FRAGMENTOS DO DIA

Manhã praia, sol ardendo nas costas, e debaixo do guarda-sol a sensação boa do vento fresco pra rebater o excesso de calor. Os olhos boiando como um barco a vela, observando as fragatas que voam ao longe, vigiando ondas e pequenos peixes. De vez em quando elas disparam num mergulho reto, fechando asas e entrando de cabeça na salgada água fria, e na maioria das vezes retornando com peixe no bico. Voam, apenas pairando a alguns metros sobre as águas, sem fazer força. Aprenderam a aproveitar os ventos favoráveis.

Aspirando fundo aquele cheiro molhado de mar, os pensamentos flanam perdidos por segundos quando largo o Camus por um instante e imagino se as aves deveriam ensinar esta arte das artes qualquer dia. Cerveja gelada no isopor. Franguinho frito com farofa. Corpo pujante de mulher estendido na chaise ao lado, maiô preto com um chapéu de palha e abas largas, taça de “dry martini” com todas as azeitonas do mundo e bastante gelo ao alcance da mão. Óculos escuros para poder ver melhor sob o céu aberto e branco de quase meio-dia. Vida boa! Queria mais nada não...

Tarde sítio, com muita grama verde lisa, rio largo e plano; silencioso. Centopéias. Miríades de pés dançantes em movimento sinuoso. Ou seriam mãos e a lagarta anda mesmo é de ponta-cabeça? Afundado na primeira infância, lembrava-me do gosto de um bicho desses na boca, mastigado por um meio-segundo. Amargo, doce, gosto de formiga. Gostei não. Mas gostava mesmo é de observar esses monte de pés em circunvoluções cronometradas e exatas como se fossem ondas, rápidas, vagas após vagas, conduzindo a carcaça cilíndrica à frente, rebolando formato de "S" devagar ou "I" reto, se estiver com muita pressa. Indo ao trabalho a pé, valorizando meu lado humano politicamente correto enquanto ele ainda resistia de alguma forma, topei a meio do caminho para observar um bicho desses ao pé de uma árvore. Tudo úmido, pelas recentes chuvas. Delirando em pleno meio-dia na viagem de uma centopéia adulta esticando meu dia.  Coisa bonita de se ver, aquele espelho brilhoso marrom avermelhado seguro e sereno, e a forma como a vida é infinita em suas pequenitudes. A vida também tem muitas pernas. Quanto milagre e quanta ciência não se digladiariam por dias, meses, anos a fio, para disputar a paternidade de um bicho poderoso como esse? Seu casco brilhoso, segmentado em centenas de pequenas divisões, cada uma com um par de pernas, todas harmônicas e de movimento preciso, ritmado, e em harmonia com o todo corporal. Impossível imaginar um humano que tivesse tantos membros se valendo de algum tipo de harmonia para movimentar sua cansada máquina terrestre. Casco brilhoso de um vidro meio roxo, meio marrom, opaco. Pequenas antenas e nem sinal de olhos. E a estratégia de defesa ancestral, instintiva, de se encolher na forma de uma espiral quando cutucada ou tirada de alguma forma do seu destino. Para, se enrola, cessa todo o movimento, e aguarda calmamente que qualquer ameaça de perigo tenha cessado. Daí desenrola-se e continua andando, em qualquer direção. Seu mister é viajar, não importa tanto o destino. Está sempre a caminho de um novo caminho. Mais lições para se aprender com uma centopéia.

Quedou-se a tarde súbita depois da sesta na roça de gramas. Rios e pôr-do-sol logo sugados pela noite de meia-lua que chega. No retorno do passeio a cavalo à tardinha, ela escanchada na sela, balançando bonito como o gingado da morena, lembrança boa de outras eras. A noite perdida para os bichos e plantas, agora é dada às filosofias. Cabeça perdida em estrelas, afastamento periódico e planejado da rotina, na busca incessante e na experimentação necessária de tentar novas referências para a lida cotidiana. A vida é sempre melhor em dupla? Pode ser. é. Melhor que sozinho, certamente. embora alguma solidão seja sempre necessária pra se descobrir o que se é,  mas as rotinas de qualquer convivência tendem a ser esmagadoras. é preciso não ser fraco e continuar alimentando aquela necessidade atávica que faz o sapo querer sempre pular mais longe. a natureza não se conforma. nós também não devíamos. Não a certeza do pertencimento calculado, mas o perdimento intencional de um ao outro é que traz a pimenta certeira de qualquer situação onde exista mais de um. Enfim... Livros. dvd's. vinho. café. sexo bom. a vida carnal é um apego e um apelo desejável e necessário à verdadeira essência de viver. Largar mão dessa coisa besta de alimentar o espírito. Pro inferno com os fantasmas. O corpo já basta. Nos prazeres artificiais, o espaço do cigarro teve que ser abominado há alguns anos, na luta entre corpo e mente. venceu o corpo, por hora. mas a tentação de um charuto eventual sempre vinha à mente, como forma de vingança no retorno à fumaça. A mente sempre se vinga! memórias nubladas... Um pouco de álcool pra clarear as idéias.

Saltando de lombada em lombada dos clássicos, alguns em edições mais novas, outros de décadas passadas. folheando em antigas edições a rememoração do que teriam vivido, pensado e sentido esses tantos pensadores que ora decoram em um colorido mosaico as paredes à frente, aos lados e atrás . cheiro bom. astral de biblioteca para um velho rato. curiosos e exploradores do mundo, quais teriam sido suas respostas para as possibilidades do viver, depois que a maçante vida cotidiana, dádiva duvidosa da maioria dos mortais mostrou logo que não era a saída, e se essas respostas por acaso ainda seriam válidas e não apenas meros erros crassos, ou temerárias e infantis visões sobre a vida. se suas idéias seriam algo realmente parido na grande dor ou felicidade do universo ou foram apenas idéias pálidas e polidas de gabinete. se seriam idéias pessoais, viscerais e vinculadas ao ser de cada poeta, cada cientista, cada filósofo, ou apenas maquiagem dispensável. Tantas cabeças, tantas regras gerais para o grande jogo. algumas mais ascéticas, outras mais engajadas. umas alegres, outras tristes. umas defensáveis com o próprio sangue no decorrer de mais de uma vida, tornando-se praticamente um credo e enraizando-se no absoluto. outras, mais realistas, pugnando pela sua inteligente relatividade, que anda juntamente com a própria relatividade do mundo, sabendo-se passageiras e sem pretensões à verdade e colocando-se apenas como valores de época, cientes enfim de sua mortalidade.

Vou paginando e refletindo enquanto me vem aos olhos os fragmentos do dia, vestígios das horas de sol, praia e grama. contato com o mar logo pela manhã, bebendo sal pelas narinas. as ondas afundando os pés maciamente nas pocinhas efêmeras, cavando e recavando seus buracos e montes, transportando lufadas doloridas de areia fina pra todos os lados, uma hora num sentido, outra no sentido oposto da maré confusa ao sabor dos ventos. siris enguruçados correndo de costas e desafiando as ondas batedeiras mais de perto, com seus olhos retráteis amarelos e pretos, reluzindo contra praias e lagoinhas brancas brilhosas .aves marinhas. cheiro de maresia e peixes secos na areia, com espinhas à mostra com aquele salzinho branco em sua superfície toda enroscada,  no vento, ressequida, de grandes dentes pontiagudos.

Morte, vida, permanência, desejo, destino, incompletude, a condição humana. Vida é resposta para tantas perguntas??

Difícil proposta, mas a vida ainda será boa enquanto o dia acordar sol e anoitecer praia, e antes que você desperte, eu possa ainda  observá-la deitada entre os lençóis, perdida nesses sonhos incomunicáveis. O mundo ainda valerá a pena e a vida será mais plena enquanto você acordar comigo desse dormir filmes, entardecer terras e almoçar corpos . Manhãs peixes, tardes centopéias, noite traças meio bêbadas com um ótimo vinho a namorar uma pejada lua.


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editado em 06=03=17