Amor Fati



"Escrever é lançar garrafas ao mar..." (Cortázar)

Esses temas importantes que volta e meia "batem", e nos últimos tempos surgiram bastante em razão do "Mundo livros'. Reflexos de conversas de e-mails com um jovem amigo aspirante a escritor. Pensei em pontuar 3 coisas (que na verdade são quatro)coisas a respeito, que talvez ajudem mais alguém (ou não):

1) Escrever não é hobby nem "coisa de meio expediente", e apesar das correntes dificuldades e situações que a vida diariamente nos impõe a todos, ao lidar com as duas maiores e mais exíguas riquezas, tempo e recursos materiais ( e talvez tenhamos isso em comum com diversos outros tipos de artistas num país que tem sérias dificuldades em fomentar a cultura) escritor mesmo é aquele se dedica de corpo e alma à sua atividade, não importa o que você faça no resto do tempo pra "ganhar a vida" e patrocinar sua estante. Portanto, escritor é profissão sim, e merece respeito, autonomia e reconhecimento.

Para aquele que se propõe essa difícil e bela missão, não há dias ruins nem feriado. Um escritor, mesmo sem bloquinho e caneta nas mãos, vive eternamente textos em seu próprio espírito. Alguns com final feliz, outros não, como a própria vida. Um escritor está sempre escrevendo mesmo quando está lendo, e o próprio processo de seletividade do que lê, já é um tipo de escrita subliminar sobre como pretende rascunhar seu destino. Decidir o que ler é, simultaneamente, eliminar aquilo que não se quer ler, e isso é arte valiosa, valorativa e de formação. Um escritor escreve também dormindo, em sonho ou pesadelo, escreve quando cospe, quando ri, quando chora, quando assiste a um filme, quando caminha no parque, quando adoece, quando ama, quando odeia, quando desiste do mundo ou quando abraça a vida, e quando desesperadamente gasta muito mais do que pode mensalmente para abarrotar suas estantes de livros. Não, neste caso não é consumismo. É vida e necessidade imperiosa de ter alimento para frutificar, como as árvores.

2) Ser escritor é ter a consciência de não acabar nunca. Não acabar, enquanto processo de formação (me lembro muito dos padrinhos Nietzsche, Pessoa e Montaigne quando penso nisso), simplesmente porque nunca termina enquanto atividade humana, imperfeita e falível, sujeita a todo tipo de erros existenciais, erros de abordagens, erros ideológicos ou de contextos históricos que duras e raras vezes são perdoados, quando o são. Não acaba nunca ,também, porque todo traço, toda história perpetua-se pelo devir, e contagiará novos pontos, num círculo infinito. E a literatura, como toda arte, também vive de sua incompletude e imperfeição. Embora haja esses grandes autores que nos inspiram e a quem devemos tanta gratidão, peca e perde quem acha que o pacote em algum momento será fechado, e tudo o que precisava para dar conta de qualquer missão estará pronto e acabado uma hora. Não está, nunca estará. Se escrevi um poema ou uma crônica um ano atrás, hoje brigo com o escritor em mim que escreveu aquilo, e tantas vezes já não me reconheço nele, porque quem aqui agora vos escreve já é outro depois de outras águas do mundo. Não se completa, pois ,a tarefa, e jamais será. E ao contrário do que possa parecer à primeira vista, depois de passado aquele desconforto do estômago, e o mal-estar típico de todas as civilizações, é dessa inconstância que a beleza da coisa surge, com tempo e paciência. É da incompletude e da necessidade de preencher esses imensos e inesgotáveis espaços vazios que surge nosso esforço, às vezes tão bem sucedido, ás vezes fracassado, ricos de um fracasso renovador e gerador de novas necessidades, aquilo de que vive a arte, e talvez sobretudo a literatura. Lição que digo pra mim mesmo, todos os dias: se é pra ser concreto e objetivo na atividade, na profissão, ou na vida: seja contador, não lide com a escrita.

3)Sobre motivações e o porquê de ser escritor. Muito contato recente com galera jovem, e contato renovador com os mais experientes, cada um com ricas vivências. Só posso falar de mim. O "momento no tempo" onde senti com muita força que, de fato, não apenas queria continuar rabiscando meus textos, mas pensei que talvez esses rabiscos pudessem ser interessantes a mais alguém , que isso pudesse de alguma forma iniciar um outro tipo de comunicação que no meu cotidiano não havia, foi quando me caiu nas mãos, muitos anos atrás, "Cartas a um jovem poeta", de Rilke. Não e incomum a situação, porque muitos outros autores já se referiam a este livro, mas como cada experiência é sempre única, eu revelo todo meu encantamento, a surpresa, a paixão súbita por esse olhar mágico sobre a arte da escrita, como eu nunca havia visto antes. Se Rilke, à época, já era um reconhecido gênio da poesia, o "desprotegido" e fraterno , além do grande espírito de compreensão humana e amor à vida que se desprendem dessas páginas são, de fato, únicos. Se nessa ocasião, já no terceiro ano de faculdade, eu me impregnava de leituras "sérias", compromissos e poses,como boa parte dos acadêmicos do mundo inteiro, este livreto epistolar me desarmou por completo, por sua simplicidade, objetividade e pelo grande amor à vida e à humanidade que dele se desprende(sim, escrito na forma de "cartas", como diz o título, esta arte tão esquecida e vilipendiada nos dias atuais, um dia já foi levada a sério, e alcança forma magistral nessa obra) me sacudiu tanto que a partir daí, imaginei como um tipo de traição imperdoável se desde então eu não me dedicasse a cada dia vindouro da minha vida para tentar entender e me expressar cada vez melhor pela palavra escrita. Fica a recomendação, para quem tem dúvidas sobre o sentido da escrita para sua vida.

4) Não há "genialidade" nem "talento inato". E quando um verso alcança sua melhor voz, isso nem sempre é reconhecido e "fama" ou "sucesso" muitas vezes não têm qualquer relação com a qualidade ou o propósito elevado de qualquer obra. Tantas obras magistrais passam quase anônimas. "Genialidade" é puro besteirol inventado pelo sistema para se manter vivo, e desde Aristóteles somente os ingênuos ainda acreditam nisso. Talento é ouvir suas inclinações interiores, dar voz ao que o move, e "genialidade" é fábula. Prega-se um mito de "iluminação" ou "genialidade" para desassociar a realidade histórica e possível do resto da humanidade, como simples rebanho. Fica fácil admitir que "tal obra" é tão boa, "tal autor" é tão iluminado, porque "è gênio", porque "tem o dom", porque "nasceu praquilo", como reza o senso comum. Engodo total. As sensibilidades e histórias pessoais são variáveis, isso é fato. Nem sempre um verso alcança sua melhor voz. Mas no fundo, justifica-se um pedestal para controlar os que estão em vias de se fazer, ou para anestesiar aqueles que abandonaram definitivamente a força e a disciplina de tentar, possam se sentir mais confortáveis. "Gênio", de fato, como o uso da palavra deveria definir, é apenas o ousado, quem ouve sua própria voz, quem não se resigna. Dá pra imaginar Platão, Michelângelo, Rafael o PIcasso, Montaigne, Proust, Balzac, Sartre ou Machado de Assis, com toda a vida prolífica que tiveram, embasadas pela volumosa e qualitativa produção e o esmero árduo a que se dedicaram em vida, sentados esperando calmamente a "hora da inspiração?". Claro que há inspiração, como as "musas" que sopraram para Homero os cantos da Ilíada, mas só podem ouvir essa música os que preparam seus ouvidos pra isso, muitas vezes durante décadas de abnegado esforço. Ralação, disciplina e persistência, uma palavra que é tão difícil, principalmente pra mim mesmo que já pensei em abandonar tudo tantas vezes, mas por algum motivo que se confunde com a necessidade imperiosa de me manter vivo, ainda alimento uma pequena chama contra toda a maré contrária que invade nossos dias.