Poesia do cotidiano V

ZZZZZZZZZZZzzzzzttttt!!!
Sem luz, sem net, sem geladeira
Sem elevador, sem climatizador
sem britadeira

Ausenta-se a civilização por uns instantes
Quando a energia de repente se vai
E os estranhos dois minutos de silêncio
São quebrados ao som de ensurdecedoras sirenes

Jornais, em cinco minutos
Bombeiros, em dez minutos
(Polícia, em quinze minutos?)

Com certeza tem algo errado
naquele prédio ali ao lado

Em poucos instantes a rua cheia
Polícia perdida, bombeiros perdidos
Fotógrafos, repórteres, toda a mídia
Gente correndo pra todos os lados
Gente se benzendo e chorando
Faixas de proteção espalhadas
O dono da obra num canto
Em choque, chorando
o passado

Pessoas em transe se explicando
Saltara a fagulha à distância de um fio
Um fósforo riscado e queimado até o fim
Agarrando Genaro num último abraço
Três andares e meio de construção
E o toque quase silencioso da morte
Rápida, rasteira, dolorosa e brilhante
Numa manhã suave e azul de abril

Genaro era vascaíno,
Genaro era nordestino,
Genaro era pai de cinco
Meio-marido de duas
(Más línguas diziam
 que na verdade eram três)
Saudava a todos com
Seu sorriso banguelo
Seu bom-humor constante
Sua força e disposição pro trabalho
"Ôi, dotô, seu Framengo faiou ônti, hein"?
e dava sua gargalhada a plenos pulmões

ZZZZZZZZZZZzzzzzttttt!!!
"A culpa é do dono da obra"
ZZZZZZZZZZZzzzzzttttt!!!
"A culpa é do empregado imprudente"
ZZZZZZZZZZZzzzzzttttt!!!
"A culpa é da empresa concessionária"
ZZZZZZZZZZZzzzzzttttt!!!
"A culpa é do fio desencapado
próximo demais da laje"

ZZZZZZZZZZZzzzzzttttt!!!
Alheio a tudo isso, lá em cima
Bem no alto do terceiro andar
Um corpo, ou o que restou de Genaro
Fica pendurado entre uma quina de laje
E o pedaço arrebentado do
Fio poderoso de doze mil volts
A meio metro da parede

ZZZZZZZZZZZzzzzzttttt!!!
Hoje saí mais cedo para o trabalho
Não faltou luz, net, microondas nem elevador
Na porta da rua topei logo de cara com Romualdo
Contratado para o lugar de Genaro
Na mesma obra, na mesma construção
Romualdo é Alagoano
Não Pernambucano, como Genaro
E torce para o CSA.