Aurora

_Às armas, soldado!
_Às armas, soldado!
_Às armas, soldado!
A passos trôpegos pela praia, alguma força exterior  jogando-o contra o vento, enquanto a água do mar massageava seus pés sobre a areia grossa
Espumas vagueantes e o rumo incerto daquelas passadas remetiam-no , sonâmbulo, ao breve instante que levara sua existência até ali.
_Às armas, soldado!
Essa voz ouvida de dentro, martelando incessantemente em seus sentidos o lema que parecia mantê-lo inteiro ainda, momentos antes de despedaçá-lo por completo em possibilidades nas pedras batidas durante séculos pelas ondas salgadas desse mar revolto
E o que era a vida , então , até ali? Realização, disciplina, contemplação ou fuga?
Luta, segundo Nietzsche, essa sim uma verdadeira definição.... Difícil fugir dela.
Mas para ele, que não se sentia tão forte, difícil conceituar, difícil pensar em algo sólido enquanto sua própria essência se liquefazia, misturando-se às ondas salgadas e à areia, no movimento contínuo que mastigava seus pés.
Difícil dizer-se algo capaz, algo que faça sentido, ora se o sentido mesmo é algo inventado e sempre são muitos.... sempre volúveis...
Viver é ser constantemente reinterpretado...
_Então somos muitos aqui neste corpo, e não um só! A voz lhe dizia, incólume...
_ Sim, essa é a verdade!
O ser não é singular
Sempre se é algo
sendo assim, por dizer,
muita coisa ao mesmo tempo
Nós é que nos acostumamos
ao pensar simplificado ...
_Às armas, soldado!

O passado?
Homens famintos ,
cavernas e caçadas de bisão
pelas planícies virgens da áfrica setentrional
Caminhos e pegadas para trás,
na areia, logo apagadas pela água...
Algo inominado que ainda pulsava, uma revolução internalevando-o à frente, contra as ondas, contra a areia.
Ser é a invenção da linguagem para não tornar a mente inóspita, para possibilitar o humano.
Ser é o sentido inventado
da coisa para os olhos
de volta à coisa
de volta aos olhos
Ser não é um, ser são muitos, se algo sou, então sou muita coisa ao mesmo tempo em eterna contradição , e movimento incessante de superação continuada
levando a lugar algum, sempre,
essa faina de estar vivo
enxergando-se, de cima, nesse olhar maior
Ser...
Sou o som das canções que minha mãe cantava quando ainda eu habitava em seu ventre;
Sou os primeiros passos trôpegos e as primeiras comidas pastosas, das quais me lembro ainda hoje de que gostava , e bastante.
Sou meus primeiros tombos e o joelho ralado a não poder mais,
Andadas, tombos, andadas, tombos, e o sorriso do poder iluminando a alma
Sou minhas primeiras palavras desenhadas e figuras estranhas, maçarocas disformes que saltavam sob meu giz de cera
Sou os primeiros rudimentares desenhos espalhados do meu mijo na areia, e que coisa legal a descoberta daquele instrumento diferente de escrita
Sou minhas primeiras idas à escola, sem vontade alguma, amarrado e rebocado pelas ruas da cidade, aos prantos de "meu Deus! meu Deus!" que mundo injusto era aquele, que não me deixava mais solto entre os bichos e as árvores, minhas verdadeiras naturezas solitárias ,
minhas hidras, minhas moiras e meus gárgulas
meus avassaladores avatares,
raízes, folhas e lugares
que só eu conhecia,
meus esconderijos , ninguém mais
Sou as primeiras paixões viscerais, ainda em tão tenra idade,
e que menina mais linda aquela dos cachos mais negros,
que tinha sempre uma fita vermelha nos cabelos,
e aqueles olhos de me dizerem o mundo
em cores e encantamento
e que me perseguiu em minhas silenciosas dores
de amor em segredo
durante anos, feliz em sofrer de longe
ou de perto
Sou minhas brigas todas e meus dentes quebrados,
olhos inchados, pontos espalhados, arranhados
Minhas fugas e estrepolias,
meu inquieto espírito andarilho
e meu sono profundo de depois
Sou todas as minhas mesquinharias e minhas virtudes,
minhas pequenezas e minhas vicissitudes
minhas pequenas grandezas,
inóspitas
que disputam o território da minha alma
ainda hoje, todo o tempo, sem que eu possa jamais
antever o resultado da luta

Sou os sonhos que já realizei e os que não,
hoje nada mais que o combustível irrequieto
de novos sonhos,
drogas que nunca me trarão a completa felicidade, pois foram somente a projeção dos desejos que nelas imprimi, quando me julgava infeliz e incompleto
Sou todos os amigos que tive
e não soube cuidar,
porque amigos são plantas belas e sensíveis
e precisam ser regados para florescer
Sou também aqueles amigos que não tive,
Porque esperei demais
e os inimigos também,
As conversas bacanas e as decepcionantes,
contando como decepção tudo aquilo que eu também não disse,
tendo cômoda e covardemente me calado,
às vezes por orgulho, quando deveria ter falado ,
às vezes de volta, na soleira da porta
quando por ela deveria ter entrado
Isso sim, sou todas essas presenças e ausências de minha própria vida,
muitas vezes parecendo tão curta,
e algumas vezes sombria sorrateira querendo se insinuar longa demais
no prolongar de um único dia de verão.
Esses verões!....
....
......
........



Ao final desse embate momentâneo que parecia resumir de maneira confortável seus questionamentos , tornando possível para ele, por instantes, como que por uma luz divina, vislumbrar o motivo de sua angústia, deitou-se na areia quente e fina da manhã e deixou o sol o sal e o mar invadirem sua alma.
Apenas por esse instante, a vida inteira do planeta pareceu-lhe nada perante o universo, apenas um espirro de areia perdido, girando pelo cosmos, e esse pânico começou a crescer em sua mente, tentando dominá-lo.
Suava frio em pleno verão, sob o sol , afundando na praia.
_Às armas, soldado! (algo murmurava ainda por dentro)
Então, enchendo o pulmão com a suave brisa marinha, e contemplando aquele branco azul de abril quase irreal, figurou-se diante dos seus olhos um minuto de devaneio sobre as ilimitadas possibilidades humanas sobre a terra ; sua vontade de lutar , sua irresignação com a morte, com a interrupção do ciclo, sua consciência absoluta de que a vida antes de mais nada é afirmação e luta, desde as ínfimas criaturas que transitam por essa areia sob seus pés , até as leis universais que sustentam a órbita revolucionária dos astros, sua clarividência e intuição lhe diziam que tudo é uma só esfera continuada de ser...
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(editado em 04-06-16)