela também
criadora (complementar) do que propôs o artista na medida em que lhe acrescenta
seu imaginário particular baseado em suas vivências no mundo, e a própria obra
de arte só poderia ser entendida em sua plenitude com a presença desse segundo
momento, numa espécie de “parceria”. E é exatamente nesse espaço possível para
a realização do imaginário e co-criação do seu papel no mundo humano que
introduzimos , arte entre as artes, a sétima arte do cinema, objetivo primeiro
deste ensaio. Obviamente, não com a pretensão de situá-la geograficamente acima
, abaixo ou em grau de competitividade com o suposto privilégio da prosa
literária no intuito de “dirigir o
leitor”, como apregoa Sartre, mas trazendo o cinema em potencial como uma arte
privilegiada em seu fazer, pelo simples motivo de que é arte que se apropria do instrumental de outras
artes para também dirigir seus espectadores para o desvelamento ou encobrimento
da realidade do mundo.
ARTE
RUPESTRE , TEATRO GREGO e CINEMA
Nossa
hipótese central é a de que o homem não
se constitui no mundo sem a linguagem. É possível imaginar, nos primórdios,
grupos reunindo-se em cavernas para proteção da prole, aquecimento em noites
frias, criação de sua arte típica, preparação de caçadas, de guerras ou
comemoração de vitórias, mas nenhum desses propósitos seria possível sem a
linguagem e sem o pressuposto de que haja “outro” para contraposição com aquilo
que sou “eu próprio”e este se perceba enquanto tal. O que possivelmente houve
antes disso não pode ser considerado “homem”, “humanidade” da forma como a
entendemos a partir de certo momento na história. O comparativo mais realista
neste caso seria admitir a existência ainda mais remota de bandos de animais
humanóides agrupando-se apenas por necessidades instintivas, reprodutivas,
alimentares ou proteção. Portanto, dentro da característica essencial que
confere humanidade aos humanos, qual seja , a linguagem, justamente por permitir que a intersubjetividade se
estabeleça, a arte torna-se definitivamente a atividade humana primeira, mais essencial
e caracteristicamente inafastável da
forma própria deste ser criar sua subjetividade enquanto está no mundo. Essas
considerações remetem principalmente ao conceitual sartriano de “Ser-Para-Si”,
e em especial no que isso tem de transcendência, no aspecto condicionante de que todo “Para-si”
é também umbilicalmente um “Ser-para-outro” em sua gênese e em seu movimento.
Como na preleção do professor Gerd
Bornheim:
“(...) o para-si é constitutivamente
transcendência, já que ele é o que não é e não é o que é. Atentemos agora a
essa nova dimensão da realidade humana. O novo problema consiste em saber qual
é a relação original da realidade humana com o ser dos fenômenos o ou com o
ser-em-si. Já sabemos que o ser do fenômeno sendo a plenitude de um em-si que é
o que é, permanece confinado na sua própria completude; o em-si só se refere a
si próprio e desconhece qualquer modalidade de relação. Consequentemente , o
problema da relação a passa a ser prerrogativa exclusiva do reino humano. “O
para-si é responsável em seu ser por sua relação com o em-si, ou se preferir,
ele se produz originariamente sobre o fundamento de uma relação com o em-si”
(EN, p. 220). A questão básica aqui é a do conhecimento, e, nessa medida, a
relação se retrai a um plano gnosiológico, embora, por outro lado, esse
gnosiológico decorra da dimensão ontológica do real: para-si, em seu próprio ser, é conhecimento
do em-si; na relação gnosiológica o para-si como que se produz ontologicamente.
Assim se compreende a definição sartriana da consciência: ela é “um ser para o
qual se trata, em seu ser, do problema de seu ser enquanto esse implica em ser
um outro que não ele”. Dessas forma, com a transcendência se incide na questão
do próprio ser do para-si. O conhecimento deve ser entendido como “presença
a....”. Tal presença não poderia ser atribuída ao “Em-si”; o em-si não se faz
presente a nada, porquanto a presença é privilégio da consciência humana. Assim
o conhecimento se verifica na presença da consciência à coisa, invertendo-se,
dessa maneira, a formulação vulgar do problema. Com isso, Sartre retoma um tema
já analisado anteriormente: o da intencionalidade da consciência. Não basta,
entretanto, uma elucidação meramente gnosiológica desse tema: o importante está
em alcançar a a dimensão ontológica da intencionalidade, saber por que a
consciência é necessariamente consciência de
alguma coisa. Realmente, uma consciência que não fosse consciência de algo
seria consciência de nada. (...) Ora, “a presença implica uma negação radical
como presença àquilo que não se é. É presente a mim o que não sou eu (EN, p.
222): o elemento essencial reside precisamente nesse “não ser”. (...) Consequentemente, o para-si define-se de um modo contraditório,
por aquilo que ele não é. (...) o que está em jogo é a natureza do
conhecimento, e o conhecimento “é o
mundo”. A realidade humana se impõe, assim, como negação radical pela qual o
mundo se desvela. (...) a realidade humana desvela o ser como mundo, e esse
mundo surge como a possibilidade que o para-si deve ser sem poder sê-la”.
(BORHEIM, pg 74-79)
Seguindo-se
à abordagem da questão do “para-si” como transcendência, ele se torna
imediatamente “para-outro” na medida em que inaugura a intersubjetividade
através de um novo elemento, o corpo:
“ Com o corpo, porém, coloca-se a
questão da intersubjetividade; a natureza do meu corpo conduz à existência do outro e a meu ser-para-outro.
O estudo do outro revela mais uma dimensão fundamental da realidade humana se
considerada na perspectiva da transcendência. Segundo Sartre, a realidade
humana, em seu próprio ser, é congenitamente para-si-para-outro”. ( Borheim (Artaud, 1998), pg. 74-79).
Portanto,
a forma essencial do homem estar no mundo é corpórea, histórica e
ontologicamente social, e somente a partir daí é que se tornará possível a
criação de sua subjetividade enquanto indivíduo, uma vez que ela é produto
irrevogável da atividade intersubjetiva, oriunda das relações humanas.
Isso implica dizer que sem o
“para-outros” não há via possível de surgimento de um “para-si” em sua
plenitude, uma vez que é definitivamente a partir do “outro” que o “eu” se
constitui e se reconhece. Tal preceito, além de colocar um novo ponto de
partida para a história humana, ainda afunda de vez qualquer gnosiologia que
pressupõe o ato de conhecer como isolado e uma propriedade inerente ao sujeito individual, pleno e abstrato em sua
capacidade cognoscitiva de uma dada totalidade absoluta. Há condicionamentos
sociais para o ver, para o sentir, para o experimentar, em geral, e até mesmo
para a felicidade e a dor. Implica afirmar também que, no caminho de estar na
presença do outro, como é próprio da natureza do para-si, diferentemente do
“em-si” que é completo e satisfativo em si mesmo, a ação de “estar à presença
de...”, essa relação necessariamente terá que se estabelecer através da linguagem,
porque não há como estar à presença do outro, sem que com ele se estabeleça
qualquer tipo de comunicação. Deste
modo, como propomos na abertura deste ensaio, na prospecção de alguns reflexos
com apoio da Arqueologia, buscando os
primeiros registros possíveis de como essa linguagem, essa comunicação pode ter
se estabelecido no tempo e no espaço é que encontramos a arte ocupando largo
espaço na vida e no mundo de nossa própria espécie, muito antes que qualquer
perspectiva de “civilização” mostrasse seus ares. Nossa maneira primordial de
“estar presente a...” parece ter sido, desde o começo de tudo, pela via eletiva
da arte como linguagem ao mesmo tempo mais intuitiva, natural, sensorial e
estética para representar e possibilitar o reconhecimento de nós mesmos e de
nossos grupos sociais pela troca e a fixação de conteúdos que eventualmente
podem assumir ao mesmo tempo caráter funcional, mas simultaneamente também
podendo estabelecer a partir daí um padrão comunicativo abstrato e atemporal
que possui, em sua estrutura, valores universais transcendentes capazes de
tocar e sensibilizar o outro da mesma espécie que as contemplou quarenta mil
anos depois de sua criação.
O
lugar privilegiado da arte está em consonância com a necessidade de comunicação
que constitui nossa experiência primordial no mundo, e o referencial sartriano
oferece uma luz sobre o surgimento e perpetuação da natureza indeterminada do
homem e do seu fazer artístico, quando tomados sobre a perspectiva do
“para-si-para-outro” em sua transcendência constitutiva. Contudo, essa
experiência, como é natural, não terá sido a única em amplitude e profundidade.
Desconsiderando tudo que certamente se perdeu para sempre na noite dos tempos e
provavelmente nunca iremos saber porque não registrado, e deixando de lado
ainda parte da história antiga escrita já descoberta nos primórdios da
civilização conforme reconhece a história oficial, por volta de 5000 anos
atrás, há também na experiência ática , de 2500 A.C., o registro do teatro
trágico grego, que a nosso ver, repete não exatamente no conteúdo, mas na
forma, com suas particularidades próprias, alguns dos aspectos revelados
através da intencionalidade das pinturas rupestres. Não falamos evidentemente
de uma sequência, impossível, ou cópia, porque notório que não há
entrelaçamento entre as culturas em tamanho lapso temporal, isso sem contar as
descontinuidades culturais que habitam até mesmo uma mesma época. Contudo, se na
introdução deste ensaio, sugerimos que as pinturas rupestres do paleolítico datadas
de 40.000 anos A.C. foram a materialização da primeira experiência de que se
tem notícia sobre a possível interação ritual entre homens, fogueiras, sombras
e figuras de animais para criação conjunta de uma projeção artística capaz não
só de estabelecer para aqueles povos que a viveram diretamente um importante
referencial de seu próprio auto-conhecimento, mais ainda, representaram uma espécie de gravação, um
depoimento para a posteridade acerca de sua subjetividade, da provável forma
como viviam em tão longínqua era nossos próprios ancestrais , essa experiência,
do ponto de vista de sua grandiosidade, da celebração da vida e instilação do
espírito da memória dos nossos antepassados, bem assim pela geografia interna e estrutura de seu
possível funcionamento, conforme narram as experiências da Antropologia
Cultural, acreditamos que esse efeito também encontra ecos no teatro trágico da Grécia clássica, num
lapso de descontinuidade temporal de quarenta
mil anos, no germe do que hoje se convencionou chamar de “cultura
ocidental”: o teatro grego que possui elementos semelhantes de representação,
figuração e evocação da vida de tamanha magnitude , e foi capaz de se utilizar
de forças tão poderosas quanto aquelas originalmente ensejadas pelos “homens
das cavernas” para procurar reviver, no palco, uma representação das terríveis
forças da natureza em constante interação com
o mundo humano, mediando-se esse rico espaço pela figura dos deuses. É
possível encontrar, na narrativa de diversos filósofos, poetas e historiadores
antigos, tanto gregos quanto romanos do período clássico, características
essenciais desse teatro, e especialmente no que diz respeito á capacidade
catártica das tragédias e sua intencionalidade fortemente transformadora do
imaginário e da realidade humanas, através da assimilação e vivência dos mitos.
A construção desse tipo especial de teatro, com sua arquitetura, a elaboração
elevada do teor de sua peças, a presença de determinados elementos cênicos em
detrimento de outros, tudo isso constitui uma estratégia dramática para criar
um efeito sobre o público, provavelmente muito semelhante, em resultado, à
experiência vivida pelos homens das cavernas em seus rituais em torno do fogo
no contraste das suas sombras contra as paredes. Com base nessa transcendente experiência
humana, sobretudo criadora e afirmadora de uma forte subjetividade, na medida
em que por si só é uma experiência que registra na história os sujeitos de sua
época na sua dinâmica e interativa relação com seu mundo, e ao mesmo tempo,
devolve instantaneamente a experiência enquanto “obra” produzida individual ou
coletivamente para os indivíduos ou para aqueles grupos na forma de aprendizado
e conhecimento sobre si mesmos enquanto a própria experiência se faz, ora
propomos que o cinema, essa arte tão recente em surgimento na história
da humanidade, é ao mesmo tempo não a única na contemporaneidade, mas a que
possui melhores condições de reviver o impulso ancestral que em um dado momento
no tempo colocou nossos antepassados dentro das cavernas, desenhando em paredes
e dançando em volta de fogueiras nos seus rituais de preparação para a vida, o
mesmo impulso que levou aquela brilhante civilização ática a iniciar a cultura
no mundo ocidental com seu teatro trágico. Com efeito, dentre nós é o cinema,
por sua natureza própria, ao se apropriar do instrumental de outras artes, como
as cores, o desenho e o movimento da pintura e da escultura, o som das falas e
da música para ambientação e sonoplastia, e finalmente o teatro para a
representação de toda a linguagem gestual e a apropriação do texto, com as
possibilidades infinitas que propõe todo tipo de narrativas, quer o texto seja
usado como única narrativa, quer o texto seja utilizado como apoio para uma
narrativa que também pode ser mais sonora ou predominantemente visual, a sétima
arte tem o potencial para reviver, numa sala de projeção escura diante de seu
público o mesmo espírito coletivo e transcendente que antes foi ensejado pela
arte rupestre diante do “homem primitivo” e pelo teatro trágico grego na antiga
Ática. É o cinema que tem todas essas condições, por trabalhar simultaneamente
em diversas fontes de estímulos a possibilidade de ter seu objeto apreendido
por muitas percepções diferentes e complementares. Contudo, uma vez considerada
essa possibilidade, é necessariamente isso que ocorre, e a sétima arte enfim
ocupará sempre seu espaço, fazendo valer os recursos de sua natureza
privilegiada para que se criem as condições ideais para assim se tornar uma
“pedra de toque’ universal e poderosa? Tal poder criativo é sempre usado para,
de alguma forma desvelar a realidade ao homem que a circunda e nela está
visceralmente mergulhado, de modo que a partir dessa ciência do mundo em-si ao
seu redor, este consiga de alguma forma conscientemente modificá-lo? A uma
simples pesquisa histórica dentro da cinematografia não é difícil perceber que
nem sempre tal objetivo é atingido, e em grande parte das vezes, para não dizer
a maioria, tal atributo de conseguir agrupar em si mesma o mecanismo e o encanto
de diversas artes como a música, a pintura, o movimento e o teatro acaba sendo
utilizado deliberadamente como forma de perpetuar nos espectadores um eterno
estado de alienação em vez de magicamente desvelar-lhes o mundo. Neste caso,
paradoxalmente, a arte, então, a despeito do seu enorme potencial, torna-se o
maior exemplo da mais pura alienação porque não solicita no seu espectador nem
mesmo uma fração de sua liberdade construtiva ou imaginativa, mas atuando de
forma contrária, ainda tenta impedir que esse desvelamento ocorra.
ANTROPOFAGIA
E PEDRA-DE-TOQUE: O CINEMA COMO “ARTE QUE SE ALIMENTA DAS ARTES”, E COMO
ELEMENTO PRIVILEGIADO PARA O DESVELAMENTO DO MUNDO
“Birdman” (2014) , o
filme escolhido para o foco temático da análise deste ensaio, obviamente, não
foi o primeiro nem será o último filme onde a proposta de um determinado
engajamento que traz no seu bojo uma certa noção de desvelamento da realidade
se apresenta como forte apelo à liberdade do espectador. Há , dentro da
história do cinema, em diversos períodos, estilos e formatos, outros tantos que
com muita qualidade e mérito também se encaixariam nesse perfil. Correndo como
sempre o grande risco de cometer uma grande injustiça, deixando de lado
brilhantes olhares cinematográficos mais alternativos e em nada menos
relevantes, para ficar apenas em alguns exemplos dentro do âmbito discursivo
deste trabalho, citarei de passagem apenas alguns exemplos do que alguns chamam
de “grande cinema” “super-produções” ou clássicos: “Metrópolis” , de Fritz Lang,
“Tempos Modernos”, de Charles Chaplin, ou os contemporâneos “Matrix”, “Beleza
Americana” , “Dança com Lobos” e “Clube da luta”. A escolha desses exemplos, em
particular, se deve ao fato de os considerarmos , dentro da história do cinema,
como ações ou momentos privilegiados pela proposta de “engajamento” dos seus respectivos
projetos. Como o condutor desse projeto dentro da realização de um filme
normalmente é o diretor, no que se costuma chamar de “cinema de autor”,
consideraremos, apenas para efeito de análise, que esses filmes são os
‘escritos” de seus respectivos diretores dentro de um ou mais propósitos de
realização. Todos esses filmes, cada um à sua maneira, utilizando uma linguagem
de simbologia e analogia própria através de seus atores, sua fotografia, sua
sonoridade e trilha incidental (os dois primeiros ainda não têm voz e a
motivação cênica e´ passada ao espectador por escrito, em intervenções
regulares e explicativas à moda clássica do cinema mudo), e a escolha de cenas
representativas de seu meio histórico, procuram desvelar o funcionamento da
máquina do mundo ao seu público, e o fazem de forma particularmente bela,
única, artisticamente engajada, numa melhor escolha de palavras. Em
“Metrópolis”, como em “Tempos Modernos”, que estão entre os primeiros clássicos
do cinema mudo, Fritz Lang e Chaplin respectivamente mostram como é por dentro,
como funciona e como se reproduz o sistema capitalista, exibindo suas
estruturas, sua história e personagens emblemáticos. Retratando o período
avançado da “revolução industrial”, revelam a exploração desmedida do trabalho
humano, a necessidade do acúmulo de lucros e sua injusta divisão, a alienação
pelo trabalho mecânico e o funcionamento dos mecanismos de poder que pretendem
legitimar e manter a ordem, para que tudo continue funcionando bem. “Dança com
Lobos” exibe com grande realismo boa parte da história dos Estados Unidos da
América em sua dura expansão para o Oeste, nos séculos XVIII-XIX, as guerras
sanguinárias , a conquista árdua dos
imensos espaços físicos , a intolerância com o outro, o diferente, e a
necessidade de extermínio gradual dos indígenas para que o branco de origem
européia se afirmasse pela força das balas e da Bíblia. “Beleza Americana”
revela , por sua vez, já na sociedade contemporânea, as angústias existenciais
de indivíduos pressionados pela alta competitividade na sociedade de consumo, e
de como agregar suas vidas em torno desse projeto central pode trazer
frustrações, sofrimento e desnorteamento permanente, além de uma solidão insolúvel.
“Matrix”, usando efeitos especiais inéditos e ambientação virtual por se tratar
de um filme de ficção científica, retrata uma distopia futurística onde o
mundo, caótico e lúgubre, que perde completamente o sentido do humano ao ser
dominado por máquinas inteligentes. A partir daí, o humano, antes senhor e
algoz do seu mundo, agora é apenas vítima, um substrato energético e orgânico
sobre o qual se ergue a nova civilização cibernética, e enquanto seus corpos
alimentam o sistema, suas mentes vivem artificialmente alimentadas por
programas de computador que simulam o que seria uma “vida real” e satisfatória
para os padrões de uma sociedade contemporânea. Por incrível e paradoxal que
pareça, em alguns momentos é dada a esses humanos a escolha de sair dessa vida
morna acalentada nos úteros artificiais criogênicos e alimentada por programas
imaginativos, quando surge a opção de que eles “tomem a pílula vermelha ou a
pílula azul”, sendo uma a responsável pelo desligamento do sistema e lançamento
brutal de si mesmos no mundo, com tudo que tem de contingente e caótico, e a
outra o prosseguimento regular dos sonhos condicionados artificiais. E o que
escolhe a maioria? “Clube da luta”, por sua vez, é filme com um projeto muito
mais ambicioso do que o título possa sugerir, retrata a vida angustiante e
banal de um sujeito no seu cotidiano urbano: escritório, prédios, consumo
desenfreado, mediocridade, vazio existencial. Em dado momento, ele passa a
encontrar sua justificativa de vida na violência pura e bruta das lutas corporais,
bem como a legitimação espiritual na fomentação auto-alimentadora das gangs
fascistas com seus lemas ideológicos rasos. O filme expõe, de diversas formas,
os problemas mais comuns que acometem a maior parte dos indivíduos
contemporâneos, e suas saídas tantas vezes sem saída.
É
notório que apesar desses exemplos
clássicos da sétima arte que nosso entendimento considera engajada, há também o
constante (senão maior) uso de seu potencial enormemente evocativo, catártico e
apelativo para realização da finalidade em sentido contrário. Nesses casos, há
também diversos exemplos dentre os quais destacamos por sua simbologia três
momentos extremamente marcantes que são ao mesmo tempo estereótipos : Num primeiro momento, na década de 10-20 , o
cineasta-poeta-documentarista Dziga Vertov na Rússia e a propaganda
pós-revolução soviética para consolidação dos ideais comunistas, principalmente
depois que Lênin decretou por discurso ser o cinema o principal meio de
divulgação da nova ordem social recém-instalada. Um segundo momento, na
ascensão do nazismo ao poder na década de 30 na Alemanha, com Leni Riefenstahl,
com total apoio de Hitler para utilização do cinema como meio de conhecimento
ideológico e convencimento do povo alemão sobre a superioridade dos ideais nazistas,
da pureza e da força da raça ariana, da inferioridade de negros, judeus e
deficientes, além de outros valores próprios dessa ideologia. Num cenário
talvez menos devastador em termos humanitários, mas não menos problemático
enquanto proposta, temos hoje uma espécie de terceira via, massivamente
utilizada nos nossos dias, notadamente coincidente como avanço da “indústria
cultural” americana depois da segunda guerra mundial, que tem na
função “entretenimento” sua maior justificativa, e é aplicada indistintamente
pela indústria cultural que traz o cinema em seu bojo, possivelmente como
principal produtor e replicador de padrões que se retro-alimentam. O termo
“entretenimento” é bastante inocente e remete apenas à superficialidade, por
uso corrente, mas considerando-se o poder que a arte possui no caminho original
de evocar o olhar e a atitude do espectador, e como arte, de permitir a criação
de linguagens que lhe conferem extrema subjetividade á medida em que se
reconhece no outro que vive a aventura numa tela, e o reconhecimento do outro
traz necessariamente reflexos sobre si mesmo, numa relação entre
para-si-para-outro inafastável, a função “entretenimento” quando se torna
tendência e motivo da existência volumosa e pujante de um dado fazer artístico assume,
de fato, um papel muito maior do que o simples nome sugere. Seria possível
enumerar diversas categorias ou formas diferentes pelas quais essa função
“entretenimento” que é umbilicalmente ligada à proposta de “desviar o olhar do
mundo” em vez de “captar o olhar para o mundo” assume na realização
cinematográfica, mas que no momento fogem ao objeto deste estudo. Entretanto,
em especial, dentro dessa indústria cultural do cinema, pela sua prevalência,
os filmes retratando “super-heróis” parecem ter
ganhado nas últimas décadas uma atenção especial, por diversas razões
dentre as quais podemos verificar: a alta sofisticação dos efeitos especiais,
que criam uma ambiência hiper-realista para a sua apreciação, a baixa
qualificação técnica dos recursos dramáticos exigida dos atores normalmente
destinados aos papéis mais representativos, a ampla repercussão mercadológica e
midiática dos filmes produzidos praticamente sem restrição de faixa etária, a
linguagem simples e direta característica dos filmes de ação, que em vez de
diálogos ou situações complicadas ou até ininteligíveis que representem em
última instância a própria complexidade do viver, colocam na tela mensagens
simples, problemas objetivos que demandam respostas objetivas e imediatas, e
cujo desenlace é geralmente interceptado pela ação contínua e movida
principalmente a adrenalina e emoção, sugerindo sempre a ação como solução para
qualquer situação, e simulando a resolução dos próprios problemas que apresenta
de uma maneira descomplicada, por algum personagem detentor de super-poderes a
quem cabe definitivamente “salvar” a humanidade de si mesma.
Inicialmente
aventamos a hipótese de que nas cavernas do Paleolítico ou no teatro grego
trágico, a força da natureza ou dos deuses misturava-se de alguma forma
intensiva com o humano, revelando as excepcionais estéticas citadas, ora por
representações pictóricas em torno de fogueiras e paredes de pedra com alto
poder evocativo, ora em palcos estratégicos com personagens e discursos com
alto poder evocativo, objetivando a pedagogia de bons augúrios sobre ações
futuras ou celebrações gloriosas em homenagem e agradecimento por ações
passadas, a previsível catarse ocorria em prol de uma coletividade cuja
subjetividade era fortemente forjada e replicada exatamente nos momentos em que
essa arte se mostrava. Hoje, contudo, nosso entendimento é de que nas salas de
cinema, os filmes de entretenimento, com grande preponderância da temática de
super-heróis, dominam o cardápio da maioria esmagadora das propostas, orçamentos,
espaço dos estúdios e marketing, com
resultado inteiramente diverso do que propunham aquelas artes ancestrais, e com
propostas visivelmente limitadoras em face de todo o potencial comunicativo e
intersubjetivo que possui o cinema , porque tende a propiciar uma total
alienação do olhar do homem sobre si mesmo e sobre o mundo, retroalimentando-se
enquanto indústria e modo específico de produção cultural. É problema que numa
“sociedade livre” , onde supostamente existem simultaneamente tantos outros
meios de escolha, cabendo ao indivíduo optar por si mesmo, isso ocorra?
Entendemos que o problema está na proporção em que isso ocorre. A princípio, a
diversão, entretenimento “puro e simples” não é um erro, e por sua vez, mesmo
tentando mascarar aquilo que não quer revelar, sua escolha ainda é uma escolha,
e poderá falar mais dentro de um espaço que a si tinha reservado o silêncio.
Contudo, se efetivamente todas ou quase todas as possibilidades inerentes à
sétima arte são ocupadas e destinadas a produzir continuamente entretenimento
de alienação em massa, uma vez que pretendem privar essas massas da experiência
reveladora do mundo, e isso ainda não é um evento particular ou aleatório, mas
tornou-se um “fazer” predominante no espaço potencial e indeterminado de uma
dada arte, então sim, isso passa a se
tornar um motivo de preocupação não apenas política, histórica, mas filosófica,
existencial, e pensamos que uma vez mais a fenomenologia Sartriana é
instrumento fundamental para apreensão e modificação dessa realidade. O que
mais nos interessa pelo motivo deste ensaio, e aqui está a nossa justificativa
pelo filme posto em observação mais profunda, é o apelo ideológico,
“existencial” que a figura do “super-herói” representa no imaginário da maioria
das pessoas que normalmente são o público-alvo desse tipo de obra.
“BIRDMAN” ( A INESPERADA
VIRTUDE DA IGNORÂNCIA.)
É
justamente nesse contexto que “Birdman” destaca-se não por ser apenas “mais um
filme de super-heróis”, mas pelo contrário, por representar na verdade uma
imensa crítica do sistema feita por dentro do próprio sistema, o que
contemporaneamente se denominaria de “desconstrução” de padrões. Revela-nos a
história de um anti-herói, ex-protagonista de um filme de super-heróis. Já na abertura do filme, enquanto surgem na tela os
primeiros créditos de produção e distribuição de Hollywood, ouve-se ao fundo a
marcação de uma bateria acústica, solo, num ritmo desconhecido e improvisado. O
baterista, que nesse momento o espectador não vê, apenas ouve, ataca com bumbo forte, caixa seca,
predominância de tambores e poucos pratos. Não há melodia, e o ritmo, quebrado,
alternado, imprevisível, chega a ser irritante pela descontinuidade. Antes que
o andamento percussivo termine e antes mesmo de rodar a primeira cena, propriamente
dita, surge na tela um fragmento de texto provocativo, de autoria do escritor
americano Raymond Carver* : “ _E você, conseguiu o que queria desta vida,
apesar de tudo? _Sim, eu consegui. _E o que você queria? _Chamar-me de querido,
sentir-me amado nesta Terra”. Ambas as coisas, tanto o andamento descompassado
e improvisado de bateria acústica (às vezes mais comedida, sugerindo marcação
de Jazz, ás vezes mais dramática,
caótica em sua expressividade), quanto os questionamentos de cunho
existencial trazidos à tona pelo texto denso de Carver (Carver, 2009), num romance
que versa sobre o complexo tema das relações afetivo-amorosas humanas, marcarão
fortemente o tema central de “Birdman”. O primeiro, mais ao fundo, ocupando o
lugar de som incidental num filme que não tem uma trilha sonora específica, vai
conduzindo as sensações orgânicas de ritmo, pulsação e adrenalina das cenas. E
o segundo, que nos mostra a peça de
teatro que é ensaiada e produzida pelo personagem principal, “Riggan Thomson”
(interpretado pelo ator Michael Keaton) pelo seu tom carregado e dramático,
surge como o tema central do excelente filme num trabalho de direção primoroso
de Alexandre Iñarritu, que vai usar e abusar da metalinguagem para conduzir
críticas e percepções de diversos olhares do “outro” sobre o que se produz,
tanto no cinema quanto no teatro, e exercer plenamente sua liberdade criadora
enquanto o conjunto de quadros temáticos que compõem o filme se torna, ao fim,
“um olhar” crítico sobre a produção cultural contemporânea, a indústria do
entretenimento de massas tendo os “filmes de heróis” como referência principal
e a alienação entorpecente que a acompanha desde o berço. Essa metalinguagem se apresentará de diversas
formas, tanto quando o que fala discursa sobre sua própria história como também
no instante e que o olhar do outro é solicitado a ser uma visão crítica sobre o
que está sendo produzido como se fosse um “making off”. Na sequência, surgirão
frequentemente diálogos do cinema
falando sobre o teatro, como no tema central em que se ensaia uma difícil adaptação do romance de Carver, haverá o
cinema falando sobre o próprio cinema, como na crítica aos filmes caros e
fúteis de super-heróis hollywoodianos
(berço aliás do próprio filme que ora se estuda), cinema de massas que
privilegia efeitos especiais e sequências intermináveis de ação em detrimento
da qualidade dos atores, do roteiro e dos personagens, ou essa abordagem ainda
será percebida na fala do teatro sobre o
cinema, na medida em que a arte cênica se coloca como um meio tradicionalmente
superior em seu “status” dramático, porque devido a suas características
próprias, em tese estaria melhor qualificada para tratar com maior profundidade
e extensão da condição humana, mas isso sem contudo conseguir se livrar dos
seus próprios críticos de teatro “especializados”, que voluntariamente ou não,
operam como uma devastadora força castradora sobre iniciativas espontâneas e
alternativas que não se encaixem no “stablishment” pré-calculado.
Ressalte-se,
entretanto, que o objetivo deste ensaio, por várias razões, não é se colocar
como mais uma crítica de cinema, apesar de considerarmos a sétima arte nos dias
de hoje, senão o melhor, ao menos um dos melhores e mais privilegiados
meios de representação possível da
comédia e da tragédia humanas, por diversas razões. É apenas nesse sentido,
portanto, em que o cinema surge como uma boa oportunidade de permitir a
inflexão sobre temas de relevância existencial e filosófica, agindo de forma
poderosamente evocativa, na medida em que apela diretamente ao emocional do
espectador, que este ensaio se ocupará das possíveis analogias da obra em
questão , utilizando-se para isso de alguns referenciais filosóficos numa
proposta para “ler” o brilhante filme de Iñarritu. A nosso ver o cinema abre,
com esta oportunidade, um rico espaço
para uma leitura fenomenológico-existencial da vida contemporânea, seus dramas e coloridos próprios, conforme
tentaremos explorar numa aproximação “pelas beiradas” sem que seu objeto seja
destruído ou de alguma forma “absolutizado” por opiniões de caráter
pretensamente definitivo. A obra de arte é infinita em seus significados,
apreensões e está sempre por se fazer, a cada vez que alguém liga o “Play”.
Aqui entra em cena a revelação de aspectos essenciais da produção cultural, uma
atividade que por si só gera valores e reproduz valores que em larga escala
representam ou induzem o pensar e o
sentir de uma sociedade em dado momento, e sobretudo é também uma atividadde
multiplicadora-criadora dos valores que por ela serão seguidos ou refutados em
outro momento.
Neste
filme, Raymond Carver, com seu texto, o autor escolhido pelo diretor do longa
para compor o tema de destaque através da montagem teatral que o filme narra,
reproduz o drama da condição humana, tomando
como base um tema relacionado ao amor, e por sua vez, o roteiro do filme mostra
todo o contexto da adaptação, montagem e encenação de uma peça com caráter
“alternativo”, em meio às armadilhas da indústria da cultura de massas. Ao
colocar os dilemas, dificuldades e toda a trajetória de um artista oriundo do
show-bizz, o protagonista “Riggan Thomson”, antes alçado aos mais altos degraus
da fama e do reconhecimento rápidos pela própria indústria do entretenimento (o
que não se vê no filme, mas se deduz por informações paralelas), e de repente,
o vemos ressurgindo depois de um longo hiato , mais maduro e mais consciente de
suas possibilidades, Riggan agora é essencialmente diferente do que era antes,
porque em algum lugar de sua própria história houve uma espécie de ruptura com
o passado. Recusa-se terminantemente a dar vez a mais uma sequência do filme em
que seu herói foi criado. Ele não quer filmar o que seria “Birdman”, parte 4, e
é a partir daí que começa sua nova história. As dificuldades inerentes à ruptura
e à mudança de direção são muito maiores.
Ele, enquanto autor-ator-diretor é mais decidido , mais maduro e mais
crítico, mas ao mesmo tempo bem mais velho, agora sem o apoio do público e
sujeito mais do que nunca ao “mundo sério” da cruel crítica especializada, da
falta de financiamento e das demais dificuldades inerentes para lidar com todos
os aspectos de ser simultaneamente ator, diretor e produtor de seu próprio
trabalho. Todo esse trajeto que envolve tanto a ruptura de Riggan com seu
passado, bem assim a montagem de uma peça teatral com o conteúdo denso de um
escritor como Carver, e a inter-relação entre indústria cultural do
entretenimento e tentativa do resgate da humanidade perdida do sujeito em
direção a uma possível vida mais autêntica em um mundo que cada vez mais
alienante que contribui para que justamente
o contrário ocorra, cria um ambiente propício como poucos para a
indagação e reflexão filosófica e existencial. O objetivo deste ensaio não é
outro senão encontrar e identificar os elementos de reflexão trazidos pelo
filme ou ao menos alguns deles, uma vez que “uma leitura” certamente não esgota
“as leituras” possíveis, e numa base mais ampla procurar delimitá-los,
com algum suporte teórico, dentro da linha fenomenológica-existencial sartriana.
Tal oportunidade, a nosso ver, se torna ainda mais interessante e talvez mais
válida, quando percebe-se , de início, que todo esse processo foi iniciado
justamente dentro daquele que poderia ser considerado o “lugar de produção” por
excelência, da maior parte de todos os bens culturais de massa nos dias de
hoje, ou seja, dentro dos Estados Unidos, e especificamente dentro dos estúdios
do grande cinema de Hollywood.
Essa aproximação pode ser feita de diversas
formas, é evidente, e como foi dito, não se pretende em momento algum esgotar
ou limitar seus pontos de entrada ou mesmo o alcance possível da reflexão. O
estudo pormenorizado do filme nos
remeteu fortemente a algumas das noções criadas e desenvolvidas ricamente por
Sartre, tanto na obra “A Náusea”, quanto em conceitos mais elaborados no
sentido propriamente filosófico, que estão mais presentes em outros trabalhos,
conceitos fundamentais como “consciência”, “engajamento”, “projeto”,
“liberdade”, “má-fé” e “responsabilidade”, dentre outros, estão imiscuídos, às
vezes de forma sub-reptícia dentro do roteiro do filme “Birdman” ou às
vezes de forma escancarada mesmo, a
ponto de gritarem com sua voz existencialista a plenos pulmões para um universo
que há muito parece ter se esquecido da grande relevância desse pensador para
uma melhor compreensão da nossa época e do “papel” do homem diante da vida.
Neste ano de 2015, onde completam-se
justamente 35 anos da morte de Sartre, é mais do que oportuno o resgate do seu
pensamento como uma fonte inesgotável capaz de propiciar importantes releituras
da realidade, em um mundo cada vez mais dinâmico onde o tempo é coisa cada vez
mais rara, e a consciência coletiva parece dissolver-se cada vez mais em
pensamentos narcóticos , quer sejam de ordem religiosa, científica, política ou
moral. O mesmo mundo que hoje,
simultaneamente e coincidentemente, naufraga na cultura de massas transformada
cada vez mais em entretenimento superficial para consumo fácil.
Há
diversos pontos em que esse olhar fenomenológico poderia entrar como possível
leitura desveladora de uma realidade obtusa . Uma representação na tela ou no
palco, que por sua vez remete ao mundo real, mostrando como a arte, em qualquer
de suas vertentes, pode ter um importante papel para que, na inter-relação do
humano consigo mesmo e com o outro, seja possível uma maior aproximação do seu
próprio ser através da linguagem. No caso, a linguagem privilegiada do cinema
que conta entre seus instrumentos a imagem, o movimento, o som e o texto.
Os
pontos apresentados pelo filme “Birdman”,
e que a nosso ver se relacionam de alguma forma com parte da tradição
filosófica, e mais propriamente fenomenológica, em consonância com um projeto
de engajamento e desvelamento do real pela arte, pontos estes que entendemos fundamentais, são os
seguintes: Em primeiro lugar, a frase do escritor Carver, na abertura do filme,
e que é por si só uma referência direta ao tema existencial, fenomenológico,
uma vez que leva ao questionamento humano tão comum e tantas vezes evitado sob
pretexto de ser problemático demais: “E você, conseguiu, apesar de tudo, o que
queria desta vida (...)?” Afinal, qual é o objetivo da vida? Será que ele
existe? E uma vez descoberto, ele poderia ser realizado? E o que parece relacionar-se sobremaneira com
o tema sartriano é a condição imposta pela frase: “Apesar de tudo”? Ora, o
perfeito paralelo dessa frase: “o que você vez com o que fizeram com você?” é
abertamente existencialista. Mostra-se
aqui, de forma cristalina, o papel de todas as condições “negativas” ou
“desvirtuantes” que poderiam caracterizar o mundo, tanto exterior, no que
representam as forças condicionantes do meio social, da relações de trabalho ou
afetivas, quanto esse condicionante poderia também ser oriundo de uma
subjetividade já alienada, passiva, que não consegue mais se opor ou discernir
por um possível senso crítico “contra o que” exatamente deveria se opor ou
lutar , para chegar aonde pretende, quais seriam enfim os tipos de obstáculo
contra o qual terá que lutar o homem para que ao fim consiga atingir seus objetivos de forma mais
autêntica. Sem embargos, esta poderia
ser considerada uma das perguntas mais importante do existencialismo
sartriano, tema extremamente presente em “A Náusea”, “Que é a literatura?” e é
claro, em ‘O ser e o nada”, e que subjaz ao texto cinematográfico apontado.
Logo
em seguida há outro ponto ao qual ora dirigimos nosso olhar, na primeira cena
propriamente dita, com o protagonista sentado em seu camarim, se preparando
para mais um ensaio sobre a peça que atualmente encena, e surge a máxima
gravada numa pequena folha colada no
canto do espelho do ator “Riggan Thomson”, com os dizeres : “Uma coisa é uma
coisa, e não o que se diz dela”. Ora, isso também pode ser considerado com
muita propriedade um relevante tema fenomenológico, pela sua pertinência com o
universo teórico legado pelo filósofo Edmund Husserl, e sobremaneira um tema
Sartriano, na medida em que, a nosso ver, procura restabelecer a questão
original que deu à fenomenologia enorme liberdade epistemológica/ontológica e
certamente uma “superioridade” no campo temático sobre as filosofias
“sistemáticas” que a precederam. Aqui, põe-se claramente a necessidade da
superação da dicotomia entre psicologismo e materialismo, um velho debate
existente desde os primórdios da escola filosófica no ocidente, entre
racionalistas (idealistas) e empiristas, e que subsistiu praticamente incólume
até a modernidade, antes que Husserl, Heidegger
e Sartre viessem propor de forma bem sucedida a sua superação. A frase
denota que uma coisa , ou seja, o mundo exterior, os objetos, árvores, animais
, tem sua existência independentemente da visão humana que os contempla. Não
“dependem”, portanto, do olhar humano para que existam. Do mesmo modo, no
raciocínio invertido, deduz-se que pela sua existência própria, exterior, não é
ela por si só, a coisa, que “impregna” a mente humana, e como tal, essa coisa
passaria a ter uma existência mental, psicológica, dentro da mente ou do
“espírito humano”.
O
terceiro ponto de direção do olhar, que julgamos relevante para a maior
aproximação fenomenológica e existencial, reside no sugestivo subtítulo dado ao
filme : “Da inesperada virtude da ignorância”, que faz uma paródia intencional
ou não, mas de todo modo bem oportuna com os tempos em que vivemos, pois remete
em primeiro lugar ao conceito de alienação de massas (sempre perigosa alienação
de massas, conforme nos lembra uma simples leitura da história trágica e
recente da humanidade), e por meio dele à atitude deliberada de “má-fé”, a
tentativa de fuga ou negação da realidade do mundo e simultaneamente desafia
de forma irônica o cânone maior
da filosofia e do pensamento racional no ocidente, o famoso preceito Délfico
apropriado pela razão Socrática do “Conhece-te a ti mesmo”. Ora, a frase do
subtítulo é debochada e desafiadora porque na nossa tradição intelectual, muito
assumida pelas escolas filosóficas, a ignorância jamais poderia ser uma
virtude. Muito pelo contrário, nossa civilização baseia-se , essencialmente, na
ideia socrático-platônica de que o “conhecimento”, entendido mais como um
conhecimento lógico, racional, representa a real supressão da ignorância, e portanto torna-se a maior virtude
desejável, uma vez que ele é que será o definitivo portador da verdade, do bem,
do belo e da moral. Todos esses pressupostos, associados ao constante recurso
da metalinguagem, que coloca magistralmente os personagens de cinema
continuamente em perspectiva, observados de forma mais rigorosa e terrivelmente
crítica pela ótica do teatro, tornam o
pano de fundo do filme “Birdman, ou: “A inesperada virtude da ignorância” um
contexto invulgarmente rico para leituras e releituras sobre o homem e seu
papel no mundo.
A
“metalinguagem”, a nosso ver, recurso rico e muito bem utilizado pelo diretor
no intuito de “colocar em discurso’ as críticas da arte sobre si mesma, e´
instrumento fundamental para dar ao filme “Birdman” uma riqueza ímpar em sua
construção. Fazendo um parênthesis a respeito desse aspecto, entendemos que a
metalinguagem, em sua forma e utilização no filme em comento assemelha-se
conceitualmente ao movimento que executa o “Para-si” sartriano, na medida em
que é dele a tarefa, enquanto presença-ao-mundo, de criar o conhecimento, e
perpetuá-lo, fazendo dessa atividade inerente ao seu próprio ser as razões de
sua presença na história e a motivação voluntária e coletiva pela cultura,
daquilo que por natureza é indeterminado em sua essência. O movimento da
metalinguagem no cinema, e isso aparece de forma brilhante no recurso utilizado
por Iñarritu em “Birdman” é semelhante ao movimento e à posição da consciência
“Para-si” :simultaneamente uma consciência desveladora do mundo, e uma
consciência de si mesma em movimento enquanto realiza o processo, porque coloca
seu objeto, desvelando nesse caminho o próprio processo reflexivo de se
“colocar o seu objeto”. Além de se colocar necessariamente como uma consciência
para-outro, dado que a intersubjetividade é inafastável em todo contexto de
linguagem ou comunicação.
O
filme revela as engrenagens da indústria do entretenimento, ao colocar-se a si
mesmo enquanto um filme que critica filmes, e num segundo momento introduz a
linguagem teatral, mais visceral e direta, como um terceiro discurso, falando
também do fazer teatro e sobretudo do cinema. Faz isso ainda quando coloca o
teatro em posição de superioridade no seu elemento dramático, uma espécie de
“retorno ás raízes mais puras” de toda representação cênica, e o teatro então
se torna um crítico do cinema e do próprio teatro, e ainda faz isso de modo
irônico, para não dizer sarcástico, ao expor visceralmente um ator da vida
real, como é o caso do ator “Michael Keaton”, que até então fazia parte
daquelas engrenagens, e que agora, assim como a viagem paralela que encena seu
personagem Riggan Thomson por idealismo ou convicção, resolveu meter o pé
naquele mundo vazio e tomar as rédeas de um destino mais glorioso em suas mãos.
Nesse sentido é que defendemos que tomado em sua plenitude, o filme, por si só,
poderia ser compreendido como uma obra de “engajamento” do seu criador, uma vez
que pretende desvelar, por dentro, como se representa, como opera e como se
reproduz esta indústria do entretenimento, uma indústria que por natureza
fabrica alienação, tão poderosa e influente nos nossos dias, solicitando nessa
abordagem fortemente a liberdade do espectador pela qualidade temática e
estética do filme.
Um
breve resumo do filme mostra que Riggan Thomson, mais conhecido pelo grande
público como o popular “Birdman” (Homem-pássaro), é um ator de meia-idade que
atingiu o auge da carreira profissional no cinema uma ou duas décadas atrás,
com um personagem de super-herói de massas, e a partir de certo momento, “cai
em si”, atingindo uma grande
insatisfação com o passado e alguma consciência de liberdade criadora
dentro da sua profissão de ator quanto a um projeto de futuro que pretende
mudar essa trajetória. No tempo presente, que é onde se passa o filme, Riggan
já surge em cena repudiando o seu
próprio passado. Um passado que o conduziu até aqui e, ainda que tenha se
mostrado em termos mercadológicos uma estratégia vencedora durante a maior
parte do tempo, terminou por revelar-se existencialmente fraca, insatisfatória
do ponto de vista de “realização” do artista. Riggan sente-se vazio, fútil,
entediado, sem outras motivações na vida. O filme não dá maiores detalhes de
como foi exatamente a aproximação do ator-diretor-produtor Riggan com o texto
visceral do escritor Raymond Carver, o atual objeto de sua adaptação para o
teatro, nem explicita muito bem essa história de vida pessoal do próprio ator
no passado, mas deixa entrever o tempo inteiro que é o paralelo com mais uma
dessas histórias tradicionais das mega-estrelas do cinema, que fazem fama
rápida e milionária na tela, encenando filmes de ação de um cinema em escala
industrial do entretenimento. Riggan, contudo, surge em cena já demonstrando
cansaço e insatisfação com o passado e, mesmo tentado por questões de natureza
financeira ou na suposta retomada do brilho do passado perdido através de uma
providencial reintrodução do super-herói a que deu vida nas telas, ele ainda
assim altera seu próprio destino ao escolher a saída mais difícil e ao
pretender introduzir uma peça dramática, mudando-se do cinema para o teatro e
utilizando como livro-texto o denso romance do
escritor americano Raymond Carver : “ Iniciantes: Do que falamos quando
estamos falando de amor?” Um drama que trata da profundidade e complexidade das
relações humanas. Algo mais denso e autoral, radicalmente diverso de tudo que
ele já havia realizado no cinema. Riggan terá que ser corajoso para superar as
limitações que o cercam, e dentre elas, talvez a maior, por ser de ordem
totalmente subjetiva, a presença inafastável de um “narrador” interno, que a
maior parte do tempo é representada apenas como uma voz, em segundo plano, ou
mais à frente no andamento do filme, será representada como a própria sombra de
Riggan, algo que já tomou parte de sua personalidade e está dificultando com
que o ator definitivamente o esqueça. O super-herói Birdman que se materializa
como um “alter ego” por efeitos especiais em asas e formato dos seus filmes
antigos, para aconselhá-lo a retornar ao mundo de antes. Esse narrador é uma
espécie de consciência do mundo exterior, que sempre tenta acorrentá-lo ao seu
passado, agourando seus projetos de futuro
com visão pessimista diante de um mundo caótico, contingente e lembrando-o da
calma e bem sucedida vida confortável e rica que possuía quando seguia os
padrões do “cinema de massas”com seu personagem antológico do super-herói
“Birdman”. Essa consciência é acusadora e ao mesmo tempo sedutora, ao jogar
duro com a situação material de quase penúria em que se encontra o
ator-produtor-diretor, e simultaneamente ao tentar recolocar o brilho da fama
pretérita em seus olhos, como “nova velha’ possível realização segura, desde
que o ator aceite o jogo da grande indústria e volte a filmar seu antigo papel.
Ela estará com ele a maior parte do tempo, jamais o abandona, mas não o
condiciona, como o filme mostra, no sentido de impedir sua escolha libertadora.
Riggan a ouve, sabe que ela existe, conhece seu discurso tentador à maneira de
“Mephisto sobre o Fausto” de Goethe, e sabe ainda que seu passado não pode ser
apagado, mas ao mesmo tempo ele não o enxerga como uma espécie de barreira no
tempo ou imposição de valores determinantes ou um condicionante imutável para o
seu agir no presente ,porque seu projeto de futuro está em construção (nesse
ponto, há um paralelo muito forte com a proposta sartriana da Psicanálise
existencial exposta em “O Ser e o nada”, uma vez que tanto o condicionamento
exterior é relativizado e não determinante porque enfrenta de todo modo uma
liberdade humana que tem caráter absoluto e ao mesmo tempo rompe com as
estruturas propostas por Freud, entre outras coisas, quanto ao papel da
infância como essencializador do adulto).
Em algum momento, ele “escolhe”, mudar, e não ser mais objeto do que sua
história pretérita quis fazer dele. É o próprio conceito sartriano de liberdade
falando pelos gestos de Riggan: “O que importa não é o que fizeram de você, mas
o que você fez do que fizeram com você”. Ele usa da sua liberdade para escolher
não ser condicionado pelo seu passado de popstar bem-sucedido, e arrisca de
forma ousada jogar toda essa fama, conforto e dinheiro fora em prol de um
projeto pessoal desafiador. Percebe que o que havia feito até então na vida não
o realizara porque não se tratava da verdadeira arte, mas apenas entretenimento
fútil. Sente que algo em si, sua
consciência e sua liberdade o chamam para uma realização maior. Ele então vai
passar por diversos percalços nesse caminho para alicerçar seu projeto de
liberdade, desde a falta de dinheiro para financiar sua nova peça, tendo que
hipotecar a própria casa para atingir seus fins. Passa por problemas de
credibilidade no meio artístico, uma vez que a “crítica profissional” engessada
em seus equivocados conceitos do “belo’ e “bom” geralmente não aceita a
novidade do mundo, o fato de que um herói de massas possa um dia trazer a
público qualquer coisa artisticamente relevante, até mesmo a ponto de deitar
por terra as noções arcaicas de “belo” e “bom’. A crítica profissional, na
visão do filme, tem sempre o condão de “plasmar”, “etiquetar”, “imobilizar” o
objeto de sua análise pelo poder do discurso midiático e na utilização do
argumento de autoridade, no tempo e no espaço. É uma crítica que não absorve
mudanças, não tem dinâmica. Portanto, dentro do seu ambiente e no “papel” de
exercer a crítica de conteúdo, supostamente pura, termina por reafirmar os
valores limitantes que a própria sociedade impõe. Portanto, ela ocupa um papel
fundamental no “stablishment”. Riggan também tem problemas repetidos com a
grande mídia, a mesma imprensa que ora o apoia, ora o massacra. Distorcem o que
diz, a seu belprazer, e publicam sem o menor compromisso com a verdade dos
fatos ou declarações. Usam sua imagem ora para ridicularizá-lo, ora para
impedir que seu novo projeto venha à tona. Eles o apoiarão, desde que permaneça
no seu “status” de sucesso, estagnado, e ela consiga assim ajudar a vender mais
jornais e mais ingressos para o grande cinema de entretenimento. Eles com a
mesma facilidade também o massacrarão ou o deixarão no anonimato se tentar
fugir das garras da indústria cultural para vôos de maior altura. A mídia não
busca, evidentemente, a realização de obras
profundas ou de qualidade, que necessariamente serão feitas para poucos, o que
implica dizer pouco lucro, pouco marketing. Os meios de massa querem
entretenimentos superficiais com grandes lucros, para muitos. Riggan sabe, o
tempo todo, que ao passo que o grande
público e o sucesso mercadológico do cinema anteriormente lhe garantiram fama,
eles são apenas a repetição de atos mecânicos e superficiais que representam a
forma de agir e pensar da poderosa indústria cultural do entretenimento. Ela
funciona basicamente com grandes fórmulas estáticas de sucesso, alavancando
personagens caricaturais de sentido raso que caem no gosto do grande público.
Eles nada acrescentam a suas vidas, nada trazem de ruptura com padrões
pré-estabelecidos ou nada induzem no sentido de aprimorar ou ampliar sua
reflexão ou experiência do viver. Numa expressão mais feliz: por seu
compromisso essencial com o mundo material, eles limitam a experiência do
viver. Apenas repetem padrões pré-estabelecidos socialmente, determinadas visões alienantes do homem sobre
a sua própria vida, padrões que
impedem-no de ver as reais estruturas que movem o mundo, e não podendo enxergar
como a máquina funciona, jamais poderão interferir positivamente nesse contexto.
Também a crítica profissional, consciente ou não do seu espaço, atua como um
desestímulo à produção do novo, desestímulo a uma reengenharia do olhar sobre
estruturas viciadas, uma vez que ela também, à sua maneira, estabelece “padrões
de sucesso” para um nível mais complexo de entendimento, impedindo ou criando
enormes dificuldades para quem está fora e pretende entrar nesse “círculo de
iluminados” mas ainda assim, ela mesma, a própria crítica, acaba se
prendendo aos grilhões de determinadas
estéticas , gostos ou visões fechadas de mundo. A crítica profissional representa mais uma das garras imobilizadoras
do sistema para que qualquer tentativa do “novo” seja morta ainda no
nascimento. Observe-se que, em determinada cena do filme, no segundo encontro
de Riggan com a personagem que representa a crítica de um grande jornal
especializado em teatro na cidade de Nova York, ele a convida para a estreia de
sua peça e ela, mesmo sem assisti-la, sem analisar de perto seus detalhes, sua
performance, seu desfecho, utiliza um mero pré-conceito estabelecido,
independente da experiência, para informar que já tem sua critica pronta pra
publicação, e afirma sem titubear que a mesma será negativa. Diante do
ator-diretor surpreso pela atitude, ela diz que é importante que todos saibam
que gente como ele não tenha o condão de fazer qualquer coisa relevante. É uma
espécie de vergonha para tal “classe” teatral da Broadway, o templo-mor do
teatro americano que ele possa receber alguém que tenha sido um pop-star.
Nesse
percurso tantas vezes solitário e ingrato na luta contra o mundo que quer
permanecer intocado, conduzindo-se pelo jogo das aparências que fingem uma
ordem rigorosa, em-si e previsível, uma auto-realização satisfativa que não há,
Riggan muitas vezes se vê obrigado a improvisar. Ora improvisa vendendo os
últimos bens que lhe restam, para bancar a produção cara da peça. Ora improvisa
no papel de um pai que procura se redimir no campo afetivo pela ausência na
criação da filha. Ora age temerariamente, ao escolher de modo frio os atores
que vão incorporar seu elenco ou do modo inerte quando reage á suposta gravidez
de sua amante. Todos esses improvisos ficam fortemente marcados pela trilha de
influência jazzista, onde a bateria centrada nos tambores que dá o ritmo
inicial do filme, continua mais forte agora, e o som aumenta de volume,
causando mais tensão. O próprio baterista e seu instrumento aparecem de
passagem, em duas belas cenas do filme.
Não é por acaso que o Jazz é um estilo musical que não respeita muito a melodia(algo
previsível e calculado, como ocorre na maioria dos outros estilos mais
conhecidos e populares como o rock, pop, o clássico, o blues) e cria
dissidência ao fundar sua própria maneira específica de propor a música,
baseada principalmente no improviso. No Jazz, principalmente, diferentemente
dos outros estilos, não é possível saber o que vem logo em seguida na melodia,
quando o músico improvisa. E torna-se mais difícil ainda prever a sequência se
o único músico mostrado é um baterista, instrumento que por definição não
permite sequer criar melodias, mas apenas ritmos e notas soltas. O mundo de
Riggan respira improvisação, quer em cena, para suprir falhas de personagens
dentro da peça que se está montando ou mudanças bruscas de contexto, cenários,
falas esquecidas ou alteradas. Ou mesmo fora dela, como as dinâmicas que ele
estabelece em sua vida pessoal tumultuada.
Em
dado momento, Riggan passa a contar com o auxílio inusitado de outro
personagem, “Mike” , brilhantemente interpretado pelo ator Edward Norton, que
com sua atuação teatral intuitiva e visceral na peça em cartaz, ratifica com
intensidade o texto original com uma melhor “pegada" do romance de Carver
no palco, em comparação com o ator de poucas qualidades que antes faria seu
papel, e é afastado após um “inusitado acidente’. São marcantes as cenas desse
personagem polêmico tanto no palco quanto fora dele, e no contexto do filme,
ele atua como um catalisador em face dos planos de Riggan. Inicialmente se
opõe, critica, destempera, o que força Riggan a mostrar o seu melhor para atuar
e dirigir. Num segundo momento, não consegue separar seu comportamento na vida
pessoal da sua vida enquanto personagem no palco. Para Mike, tudo está
misturado, e não fica claro quando é que o ator surge ou o personagem vai
embora. Num primeiro momento, numa das
primeiras cenas do ensaio com o novo ator, Mike
encara a plateia com casa cheia na pré-estréia da peça, observando que algumas pessoas filmam a
encenação com seus celulares, e brada “E quanto a vocês, pessoas do grande
público?? Será que não conseguem ver o mundo real, a não ser pela tela de um
celular”? . Bem assim há outro momento inspirado por seu protagonismo, de
grande revelação e beleza ao mesmo tempo cênica (porque diz respeito ao texto
autoral que se ensaia no momento), cinematográfica (porque coloca em primeiro
plano uma questão de metalinguagem que perpassa toda a obra, todo o filme)
enquanto mostra-se ainda uma questão
universal de natureza filosófica e existencial. A cena ocorre quando Mike é
questionado por sua jovem amante , filha do protagonista e diretor da peça,
Riggan, perguntando-lhe se acaso ele não teria medo de que no palco as coisas
pudessem dar errado no momento de sua atuação, e ele responde depois de pensar
por um segundo ou dois que quando está atuando, nada pode dar errado, porque é
“ele mesmo quem está lá, verdadeiramente”, no palco, enquanto sua vida aqui
fora é que é irreal, cheia de desacertos, incongruências, caos e rupturas, uma
vez que se trata da vida concreta. Essa belíssima fala que remete ao genial
Artaud de “O teatro e seu duplo” também lembra de forma invertida a questão
existencial, em contraponto com toda representação: quem somos, afinal?
“Isso significa que há novamente magia de viver, que o ar do subterrâneo,
embriagado, como um exército reflui de minha boca fechada para minha narinas
escancaradas, num terrível barulho guerreiro. Isso significa que quando
represento meu grito deixou de girar em torno de si mesmo, mas desperta seu
duplo de forças nas muralhas do subterrâneo. E esse duplo é mais do que um eco,
é a lembrança de uma linguagem cujo segredo o teatro perdeu. (...) E isso será bem perto de um grande
grito, de uma fonte de voz humana, uma única e isolada voz humana, como um
guerreiro que não tenha mais exército. Para descrever o grito com que sonhei,
para descrevê-lo com palavras vivas, com as palavras apropriadas e para, boca a
boca e respiração contra respiração, fazê-lo passar não para o ouvido, mas para
o peito do espectador. Entre a personagem que se agita em mim quando, ator,
avanço em cena e aquela que sou quando avanço na realidade, há uma diferença de
grau, sem dúvida, mas em benefício da realidade teatral. Quando vivo não me
sinto viver. Mas quando represento, sinto-me existir. O que me impediria de
acreditar no sonho do teatro quando creio no sonho da realidade?” (Artaud, “O
Teatro e seu duplo”, Martins Fontes,
1987).
Se
essa proposta, apesar de toda sua intrínseca beleza, fosse admitida como
verdade, e o “jogo” da representação pudesse ser compreendido e estendido nesse
contexto, por analogia, colocando-nos, a nós mesmos num outro plano hipotético
como eternos atores representando continuamente nossas próprias vidas, ou um
outro sentido possível, seria o mesmo que retomar a questão tão bem colocada por Sartre no romance “A
Náusea”, no sentido em que o mundo exterior é caótico e real porque
contingente, imprevisto, e desmorona bem debaixo dos nossos pés, e dessa forma,
a arte consubstanciada na forma da arte representativa, arte cênica na visão do
que pretende “Mike”, seria também uma espécie de fuga, no sentido em que
Roquentin mesmo entendia ser um dos papéis da arte. O papel de dar coerência,
continuidade, sentido e uma certa tranquilidade a um mundo, a uma vida, a uma
realidade na medida em que , por se tratar de algo inventado, um mero exercício do imaginário, uma obra de
arte não é como a própria vida, como o próprio mundo em si, algo trágico,
dramático por natureza. Mike (Edward Norton) remete, com sua fala, à presença
do “sentido” final e absoluto na obra, enquanto a vida não o possui. Sugerindo
a presença de uma “finalidade”, uma “Lógica”, como coerência e necessidade, enquanto o mundo não
o possui. Se é assim que a leitura dessa última fala do personagem “Mike” pode
ser tomada, então temos aqui uma espécie de consonância com o texto da
“Náusea”, de Sartre, pois não é de forma diferente que o protagonista Roquentin
entende o papel da arte. Ambos optam pela “má-fé’, Roquentin e Mike , ao
reputar a um contexto externo, que não coincide com as respectivas rotinas de suas próprias vidas,
o engendramento de um mundo próprio repleto de sentido e história, em
detrimento do que acontece na realidade.
“A NÁUSEA” e “BIRDMAN”:
paralelos entre os personagens ROQUENTIN e RIGGAN THOMSON
Queremos
pensar que a ação do personagem “Riggan Thomson”, protagonista do filme
“Birdman” é, em algum grau semelhante ao que acontece com “ Antoine Roquentin”,
no romance “A náusea’”. Ambos “estão no mundo”, e em algum momento já na vida
adulta, sem se saber bem o porquê , surge um determinado motivador que os força
a mudar suas perspectivas diante da vida. No caso do romance, Roquentin é
tomado pela sensação física, emocional e psicológica do mal-estar quando
percebe o quão gratuito e sem-sentido é
o homem no mundo, e daí resolve abandonar sua profissão para tentar retomar um projeto que julga mais
original e supostamente capaz de lhe dar uma compreensão mais sólida do mundo,
ou quem sabe retomar um “status” de continuidade, segurança e pleno do sentido que
ora entende perdido depois da grande revelação da consciência da realidade de
um mundo mutante, imprevisível. Fuga ou enfrentamento, depois do surgimento do
conflito angustiante instaurado pela
“Náusea”, não dá mais pra fingir que não existe o problema da condição
humana. No caso do personagem Riggan Thomson, do filme Birdman, embora o filme
não mostre exatamente o momento em que teria se iniciado essa tomada de
consciência, sugere com bastante força
que foi uma “escolha” do ator , por si mesmo, que deliberadamente
recusou um projeto de continuidade do filme anterior que lhe foi
oferecido—filme este que foi produzido segundo as regras do grande cinema de
ação, com excesso de adrenalina, muitos efeitos e pouca reflexão—e parte
deliberadamente para uma trajetória incerta e árdua que é montar a peça dramática baseando-se no
texto de um escritor reconhecido dentro de um cenário teatral que, por sinal,
não é a sua área de formação. Entretanto, essa afirmação do ator, tomado
isoladamente em sua atividade, é contraditória com o conjunto da obra que se
ensaia e com o próprio sentido do texto que pretende dar o autor, Raymond
Carver. No aspecto geral do filme conduzido por Iñarritu, e principalmente no
texto de Carver, está mais do que claro o caráter descontínuo, trágico,
incoerente e sem qualquer propósito dos relacionamentos humanos e da própria
vida, se tomarmos os relacionamentos afetivos e amorosos como uma espécie de
centro gravitacional em torno do qual giram grande parte das questões mais
difíceis e profundas da experiência humana . O próprio texto de Carver é
sugestivo ao ensaiar diversas possibilidades do amor como essa forma
particularmente complexa de intersubjetividade humana. No conto “Iniciantes”
(Do que falamos quando estamos falando de amor” quando ele narra as mais
conhecidas formas de amor, desde o amor espiritual, defendido pelo personagem
“Herb”, o amor apaixonado que por vezes resvala para a bestialidade e a
violência, vivido no passado recente pela personagem “Terri”, o amor como
dedicação e companheirismo de longa data, vivido pelo casal de velhos que sofre
um acidente automobilístico e se encontra acamado num hospital, o amor
“sossegado”, vivido pelo narrador “Nick” e sua noiva, e por fim o amor amizade,
representado no pano de fundo pela conversa amistosa de um grupo de amigos que
se gostam, numa tarde de sábado regada a muitas doses de gim tônica.
Assim
como sugere a leitura da parte final do romance A Náusea, pela atitude do
personagem Roquentim, onde ele termina por perspectivar uma espécie de saída
para a condição terrível de estar acometido pela contingência do mundo, na
medida em que vê na criação literária um porto seguro. Não se sabe exatamente
“o quê” ele quer desenvolver enquanto conteúdo, mas a forma escolhida
provavelmente será o romance. A se observar as sugestivas indicações de fuga
que aparecem o tempo todo no livro, uma fuga psicológica para algum lugar
aprazível no exato instante em que ele é acometido pelas vertigens, pelo tédio,
pelo impacto de perceber a falta de um sentido imanente do próprio mundo, tudo
indica que esse romance será mesmo algo que procure “mascarar a realidade dura
e crua” revelada pela náusea. Ou seja, tendo ciência de sua condição no mundo,
o personagem parece volitivamente olvidar-se dele, assumindo um conceito que ,
para Satre, é fundamental: a má-fé. A escolha do caminho que se faz, mesmo
sabendo que esta saída, enquanto “saída”, não é de fato uma superação do
problema que há. Roquentin, portanto, sabendo e sentindo o impacto dessa
revelação poderosa sobre a vida, e sobre o seu mundo, “escolhe” alienar-se
usando a arte como subterfúgio. No entanto, essa saída não é a única, pois como
pretendemos demonstrar por analogia, Riggan Thomson, protagonista de “Birdman”,
a nosso ver, em algum lugar de sua vida pretérita (cujo espaço-tempo o filme não
informa literalmente, mas apenas sugere), escolhe um caminho inverso para um
dilema semelhante ao que enfrentou Roquentin. Rico, bem sucedido, famoso,
senhor de um mundo de aparências auto-suficiente e para muitos satisfatório,
ele contudo não está satisfeito. Em algum instante, o impacto da Náusea o pegou
pelo caminho? Ele então decidiu abandonar aquela vida fútil, superficial, para
buscar uma maior autenticidade no seu existir e nesse projeto, adotar uma
concepção de arte impopular, mas mais verdadeira, crítica, desveladora do real?
Ou tudo não seria apenas um jogo de vaidades, e ele, imbuído do ideal de um
artista purista, com pretensões de ser reconhecido por um “talento verdadeiro”
no rigoroso meio teatral, buscaria, no fundo, apenas alimentar um ego desmedido
no melhor conceito da mais pura vaidade humana? Queremos acreditar que a
primeira hipótese é mais fidedigna ao que o filme procura mostrar, ainda mais
se tomarmos em consideração a escolha do romance eleito para a formatação da
peça teatral. Carver é um autor respeitado por sua seriedade, na medida em que
faz da literatura um contínuo “chamamento” à consciência da real condição
humana, repleta de fracassos, contradições, anti-heroísmos e cotidianos contra
a tradição da literatura comercial, que vende belos sonhos em pacotes bem
embrulhados, como comprimidos para dormir. Não fosse pela “escolha” do tema e
autor, a difícil trajetória do personagem a partir do momento em que o filme já
se inicia numa dinâmica de ensaios em pleno andamento para uma peça teatral com
iminente estreia, seria facilmente derrubada em face de tantos obstáculos.
Falta de dinheiro para produção, falta de apoio midiático, falta de crítica
favorável, dificuldades com o elenco, inseguranças de ordem pessoal e afetiva,
enfim a superação de tamanhas dificuldades para continuar remando contra a
corrente do conformismo, do show-bizz, da alienação e acomodação, a corrente do
“deixa tudo como está”, dão claramente mostras de que não se trata apenas de um
projeto ególatra, ou se uma ponta disso puder existir, não maculará de toda
maneira o resultado prático de sua intervenção no mundo real. O “sem-sentido”
do mundo, da vida, do viver, é uma espécie de choque existencial para o
protagonista, o historiador Roquentin, que a partir desse momento, passa a ter
em nova perspectiva o mundo humano que o rodeia. Dotado de uma agudeza de
percepção extraordinária, percebe a partir daí como o mundo cotidiano é uma
espécie de falsa questão posta à mesa. Em vez de se digladiarem com problemas
reais do viver, as pessoas, tanto individualmente quanto em classes,
instituições, etc, são tomadas por uma total cegueira a respeito de si
próprias, seus valores e seu estar-no-mundo numa espécie de desespero para que
tudo , o mundo, os ritos diários e suas próprias vidas possam ser dotadas de
algum sentido. Roquentim despreza esse sentido artificial, porque baseado em
meras convenções que, ao passo em que alijam a humanidade da capacidade de ver
a vida de fato, levam-nos como rebanhos tocados em direção a lugar algum, ainda
torna impossível á humanidade progredir de fato porque a simples ciência de
como tudo realmente é, de como as coisas realmente são, se forem alijadas de
sua mera aparência, poria por terra o mundo humano na forma como é
convencionalmente conhecido.
Roquentim
não “planeja ver” isso, ou mesmo traça como objetivo de vida se tornar o
crítico dos costumes, mas à medida em que sua experiência de vida o permite
aprofundar-se nas questões humanas, ele é tomado por esse sentimento como uma
espécie de fulguração. Um lampejo forte de consciência que o acomete
inicialmente em situações específicas, em lugares públicos, e depois aos poucos
vai se firmando à medida em que tal estado de humor repete-se constantemente,
até que ele identifique na sensação de náusea o exato momento em que consegue
“ver” o mundo sem sentido. Vê finalmente que todo sentido é algo inventado, e
as pessoas são alienadas porque vivem essas vidas reificadas sem tomar ciência
de que é assim que ocorre. O resultado mental supostamente decorrente de tal
sensação física, emocional e existencial experimentada no cotidiano após essa
descoberta é de um total niilismo, porque ainda não é possível ao personagem
saber o que fazer com esse conhecimetno depois que ele o acomete. Roquentim é
tomado de um profundo pessimismo realista sobre o mundo, sobre as relações
humanas, sobre o agir institucional, sobre as finalidades discursivas
atribuídas à vida humana. Tem a sensação corrente de que está tudo ao avesso, e
justamente por saber agora que não há um sentido, porque por um lado, o sentido
moral do mundo garantido pela visão cristã-espiritualista caiu por terra, e de
outro lado, a racionalidade científica que prometia um mundo melhor agora dá
mostras de sua total incompetência para melhorar, aumentar ou garantir a
felicidade e plenitude do homem no mundo, Roquentim procura viver conforme seus
próprios preceitos a partir de então.
Imbuídos desse espírito é que lançamos o foco sobre a arte, procurando
novos olhares sobre uma questão há muito colocada, pelo menos desde Platão
a Hegel, e que começou a tomar contornos
diferenciados em Schopenhauer e Nietzsche. Esses autores encontraram, cada um à sua maneira, respostas
diferentes para o problema da arte e sua relação com o homem e seu lugar no
mundo. Em Nietzsche, particularmente está a questão que se vincula ao
questionamento-chave nas entrelinhas deste ensaio: na resposta ao problema do
“trágico” da existência , em alguns momentos aquele autor sugere que ao homem
em geral é melhor não conhecer a verdade da vida, ou seja, a contingência do
mundo, a inexistência de um Deus benevolente, a presença do mal como
efetividade real e principal causador da “condição humana”. Nessa abordagem, a
arte poderia atuar como uma espécie de “fuga da existência por uma criação não necessariamente
ligada a nenhum tipo de verdade absoluta, mas sim um subterfúgio para que não
conhecendo a verdade cruel do mundo como ele de fato é, o homem não sucumba
definitivamente diante do terror. Em Sartre, identificamos parte do
questionamento na posição de Roquentin, em busca de algum tipo de “salvação”
pela arte, mas na continuidade dos trabalhos filosóficos de Sartre, outras
questões se colocam subjugando a primeira, uma vez que surge a necessidade de
revelação do “status” real do mundo, para que a partir daí, mesmo com tudo que
essa consciência signifique de terror, de pânico, de “Náusea”, o homem ainda
assim possa se enxergar como uma possível saída dentro do seu próprio mundo,
não atuando a arte nesse sentido como um “mascarador” do trágico, mas sim como
um necessário “revelador”, para que a partir dessa revelação ele jamais possa
se calar.
Se
em Nietzsche, o “papel” da arte , naquilo que se convencionou denominar de
“Arte trágica”, principalmente pelo estudo das formas de representação do teatro
na Grécia antiga, é um papel de reforço na superação do lado terrível da vida
através de um determinado mascaramento, um atenuante para que o homem consiga
ver outros valores além dessa terrível verdade, em Sartre o “papel” da arte
pode ser exatamente o contrário, no sentido em que ela pode ser um grande fator
de desvelamento das condições em que está posto o mundo real, propiciando
através disso, uma maior consciência do homem sobre o mundo, sobre o outro e
sobre a sua presença no mundo, o que
resulta na ideia de que é muito melhor ao homem “conhecer essa trágica verdade
do mundo”, do que ocultá-la de forma alienante
Iñarritu,
intencionalmente escolhe para a “peça teatral” que ora se ensaia, justamente um
autor que jamais poderia se enquadrar nos termos de permanência e inversão de
“lugar no mundo’, revelados por Mike, um propósito que também poderia ter sido
o mesmo de Roquentin quando se dispõs a
escrever um romance no final do livro “A Náusea”. Carver é mais realista e consciente no seu
papel de autor, criador, e não tem o mesmo sonho da suposta beatificação
eventualmente proporcionada pela arte, como propõe Mike, pois tem outra
concepção mais mundana da sua criação, bem como dos seus efeitos. A proposição
de Mike, embora fale apenas de si mesmo e seja esteticamente bela, relembrando
a pujante entonação de Artaud e possa soar, com todas as suas diferenças, como
a melhor fórmula artística do teatro desde Shakespeare, onde a representação da
vida é sempre maior que a própria vida, num olhar sartriano como exposto
através do livro “A Náusea”, se esse livro pode ser considerado uma visão de
autor, isso jamais será possível. Porque a peça, um exercício do imaginário
para criar além do real, cria personagens e tipos, e seu sentido, continuidade,
sua essência coesa e justificadora, embora possa ser também crítica, será
sempre um “análogo”, e jamais a própria vida em si. As contradições da vida
“aqui fora,” o real, as rupturas, os desafios, as dores e o sem-sentido da
coisa toda é tudo aquilo de que deseja fugir Mike, quando afirma que o seu
verdadeiro “ser” está no personagem, quando está no palco, e não na vida real
aqui fora, onde não se reconhece na dinâmica do mundo real.
A
nosso ver o escritor Carver também é um artista engajado, porque sua obra
pretende desvelar o mundo alienante e mistificado dos jogos de amor como
“coisa” ou “fórmula” definida, a ser praticada como nos manuais. O realismo de
Carver é uma ducha fria na proposta do “amor romântico”, por exemplo, ao eleger
a via do mundo como sua passarela. Isso
é representado, neste caso da peça que ora se encena, baseada no romance de sua
autoria, por um lado, pela sugestiva
proposta de estabilidade pueril do amor convencional e por outro, trazendo questões da ordem da
representação, sob a proposta ousada de novos formatos estéticos para a arte,
formato este que também desafia, por sua forma e intensidade, a alienante indústria cultural do
entretenimento.
O
filme de Iñarritu, afinal, é uma provocação, e apela aos sentidos do espectador
para que este construa sua liberdade de posicionamento engajado em um
determinado tipo de consciência do mundo. O diretor consegue de forma brilhante
conduzir o espectador por dentro do mundo dinâmico e neurótico da sétima arte,
utilizando-se da forma de metalinguagem para trazer uma reflexão não apenas
sobre o “fazer” cinematográfico mas uma analogia mais ampla sobre a própria
condição do homem no mundo, individual ou coletivamente. Sua câmera, que a maior parte do tempo traz
as cenas em tomada única, num só plano, ao mesmo tempo móvel e dramático, acompanhando o frenesi dos personagens no
trânsito entre palco e camarim, entre a rua e o palco, como metaforizando todas
as nuances da vida como ela realmente se mostra, expõe não só as estruturas-mestre do “know-how”
dentro da indústria cultural representada pelo cinema, nos mais diversos
aspectos: produção, financiamento, jurídico e direitos autorais, criação,
elenco, figurino, divulgação e crítica, mas principalmente, no que diz respeito
ao objeto deste ensaio, coloca questões fundamentais e mais abrangentes, talvez
universalistas que criam todo um quadro de interesse paralelo para a observação
fenomenológica e existencial. O filme
revela, a nosso ver, tomado em sua totalidade, muito do mecanismo de produção e
legitimação da própria vida humana na contemporaneidade. Na verdade, é o texto
que introduz o elemento caótico no filme, o elemento que faz o equilíbrio
superficial do mundo “exterior” massificado pela alienação ruir. É o autor ,
Carver, que de repente toca o personagem de Birdman, para que ele introduza uma
reflexão verdadeira no público através do teatro, esta sim a verdadeira arte
criadora, e não a repetição monótona de “Birdman” e o lugar comum do
super-herói, símbolo incapaz de permitir novas avaliações e reavaliações
reflexivas e necessárias sobre a vida. A imaginação pode “nadificar” o mundo, e
é como ela consegue ‘criar” algo que não está ali, saindo do “Em-si” estático,
que apenas espera interpretação. Existe a atividade criadora, dinâmica e
questionadora que se propõe mudar, mas tem que pagar um alto preço por isso. A
grande questão aqui é “o ser no tempo” contrastando com o “ser e nada”. Para
“Ser’, assumir sua existência definitivmente ,
e em Sartre isso implica num grande esforço de consciência e ação no mundo,
é preciso também que haja em contrapartida a disponibilidade do tempo, que como
o espaço, é inteiramente subjetivo. Para uma civilização composta por homens
“sem tempo”, essas pessoas jamais existirão de forma autêntica, pois jamais
assumirão sua verdadeira condição ativa e criadora na vida. A liberdade para
elas, em consequência, também existirá de fato, embora exista sempre em
hipótese, em potencial, como condição fundadora do homem. Seguirão sendo para
sempre escravas de suas rotinas, cercadas por trevas numa imensa cegueira
acerca das reais perspectivas do mundo, do viver. Birdman coloca em termos
metafóricos as duas situações em cena: de um lado, o super-herói, “Birdman”,
que encerra em si a extinção de todas as reflexões e da busca por qualquer
sentido do mundo. O sentido já está dado, acabado, é um mundo de viventes
passivos cuja superação só pode ser alcançada no cotidiano por um extra=humano,
um super=humano, um super-herói. A necessidade que o protagonista tem de matar
o seu próprio personagem existe porque somente assim conseguirá introduzir o
outro elemento, trágico, da peça teatral. A saída do mundo banal, cotidiano,
não pode ser o apego a qualquer projeto, mas deve ser um projeto que realmente
enfrente o niilismo, a náusea, que busque perspectivas, senão também torna-se
mero passatempo, mera alienação. O “Engajamento” pressupõe atitude ontológica
do “Para-si” ao se colocar no mundo como projeto, não pode ser qualquer
projeto.
A
METALINGUAGEM em “BIRDMAN” E SEU PARALELO COM O MOVIMENTO DO
“PARA-SI-PARA-OUTROS” SARTRIANO.
Em
Sartre, o movimento do “Ser-para-si” com
relação ao “Em-si” ou ao “Ser-para-outro” é semelhante ao que faz o recurso
instrumental e narrativo da metalinguagem, no filme em observação. O para-si ,
ao colocar seu objeto, precisa necessariamente estar à presença do em-si, para
que através dessa relação a consciência do mundo se forme, e simultaneamente
precisa estar à presença do outro, para que ele próprio tome consciência de sua
subjetividade. Tal movimento é idêntico ao que realiza a metalinguagem, ao por
seu objeto em dois espaços, no filme em questão. No primeiro , o movimento
análogo propiciado pela metalinguagem coloca um enredo crítico e denunciador
das engrenagens do grande cinema, sua ganância de lucro fácil e suas fórmulas
milionárias que repetem formas sem conteúdo, Portanto, exibe seu objeto pelos
análogons em movimento (atores, cenários, trilhas, textos), apelando fortemente
ao espectador no intuito de revelar a
construção ou de certa forma a “desconstrução” da cena cinematográfica. Mas no
segundo, ainda através da metalinguagem, o filme também propõe a visão do
cinema pelos olhos críticos do teatro, estabelecendo um diálogo produtivo entre
as duas artes naquilo que cada uma tem como elemento próprio, porque o que se
pretende encenar (retratado pelo filme) é de fato uma peça teatral, que faz
migrar todo o elenco, a produção, o roteiro e propósitos da sétima arte para o
teatro durante um instante, mas ainda assim figurados em última instância pelo
próprio cinema, que é o veículo pelo qual a trama vem á tona para o espectador.
Tomando as lentes de Sartre de empréstimo como leitura privilegiada desse
movimento, considerando o recurso de metalinguagem como analogia ao movimento
do “para-si” “para-outro” sartriano, na medida em que ela também põe seu objeto
como desvelamento na presença do olhar do outro, construindo sua existência a
partir daí e colocando o resultado- filme “Birdman” como objeto desejável a
partir de uma postura “engajada” na sétima arte. A partir do surgimento e bom
uso dessa metalinguagem que age como “para-si” no desvelamento do fenômeno,
temos vários momentos onde essa leitura reveladora nos pode conduzir.
Um
primeiro momento de revelação cristalina acerca dos mecanismos que fazem a
engrenagem da indústria cultural funcionar, e qual é o seu principal
combustível. O filme evidencia o interesse geral da indústria cultural na produção rasa de conteúdo, encorpada pela
infinidade de efeitos especiais(característica inerente dos filmes de
super-heróis, tomada como exemplo) escolha de atores e atrizes com padrão
físico desejável e uma divulgação massiva contando com aliados espalhados pelas
mais diversas mídias em sintonia, e alguma omissão ou ajuda indireta de parte
da crítica especializada, sempre utilizada como legitimação da força do
“stablishment”. Ora, o que é afinal, a propagação e difusão massiva do filme de
super-heróis? Que valores representam, que posturas preconizam para o homem
diante do mundo , e “Quem” é o
super-herói, afinal? Alguém que pode eventualmente ter surgido como todo homem
no planeta Terra ou mesmo fora dela, mas que de todo modo, para quem os
problemas humanos corriqueiros estão há muito superados, porque algum ou alguns
super-poderes o colocarão sempre em condição de total superioridade com
qualquer humano na direção de uma possível solução. A sua condição na Terra, no
mundo, está dada, e de pronto, já resolvida. O humano, ao contrário, é falível,
mortal, não tem poderes extra nem a determinação anormal e imbatível de “fazer o
bem”, uma vez que sua própria ética é sempre variável, histórica e por isso
sujeita às instabilidades dos respectivos contextos políticos, morais e
circunstanciais. São antípodas, por fim, o super-herói e o humano. O cinema,
quando alimenta a “ viagem” massivamente na forma de produto raso da indústria
cultural que lota as salas em torno do mundo apenas como entretenimento sabe
dessa condição e sabe do efeito que ela provoca, mas se importa apenas com o
lucro, e não com o impacto negativo desse tipo de alienação sobre a vida das
pessoas. Do outro lado da relação, há também as pessoas, que aceitam ser
cooptadas e que se dirigem a um cinema única e exclusivamente para “fugirem” da
banalidade e da complicação de suas dramáticas vidas contemplando uma tela grande
de cinema com uma lata de “coke” na mão
e um pacote gigante de pipoca na outra, curtindo alguém geralmente bonito que
tem uma capa ou asas e além de escapar ileso de tantos tiros, raios e
violências, ainda consegue angariar a simpatia amorosa da mocinha enquanto através de uma imanente alma boa e um
espírito sempre ético, doar o bem á humanidade. A crítica mais virulenta
encontra fundamentos no simples fato de constatar a existência do
entretenimento, de modo geral? É óbvio que não. As atividades lúdicas,
recreativas ou de fuga são parte integrante da história humana. Contudo, se
esse perfil cultural passa a se tornar dominante em uma dada sociedade, e se
por trás ainda dessa forma específica de produzir em larga escala determinados
valores em detrimentos de outros, determinadas “verdades” em detrimento de
outras, a partir desse instante é que se coloca a maior urgência e imperativo
do olhar crítico, como forma de ampliar o olhar do homem e da sociedade sobre
aquilo que em última instância os constitui.
O
segundo momento de relevância para nossa observação está bem representada no
papel do personagem Mike (Edward Norton), quando afirma que no palco, quando
atua, ele é ele mesmo, e ao contrário , na vida real, “lá fora”, ele se perde. Diante da “Náusea”, ou seja, diante da
pressão do mundo que o coloca contra a parede com suas dores, sua contingência,
sua descontinuidade, Mike responde
negativamente, porque busca a fuga na arte dramática como saída. Uma saída
alienante, portanto, repleta de má-fé.
O
terceiro elemento, que revela o verdadeiro interesse do diretor ao legar essa
fantástica obra cinematográfica, foi a escolha de Carver para autor a ser
adaptado para o teatro. Carver é um autor engajado, e demonstra esse
engajamento ao narrar toda a complexidade da vida humana, real e factível,
utilizando-se das relações afetivas e amorosas para isso. Da mesma forma, o
filme pretende o denunciar o funcionamento, o conteúdo e as estratégias da
grande indústria cultural. Se Inãrritu, no aspecto geral do filme, é um
desvelador, um crítico poderoso porque traz a lume todas as engrenagens
importantes que movimentam um dos aspectos mais importantes da nossa vida
coletiva, a escolha acertada de Carver como livro-texto, no detalhe,
olhando-se no particular de sua obra em questão “Do que falamos quando estamos
falando de amor”, se dá porque o escritor também faz isso de forma brilhante
com um texto dramático que rasga todas as aparências para falar das
afetividades e conflitos humanos de uma maneira realista, crua, não velada.
Ambos, Carver autor falecido em 1988 romancista, literato, e Iñarritu,
cineasta, compõem uma parceria atemporal e engajada com o claro intuito de
tocar o espectador do teatro, do cinema, o leitor, o humano contemporâneo que
habita as ruas ou as casas pasteurizadas e assépticas aonde só chega o
entretenimento viciado e fugaz em vez de uma perspectiva artística capaz de
resgatá-los do mundo alienante composto pela média das criações culturais em
nosso meio.
O
quarto momento é representado pelo próprio personagem Riggan, cuja atitude
talvez seja a mais complexa e contraditória dentre as personagens. Ele é
ambíguo e paradoxal em suas atitudes, quando de um lado é forçado pelo mundo do
“show-bizz”, mas por outro pretende seguir firme naquilo que no presente abraça
como seu “projeto” e justificativa de nova vida. Uma cena na metade do filme
reflete de forma exemplar toda a contradição e banalidade a que está sujeita a
criação artística, quando sugere a fragilidade humana diante do poder da
crítica e do poder da indústria cultural. Um passeio inusitado do ator, de
cuecas, nas ruas de N. York na proximidade da Broadway na noite de pré-estréia
da sua peça, pois uma vez tendo saído um instante para fumar do lado de fora do
teatro e impossibilitado de retornar pela porta lateral do estúdio, termina
perdendo seu roupão e para retornar ao estúdio tem necessariamente que passar
no meio do público, sendo ridicularizado
no caminho de volta, filmado por diversos celulares e enquanto entra novamente
no teatro pela porta da frente, ainda seminu, é visto como “personagem”, e é
aplaudido porque todos pensam que ele está
intencionalmente representando algum improviso. Portanto, de um lado,
Riggan é um decidido e vitorioso dono de sua nova liberdade, ao resolver
enfrentar tudo e todos em torno de um novo projeto de vida, recusando com isso
a fazer parte do “Stablishment” que procurava aniquilar sua iniciativa
seduzindo-o para o retorno ao papel do super-herói que no passado garantiu boas
bilheterias. Mas Riggan, mesmo tendo tido uma entrada brilhante nessa nova vida
ao demonstrar a força de sua superação pessoal frente ao problema do mundo,
buscando autenticidade e projeto no lugar onde todos procurariam apenas
usufruir de uma fama fácil, contradiz-se fortemente no final do filme, aproveitando a atitude,
uma deixa idêntica do personagem que interpreta na peça em andamento, quando
tenta cometer suicídio em pleno palco,
na frente de centenas de espectadores. O personagem de Carver, na montagem do
romance que ora se encena no teatro,
tenta se matar com um tiro de revólver na cabeça por conta de sua mulher que o
abandona depois de sofrer maus tratos por muitos anos. Mesmo ficando seriamente
ferido, não morre no mesmo instante, mas passa ainda alguns dolorosos dias no
hospital antes de morrer. Contudo, no caso da tentativa de suicídio de Riggan,
da mesma forma um suicídio mal sucedido cujo tiro apenas atinge seu nariz, não se sabe exatamente qual o motivo
ou os motivos imediatos para o ato. Há várias questões do mundo real que poderiam
ser uma provável causa. O filme mostra Riggan bastante angustiado depois de uma
calorosa discussão com a importante Crítica do jornal “NYT“ (interpretada pela
atriz Lindsay Duncan) que o humilha dizendo que seu talento é medíocre, além de
ameaçá-lo com uma crítica tremendamente negativa no dia seguinte à estréia.
Paralelo a isso, o narrador oculto na figura do homem-pássaro continua tentando
seduzi-lo a uma volta ao passado, suas finanças vão mal, assim como seus
relacionamentos pessoais. Seu advogado e produtor o avisa de problemas que
surgirão com processos referentes a um ator acidentado em cena. A sequência
pré-tentativa de suicídio sugere, enfim, que Riggan (simulando um esterótipo
realista do artista bem intencionado que não consegue subverter a ordem
pernóstica da grande indústria cultural com seus objetivos mais “puros” e
autênticos) em algum momento desistiu do seu projeto engajado de enfrentamento
do mundo, e depois de ter sentido em algum momento de sua vida o despertar-para-o-mundo no momento fundante
propiciado pela Náusea, finalmente ele capitulou diante do caos e do absurdo,
ao tentar fazer cessar seus próprios esforços e a existência da roda de Sísifo com a sua extinção.
De
todo modo, vemos a saída pelo suicídio, assim como a saída mais fácil de Mike
ao “entregar-se” como ser humano ao papel enquanto atua, a ponto de admitir que
sua vida real é a vida vivida no palco, ambas como subterfúgios para não
enfrentarem as verdadeiras questões da mundanidade. Ambos os personagens, que
juntamente com o escritor Carver, que aparece somente no texto que se ensaia na
respectiva peça, são a nosso ver, a tríade fundamental da temática de cunho
existencialista levada á tela pelo diretor Iñarritu. E em algum lugar do
caminho, os dois primeiros, Mike e Riggan abrem mão dos seus projetos e da sua
liberdade para, em vez de superar a tragédia do viver através de uma forma de
arte com maior plenitude e enfrentamento, entregarem-se cada um a seu modo. Um
pela alienação, outro pelo suicídio. Está claro, numa analogia sartriana que
ambos , em algum momento, tiveram individualmente o contato com a sensação
existencial da náusea, e diante do
terror da vida, escolheram a anestesia, o que revela uma atitude de má-fé e
livre escolha de tentar abdicar da própria liberdade, o que de resto seria
impossível segundo o conceito de “liberdade absoluta” do filósofo. O detalhe
relevante é que, quanto a Riggan, uma vez que de fato não se matou e seu ato em
cena foi, posterior e inusitadamente considerado pela mesma crítica e pela imprensa
que o enxovalhavam como “algo genial”, um inesperado e virtuoso final para uma
brilhante peça, tudo se inverte, e ele próprio, ao contrário do que se
esperava, e ao contrário do que a leitura mais aprofundada e compreensiva do
conto hermético de Carver no faria crer, agora virou novamente “pop-star”,
retornando aos noticiários como um personagem Cult, venerado em seu novo
“momento”. Importante frisar que isso não ocorre pelos méritos intrínsecos da
adaptação da obra do escritor Carver, e nem sequer é mencionado o trabalho e o
empenho geral e do mérito na montagem de uma peça teatral na Broadway, com
todas as previsíveis dificuldades da empreitada. Riggan retorna ao estrelato
por um simples acidente, porque além do
seu gesto de tentar matar-se em pleno palco ter se tornado ‘cult’, algumas
outras atitudes, falas e situações de sua vida pessoal transformam-se em
“viral”, um termo contemporâneo para destaques midiáticos com grande tendência
de público nas redes sociais. Como reiteração dessa ambiguidade que no fundo
revela o abandono do projeto original de engajamento e enfrentamento, logo em
seguida, ainda no hospital convalescendo do tiro no nariz, ele, ciente do seu
novo “sucesso”, resolve sair pela janela “voando”, como nos velhos tempos de
“Birdman” sugerindo a leitura possível de um retorno ao mundo de super-heróis,
que finalmente sairá vitorioso diante do fracasso do novo projeto. Uma metáfora
possível para o “grande final” abre o espaço para se questionar a noção de
‘sucesso’, ou de “projeto bem-sucedido” da forma como se entende a expressão em
nosso mundo. Se, por um lado, aderir à fuga, utilizando a má-fé como guia para
legitimação de um “mundo perfeito”, previsível e paradisíaco, configura-se
atitude voluntária de alienação diante de uma consciência que nunca se afasta,
contudo o enfrentamento e a consequente exposição das estruturas reais do caos
que a tudo governa podem se mostrar duros demais ou até mesmo insustentáveis ao
revelar simultaneamente a angústia fundadora de todo o existencialismo que
senão historicamente, pelo menos por proximidade temática já esteve presente
desde Agostinho, passando por Déscartes, Pascal, Kierkegaard e Nietzsche, até
atingir de forma tão pertinente e visceral a contemporaneidade de Heidegger e
Sartre? Convergindo com o existencialismo sartriano, concordamos com a noção de
que existe de fato uma “derrota”, se após a
instauração da consciência reveladora do ser-no-mundo, a atitude humana
persiste em desviar-se para a alienação, que seja ativa ou omissiva. Mas por outro
lado, em que medida a ação afirmativa e o chamamento do projeto para a ação
tendo em foco a busca da sua autenticidade traz, por si só, qualquer garantia
de um tipo de “vitória” para contrapor-se à “derrota” declarada da primeira
via? Que tipo de “Vitória”, se existe, será essa? É o que tentaremos expor em
seguida, à guisa de conclusão deste Ensaio.
O
CINEMA ENGAJADO : A ARTE CONTRA O ABSURDO DO NIILISMO e o PARADOXO DO “FRACASSO
COMO POSITIVIDADE”
Para
Sartre , o sentimento da “ Náusea” é o primeiro momento de revelação do que o
mundo realmente”é”: contingência, caos, mundo sem-Deus, sem razão e com o homem
jogado à própria sorte. Por isso, apesar do grande impacto sobre o vivente que
assim se “liberta” dos condicionamentos externos, a Náusea é por si só um “status” afirmativo
dentro da escala da vida, na medida em que é um tipo de despertar de um longo
sono narcótico. Esse despertar, se for encampado por um projeto que seja
assumido de forma autêntica, será criador, através de uma nova consciência de
estar no mundo, e nesse contexto a vem a ocupar
um lugar essencial, pelo espaço privilegiado que ocupa como linguagem ao
tornar possível o surgimento e intensificação das intersubjetividades.
Entretanto, se não houver essa
transposição a partir da Náusea, as opções são “alienação” pela pura má-fé,
quando o “para-si” mente para si mesmo, em vez de assumir sua consciência no
tempo e no mundo como projeto, e pretende assim fingir que nada acontece, como
sugere o destino de Roquentin . Ou, se o sujeito ciente da transitoriedade e do
caos que regem a vida, se acovarda, se desespera, existe a possibilidade ainda
de se configurar um estado de “absurdo”, se tudo isso resvalar para o niilismo
puro e simples da omissão, da não-tomada de posicionamento, uma vez tendo
conhecido aquilo que é, o ser do mundo. Essa “não-tomada” de posicionametno,
por si só, dentro da temporalidade presente, uma vez que o passado tomado
equivocadamente como condicionamento e o futuro tomado como perspectiva lógica
de ordenação previsível são nada mais do que fugas do presente, possíveis
escapatórias para o “não agira agora”, tudo isso representa involuntariamente
uma tomada de posicionamento indireta, na medida em que o fazer humano, suas
nuances, suas opiniões, ações e omissões não podem escapar à própria história.
Agindo ou omitindo a respeito de sua nova ciência da vida, essa atitude se
configurará numa voz deliberada assumindo ou negando o projeto como viabilidade
no caminho do desvelamento e posteriormente no seu enfrentamento, uma vez que a
posição do homem diante do mundo é
necessariamente de estranhamento e conflito, na sua origem.
Queremos propor uma abordagem mais extensiva do conceito de “absurdo” do que o proposto por Sartre em “A Náusea”. Na sua referência, Sartre praticamente reduz a “Náusea” e o “Absurdo” a uma mesma situação de contingência, caos e imprevisibilidade do mundo, quando o personagem Roquentin é tomado pelo sentimento de mundo revelador enquanto está sentado num banco de praça, ao lado da castanheira mais famosa da história da literatura.
“(...)Mas desejaria fixar aqui o caráter
absoluto desse absurdo. Um gesto, um acontecimento no pequeno mundo colorido
dos homens não é jamais senão relativamente absurdo: em relação ás
circunstâncias que o acompanham. Os discursos de um louco, por exemplo, são
absurdos em relação à situação em que este se encontra, mas não em relação ao
seu delírio. Mas eu, ainda agora, tive a experiência do absoluto: o absoluto ou
o absurdo. Aquela raiz – não havia nada em relação a ela que não fosse absurdo.
Oh! Como poderei fixar isso com palavras? Absurdo: com relação ás pedras, aos
tufos de relva amarela, à lama seca, à árvore, ao céu, aos bancos verdes.
Absurdo, irredutível, nada – nem mesmo um delírio profundo e secreto da
natureza – podia explicá-lo. Evidentemente, eu não sabia tudo, não assistira à
germinação nem ao crescimento da árvore. Mas diante daquela grande pata rugosa,
nem a ignorância nem o saber importavam: o mundo das explicações e das razões
não é o da existência. Um círculo não é absurdo, é perfeitamente explicável
pela rotação de um segmento de reta em torno de uma de suas extremidades. Mas
também um círculo não existe. A raiz, ao contrário, existia na medida em que eu
não podia explicá-la”. (Sartre J.-P. , A Náusea, 2011,
p. 173).
Entretanto,
vemos uma contradição nessa abordagem comparativa. A grande revelação da
Náusea, é exatamente do caos, da contingência do mundo e da não necessidade de
qualquer ordenação lógica, previsível, numa sentença: dos artifícios humanos no
esforço de criar sentido onde não há. Portanto, tal situação não pode ser, por
si só, em termos lógicos, equivalente à ideia de absurdo. Se a essência, a
forma real do mundo aparecer é essa revelada pela náusea, é portanto da
natureza do mundo ser caótico e imprevisível e dessa forma, resulta que
qualquer tentativa de mascarar essa realidade é que será absurda. É uma
evidente contradição lógica que a essência do mundo seja caótica e contigente,
como se descobre após o “toque” existencial e ontológico da Náusea, se ao mesmo
tempo consideramos que essa ideia é absurda. Ela não será mais absurda se
considerarmos que a partir do momento de revelação, o caos e a contingência é
que fazem o atributo daquilo que é, que definem sua essência, e não mais o
espanto por constatação de como é que ele deveria ser. Náusea reveladora e
absurdo, são, portanto, na nossa visão, divergindo do que Sartre propõe, no
precitado texto, conceitos e momentos diferentes da vivência no mundo.
Portanto, a nosso ver, embora reconheçamos que tal tema sobre o conceito de
“Absurdo” não está muito presente no autor de forma mais nítida, o que em parte
talvez seja consequência da analogia do conceito referido de que Náusea=
absurdo, entendemos que o “Absurdo” é na verdade o movimento humano onde o
“para-si” tenta velar de si mesmo , auto-enganando-se pelo recurso conhecido da
má-fé, ao construir uma ordem pretensamente estável e justificadora de um outro
mundo que por si só é um antípoda do mundo real. Ao passo que essa tentativa
revela, por si só, um tipo de “negação” da ciência da realidade agora
descoberta pela Náusea, ela é também uma tentativa niilista, porque não cria
valores reais, de desvelamento do real que possam vir a criar chances para o
enfrentamento de como o mundo é, mas permite o transpasse como mágica para um
mundo intocado e onírico onde tudo é justificado, onde o reino dos sentidos
está pleno de razões e a vida enfim pode se auto-acalentar sossegada sem o
incômodo de toda Náusea. Em nossa proposta de releitura, portanto, e no cerne
do enfrentamento do niilismo absurdo caracterizado pela falta da ação engajada,
colocamos a proposta da arte como um elemento privilegiado para ensejar a
tomada de consciência e a visão para potencial ação. A Náusea é , sim , como
preceitua Sartre, o grande momento revelador e fundador da angústia que tudo
instaura, mas o absurdo, se identifica na verdade é com o niilismo da “inação”
ou da “fuga” e não com a Náusea, quando esse absurdo na verdade advém da
postura humana relutante ao negar para si mesma a chance de mudar uma realidade
que prefere não conhecer, porque aposta num outro mundo intocado e feliz,
perfeito e repleto de razão, que agraciará seus adeptos da mesma forma que a
pílula azul mantém adormecidos os mortais que doam sua energia vital e orgânica
para as máquinas em “Matrix”, enquanto suas mentes navegam ricas e fluidas,
reproduzidas através de engenhosos programas de computadores que simulam a
realidade virtualmente.
Nossa
especial atenção na observação de “Birdman”, que recoloca em cena um artista
–ator-diretor engajado assumindo um projeto original de vida autêntica na
medida em que percebe finalmente a vida alienada , banal e fútil em que estava envolvido quando mergulhado no
show-bizz, pretende mostrar que essa atitude é verdadeiramente um ótimo e rico
exemplo da leitura Sartriana no que diz respeito à valoração de uma existência
autêntica e recriação do mundo pelo papel privilegiado da arte, uma vez que
Riggan , o protagonista, é um sujeito que traz para si um projeto de vida
desvelador através da pegada mais artística do teatro de autor em detrimento do
cinema de massas, superando o estado de Náusea, que é o primeiro momento da
consciência, sem cair no absurdo niilista de que “não é possível criar nada,
não adianta criar nada, uma vez que tudo é caos”, mas ao mesmo tempo não
representa a negatividade de uma vida acomodada e cega sob o conforto da
ignorância voluntária, camuflada de má-fé coletiva. Nesse sentido é que
“Birdman” se coloca entre a “Náusea” e o “Absurdo”, como uma proposta de
enfrentamento de toda narcose coletiva, na medida em que entendemos a Náusea
como o momento primordial e fundador da
angústia ponto-de-passagem para revelação do estado do mundo e do homem dentro
dele, e o absurdo, em consequência, divergindo no particular com relação a
Sartre que identifica esse conceito com o próprio caos do mundo, constatamos na
diferenciação pela atitude de inércia voluntária ou não, na busca da narcose
alternativa e persistente, que o absurdo de fato não é o mundo em seu natural
estado caótico, mas a construção de um olhar que procura mascarar esse estado
de contingência. Se a Náusea é a lente que enxerga o caos, o absurdo é a
atitude humana que procura velar essa visão.
O
filme em comento, ao enfrentar todos os contextos negativos interiores e
exteriores que sempre jogam contra quem realmente quer ser autêntico no árduo
terreno da arte, (uma vez que toda vida inautêntica é sempre mais fácil e
auto-resolutiva), Riggan, colocando em cartaz
uma peça teatral dramática e densa , que explora e aprofunda os
questionamentos em torno do tema amor para chegar ao cerne da existência humana
sobre o planeta, atua como um artista criador, no melhor sentido do que pensou
Sartre com alguma influência da tese Nietzschiana, decerto, mas com abordagem e
desfecho diferente, para o papel privilegiado que a arte ocupa em todo o
contexto de sua obra. Entretanto, é possível ver na condução provocativa do
tema pelo diretor Iñarritu, que tal projeto do ator-diretor personagem Riggan,
que finaliza-se na fuga pelo suicídio, assim como de forma semelhante a parte
final do romance “A Náusea” nos revela o protagonista Roquentin querendo
apostar na “fuga” da dor-de-vida através da criação de um romance, também mostra-se como “projeto falho” ao final.
Óbvio que não falhos enquanto “propostas reais” de trabalho autoral, porque
tanto o filme de Iñarritu quanto o romance sartriano são legítimas obras de
arte, em tudo que se propõem enquanto tal. Mas seus protagonistas ensaiam um
verdadeiro “fracasso” ao final de suas trajetórias, e esse fracasso nos parece
indissociavelmente vinculado à presença do para-si-para-outro no mundo, neste
caso citado como elementos de representação da literatura e da sétima arte,
respectivamente. Isso aparece de forma interessante na explanação de Bornheim:
“A conclusão geral a que chega a análise
de todos esses comportamentos é que nós somos devolvidos, circularmente, do
ser-que-olha ao ser-visto, e que não podemos sair desse círculo: qualquer que
seja a nossa atitude diante do outro, nossa relação se define como
instabilidade. Trata-se sempre do mesmo ideal impossível de captar
simultaneamente a liberdade e a objetividade do outro enquanto esta
objetividade determina o ser-para-outro. Vale dizer que outro não pode, a
rigor, ser apreendido. A tentativa de reconhecimento da liberdade do outro
termina por “constranger” o outro a ser livre a a paralisar minha liberdade.
Entende-se , então, a desoladora conclusão a que chega Sartre: “O respeito pela
liberdade do outro é uma palavra vã: mesmo se pudéssemos projetar o respeito
dessa liberdade, cada atitude que tomássemos em relação ao outro seria um roubo
dessa liberdade que pretendêramos respeitar”. (EM, p. 480). (Bornheim, 2000, 4ª reimpressão, 3ª edição).
O
fracasso proposital e provocativo, do ponto de vista da criação artística de
Sartre e Iñarritu ensejado tanto por
Roquentin quanto por Riggan representa, a nosso ver, a expressão do conceito de
fuga à natureza conflituosa do mundo humano. Contudo, há uma positividade nesse
evento. Revelar algo sobre o “para-si-para-outro” que ainda era desconhecido e
uqe não surge automaticamente, enquanto ainda se está às vésperas de
“embarcar’. Está claro que ambos os personagens ao final de suas respectivas
trajetórias “fogem” do mundo que os cerca, porque a permanência no engajamento
de seus projetos originais colocaria para eles necessariamente não uma vitória,
que seria o resultado imaginável e desejável para os “heróis virtuosos” da vida
real, que renunciaram à fuga e se propuseram o enfrentamento, mas um outro tipo
de derrota ao perspectivar, num segundo momento, acerca da relatividade e
fugacidade de toda ação humana, em razão da sua própria complexidade, da
historicidade, sua finitude e das inter-subjetividades que estão envolvidas,
além da real impossibilidade material de
, através de uma obra, uma imagem, um gesto, uma voz ou uma letra, poder
garantir, de “per se’, que os resultados aconteçam numa ordem favorável,
previsível e mecânica no sentido de cooptar o “outro” para seus projetos de
desvelamento do mundo. Com efeito, surgir como estímulo para outras
consciências, em busca da sua criatividade imaginativa ou espontaneidade, ou em
outros termos, cooptar de forma mais persistente o outro pode soar como coerção
ou constrangimento da liberdade alheia, e assim frustrar por via invertida e
não intencional o propósito original de toda ação engajada, ,mesmo que pelas
vias da arte, uma vez que é muito tênue o limite entre “solicitar a liberdade
do espectador’ e “conduzi-lo na minha direção”. Ainda na preleção de Bornheim:
“Da frustração da categoria
ser-para-si-para-outro surgem noções como pecado e culpa. O pecado original
procede de meu surtoe m um mundo em que há o outro. Diatne do outro eu sou
culpado; culpado porque, quando visto pelo outro, experimento minha própria
alienação; culpado ainda porqeu , quando olho o outro, eu o constituo como
objeto. Nada posso fazer pela liberdade do outro, pois qualquer iniciativa
nesse sentido se obriga a traatá-lo como instrumento e a considerar sua
liberdade como transcendência-transcendida. “Só posso atingir o outro em seu
ser-objeto” e, por isso, “sou culpado diante do outro em meu próprio ser”,
(EN,p. 481). A consciente constância do fracasso pode suscitar uma derradeira
atitude diante do outro: o empreendimento de sua morte. Esse comportametno se
eonctra na resignação fudnamaental euqe se chama de ódio. O ódio consiste no
abandono definitivo de qualquer empenho por realizar a união com o outro.
Quando odeio, afirmo minha liberdade como posição absoluta em face do outro.
Certamente, esse sentimento não chega a obliterar o reconhecimento da liberdade
alheia; ainda assim, o desespero faz com que o ódio só veja o outro-objeto e
queria destruí-lo. Ale´m disso, se a própria relação com o outro se denuncia,
em sua essência, como conflituosa, entende-se que o ódio não possa ser adstrito
a tal sitaução particular; muito mais, o ódio é ódio de todos os outros
concentrados num só. E realmente ,o seu projeto inicial pretende suprimir as
outras consciências. Mas o ódio não passa de uma paixão inútil. Mesmo se todas
as consciências fossem destruídas, elas continuariam a me perseguir do fundo do
passado. Com efeito, o ódio não permite sair do círculo. Ele representa a
última tentativa, a tentativa do desespero. Após o fracasso dessa tentativa, só
resta ao para-si integrar-se no círculo e deixar-se oscilar entre as duas
atitudes fundamentais (EN, p 484). (...) A experiência do nós não representa um
enriquecimento e nada modifica nos resultados obtidos pelas análises
anteriores. “É, pois, em vão que a realidade humana procuraria superar esse
dilema: transcender o outro ou deixar-se transcender pelo outro. A essência das
relações entre consciências não é o ser-com, é o conflito” (EM, p. 502). (Bornheim, 2000, 4ª reimpressão, 3ª edição, p.
101-109)
O
andamento “bem-sucedido” aos olhos do outro, acerca do projeto em que ora me
engajo não garante absolutamente que ele seja bem sucedido aos meus próprios
olhos. E ainda, se fizermos a necessária contextualização numa cultura
histórica , onde ser “bem-sucedido” significa em última instância ratificar o
modo de ser de um sistema que por princípio deveríamos enfrentar ao escolhermos
o seu desvelamento pelo engajamento, fracassar assume visceralmente um valor
positivo, pela negação estrutural do valor cuja expectativa alimentava. É
portanto, um evento paradoxal. Nesse fracasso, que é um fracasso não do
indivíduo, mas da coletividade, está inserido o para-si-para-outro como algoz e
criador. Por isso, por definição a “escolha” pelo mundo real, atitude inerente
a todo engajamento, traz todo o peso do mundo em seu bojo, porque como no dizer
de Sartre, em “Que é a literatura?” cada escolha individual é simultaneamente
sempre uma escolha universal da própria humanidade, em alguma direção.
Roquentin e Riggan, ambos já haviam ultrapassado a etapa em que um determinado
evento-Náusea os colocou no centro do mundo, com a visão aberta, “jogados”. Uma
vez iniciada a caminhada, antes que ela
chegasse ao fim, ambos abandonam o projeto pela fuga, numa configuração que se
confunde a desistência do engajamento essencialmente com o absurdo que é o
niilismo, a ausência de criação de novos valores, uma vez descoberta a natureza
caótica, sem-sentido e contingente que é
o mundo. Com efeito, se na ação engajada, eu faço uma escolha, ela não é
jamais somente minha. Escolhendo a mim, escolho também ao outro , no mesmo ato,
mas o grande problema que se coloca ao final e´ saber até que ponto minha
presença no mundo, minha ação revelada agora por minha arte, será esse eterno
“apelo” ou “solicitação” à espontaneidade da imaginação e da própria liberdade
do engajamento alheio num projeto de desvelamento que poderíamos considerar não
um paraíso harmonioso onde a vontade os
interesses de todos os homens convirjam, mas um “ser-com-nós-em-permanente-conflito”
administrável, ou será apenas mais uma doutrina dentre tantas outras a
constranger cegamente o outro em sua liberdade, cooptando-o á força para mais
um projeto do barco em que ora partimos, “embarcados”, como no dizer do sábio
Pascal, mas em cujo fundo, ora vendado a nossos olhos, repousa um enorme rombo
no casco, que a meio da viagem fará soçobrar a embarcação quando a ilha que
intentávamos alcançar já estava tão perto dos olhos? O indeterminado da vida, o
indeterminado do homem, não permite que haja uma resposta satisfativa ou ação
conceitual oriunda desse questionamento, sem que se esteja fazendo
necessariamente um tipo de doutrinação castradora da liberdade, mas poder ao
menos colocar a questão, enquanto se contempla a experiência humana na
história, desde as “Cavernas de Chauvet”, dançando com aquela humanidade
pré-histórica em volta das fogueiras, junto com suas sombras e seus animais na
parede , ou passando pelo “Teatro trágico grego” como mais um cidadão da antiga
Hélade escondido num dos cantos da arquibancada enquanto as máscaras e a
representação das forças da natureza ou da comédia cotidiana traziam ao seu olhar a força e a multiplicidade morfológica dos
deuses com toda a sua ira ou sua volúpia,
até a contemporaneidade mais simples da sala de um cinema perdido lá no
meio dos confins do nada, onde toda a evocação da vida, da morte, das dores e
prazeres possíveis se revelam diante de tantas consciências em ebulição quando
a luz se apaga e as cortinas se abrem, deixando a voz e a imagem da tela soar
seus cantos de sereia para que nossa imaginação sedenta possa ‘embarcar’, tudo
isso é uma experiência digna em sua plenitude e afetividade capaz de mostrar de
forma direta, sem necessidade de qualquer outra explicação ou apelo proposicional
no terreno discursivo, toda a beleza e o estranhamento de ser gente-no-mundo e
estar ao mesmo tempo construindo e sendo construído exatamente naquele instante
irrecuperável no tempo em que o próprio tempo se faz. *****
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BIBLIOGRAFIA
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Paulo: Martins Fontes.
Bornheim, G. (2000, 4ª reimpressão, 3ª edição). Sartre.
São Paulo, SP: Perspectiva.
Carver, R. (2009). Iniciantes. São Paulo,
SP: Companhia das Letras.
Morris, K. G. (2009). Sartre, Introdução.
São Paulo, SP: Artmed.
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Janeiro: Nova Fronteira (Para Coleção Saraiva de Bolso).
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Humanismo. Petrópolis, RJ: Vozes.
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Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
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Petrópolis, RJ: Vozes.
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São Paulo, SP: Ática.