2016 numa perspectiva cultural no apagar das luzes
Se 2016, como toda pessoa de bom senso já percebeu, foi um
desastre completo na área política, felizmente não ocorreu o mesmo quanto à
arte e à cultura, de modo geral, que entre apertos e muita força de vontade,
continua brilhando em nossa sofrida terra. Tanto em terras capixabas quanto na
Terra Brasilis, há muita coisa boa. Algumas novas, porque recém-lançadas ou
novas porque eu só tive a oportunidade de conhece-las agora. Outras clássicas,
de conhecimento geral, mas que sem dúvida merecem registro pela sua qualidade ,
e que fizeram o ano da gente mais rico. Cito algumas abaixo, sem pretensão
alguma de fazer crítica cultural, apenas como compartilhamento de gosto
pessoal.
FILMES: “Cinco Graças” e “O filho de Saul” . No primeiro, a
beleza pujante do olhar renovado do cinema “do lado de lá” do mundo, exercendo
seu fascínio sobre nossos encantados olhos. Crítica e denúncia sobre a opressão
feminina no reino dos aiatolás. No segundo, o mais terrível filme já realizado
sobre a segunda guerra, o inominável vem à tona através de um filme de
orçamento modesto, mas com uma dramaticidade , intepretação e roteiro
imbatíveis.
TEATRO/MUSICAL: “SAUDADE DE MIM” (Focus, Cia. De Dança),
espetáculo apresentado no Sesc Gloria, num trabalho magistral que reúne o
ambiente imagético e criativo de Portinari com canções de Chico Buarque.
Beleza, talento e uma competência técnica invejáveis do corpo de bailarinos, e
um bom gosto extremo na escolha do repertório que foi encenado de forma sublime. “PENTAGRAMA”,
(Fernando Marques e Grupo “Z” de Teatro – Má Companhia): Força dramática do
teatro capixaba, em grande momento espelhado neste jovem grupo de cinco atores
encenando o texto poderoso de Fernando Marques. Diálogos densos, situações
contraditórias, loucas e cotidianas . O “nada” que rodeia cada indivíduo, vivido
em cadeias afetivas e amorosas que todos conhecemos bem porque em maior ou
menor grau nós mesmos as ensaiamos todos os dias em nosso cotidiano. Beleza de
encenação, beleza de atores, corpos em movimento magnífico, com diálogos
verborrágicos e necessários, carregados e intensos. Outro mérito de "Pentagrama" foi sua forma de produção. No peito e na marra, via "crowfunding", no velho estilo livre de que a arte precisa acontecer, mesmo quando a configuração político-ideológica do Estado ou as conhecidas instituições patrocinadoras estejam , como estão, tão envolvidas em seus propinodutos, vácuos gerenciais e mercadológicos a ponto de sequer se lembrarem do que significa a cultura.
MÚSICA/MÚSICO/ALBUM: “LINEKER”, por tudo que representa, não
apenas enquanto o grande músico e a figura talentosa que é, mas por tudo o que
subjaz, num país repleto de preconceitos estúpidos e estereótipos que sempre
limitaram e ainda limitam a expressão artística em seus diversos níveis. ELZA
SOARES, “A mulher do fim do mundo”. O que dizer desse trabalho que ainda não
tenha sido dito? O que me toca mais é saber que a arte não tem idade, e talvez
seja mesmo um critério importante imaginar a maturidade e a persistência, a
atitude de resistência e criação como virtudes intrínsecas e desejáveis a
qualquer artista.
LIVROS: (MUITOS)
POESIA: TRÊS EXCELENTES AUTORES DA NOSSA TERRA:
1)“Menos teu Nome”, de Lucas dos Passos. Cabraliano
declarado ,Lucas, seguindo em boa parte dos seus versos o rigor característico
do grande mestre, lança-se corajosamente em busca da melhor palavra e não tem
medo de soar difícil ou hermético quando compõe os três blocos deste grande livro cujo título remete a Leminski.
Nesta obra, temas como a reflexão existencial sobre o amor ou a condição humana estão
presentes com muita força. Há visões de mundo em criação, há questionamentos de fundo político, como no sentido da política grande definida por Aristóteles, sem ser partidária e sem perder o lúdico. Há engajamento e sintonia com seu tempo. Talvez a melhor idéia sobre o
“rigor cabraliano” seja esta: Uma dimensão clássica da perfeita essência contida na melhor forma; Difícil observar em outras obras atuais aquilo que "Menos teu nome" tem de sobra: a
escolha pela beleza e poder dos versos sem se render o poeta demasiadamente à forma, mantendo o conteúdo
sempre em foco.
2)”A densidade do céu sobre a demolição” e “Pandareco”, de Casé
Lontra Marques: Casé Marques é poeta que escapa a qualquer tentativa de “definição”. A começar pelos inspirados títulos de todas as suas obras. Se não reparou ainda, repare. Não há poeta ou escritor que não quisesse por um instante essa criatividade para gestar títulos, essas infernais e ingratas criaturas!!! Sua plasticidade e a característica variação dos temas sobre os quais escreve
tornariam, para tentar captar uma linha de compreensão discursiva, não só
necessário escrever sobre um poeta a cada livro, mas ainda mais do que isso, um
poeta a cada poema. Casé é um pintor/escultor de palavras, e seu processo criativo provavelmente passa por nuances, estratégias e realização semelhante à que vemos no Rodin descrito por Rilke . Duas obras distintas, neste caso, um livro de poemas formato “Pocket” com
versos e prosa poética, no primeiro , e no segundo , um trabalho formato
amplo, “cartilha artística” que reúne imagens e texto em narrativa e poiesis. Se
na escolha dos versos, as associações inusitadas do fluxo de pensamento do
poeta dão a riqueza do texto, na prosa poética é a efervescência à melhor moda
de Rimbaud (ambas escolhas estéticas que compõem o primeiro livro) cria, a meu
ver, a poética mais poderosa que vi por estes tempos. Um pensamento que se cria
e se destrói em espaços curtos ou infinitos que podem morar contraditoriamente
logo ali ao lado, no “concreto”, ou em abstrações subjetivas e mutantes que
remetem à formação do autor e seu
constante e arguto olhar sobre um mundo que não para sequer um milésimo de
segundo. Se não houver entre dois versos ou entre duas palavras o trânsito possível e mais tradicional de passagem, Casé (escultor/arquiteto) reinventa um novo sentido de linguagem-casa, linguagem-ponte, linguagem-abrigo para que a possibilidade de ser faça morada. Mas não se acostume, não se apegue, porque a morada é temporária, e quando o leitor embarcado estiver se familiarizando, começar a formar aqueles primeiros e conhecidos laços famigerados do "conheço", o chão se abre, as paredes caem e a ponte se rompe com o passageiro a meio caminho da outra margem. Todo sentido possível do "dominado chão" se extingue para o surgimento de novas passagens, e assim infinitamente elevando o poder das metáforas. “Pandareco”, embora tenha desígnio diferente, com expectativa de outro
público alvo, transcende a meu ver em muito sua pretensão inicial, ao se tornar
um dos mais importantes livros escritos para o “público infantil” desde o surgimento
de Alice no País das Maravilhas, para pensar em algo estético covalente. O
livro, certamente, não é um livro infantil, na forma como se poderia imaginar
como algo redutor, mas uma surpresa bem maior que caberá ao feliz leitor
descobrir.
3) “A Alegria delicada dos dias comuns”, de Mara Coradello, começando
pela melhor capa do ano, Mara troca a necessidade absoluta de um rigor
intelectivo e ao mesmo tempo muito rígido, talvez aquele rigor cinzento que
muitos insistem em manter de forma acadêmica, na definição deste ou daquele
termo, pelo seu equivalente em termos da força do sentimento que o represente. Se
é raiva esse sentimento, beleza, vamos falar sobre, em gritos ou em
inconformismo. Se é amor, vamos abrir o jogo, escancarar logo se for o caso,
mas o que é tem que ser dito. Não dizer é não poetar, deixar de sentir ou deixar
se extinguir, porque a palavra tem muita força. Se em algumas obras poéticas (
e isso não é uma desqualificação), alguns autores eventualmente podem se angustiar na busca do som ou da forma perfeita
(me lembro um pouco de Rilke no primeiro caso, e dos parnasianos no segundo),
Mara prefere, em vez disso, abrir os braços, as pernas , o ventre da própria
vida, e narrar aquilo que vê, o que pulsa, o que bate, o que sangra. No belo
livro, que também acompanha um interessante trabalho gráfico artesanal, todo ele, há momentos singelos,
momentos delicados como o título sugere, e momentos de pegada , engajamento e
asco por situações com as quais não deve se resignar nenhum poeta que mereça o
nome. Há ainda uma definição, ou talvez palavra melhor, uma afirmação de um
olhar feminino e recriador de sua própria justificativa sobre o mundo, de forma
bastante independente, rejeitando o lugar comum e os rótulos tão facilmente
aplicados. Um livro onde o sentimento quer livremente e sem maiores
formalidades virar poema, e vira, ora em verso, mais frequentemente no manejo
hábil da prosa poética, sem pedir licença a ninguém e se afirmando por seu
próprio valor.
ROMANCE: “Arpoador”, de Régis Tellis. A completa inovação na
“forma romance” contemporâneo. Como eu imaginaria possível, antes de ler,
alguém falar (sem ser chato) num mesmo livro que tem apenas 120 páginas, de
Dostoievski a Proust, passando por Joyce, Kafka, Nietzsche, Sartre e tantos
outros? Isso ás vezes de forma explícita, às vezes de forma velada, sendo ambas
homenagens não acadêmicas mas existenciais de seu personagem sem nome a seus
maiores referenciais. Sim, e por que esses referenciais? Não são fantasmas, não
são mero pedantismo, ou citações para encher página. O personagem , um inédito
existencialista de bem com a vida, vive na pele as agruras tão bem sentidas
durante décadas por todos esses pensadores/poetas/filósofos em suas respectivas vidas e
nas suas próprias criações. Regis, ousando na originalidade, escreve numa
narrativa fluída, muito próxima à prosa poética, mas com traços de surrealismo no cotidiano do protagonista e uma erudição invejável na composição da textura, nos ambientes, locais e parceiros escolhidos para as conversas e elucubrações psicológicas do introspectivo ator da cena, contando a história de um personagem-amante das
mulheres como poucos há na literatura, e menos ainda na própria vida. Um amante
de um grande amor, não apenas um consumidor inconsequente do “belo sexo”. Mas
como os melhores amantes, sempre está á procura infindável do verdadeiro amor,
que intangível como os maiores amores, fica na expectativa constante de se
realizar. Ele existiria, esse grande amor, na compleição única de uma mulher, real, seria algo idealizado ou por fim, o amor pleno só seria possível pela reunião das belas características únicas de cada mulher, em particular, com seus universos coloridos e atraentes, cabendo ao amante (e um admirador) se enveredar pelas coxas mais diversas em busca da sua essência? Regis , em “Arpoador”, é o narrador de uma rica prosa poética, um Mia
Couto , pela forma do prosador-poetador, boêmio, sequestrado da sua África—mãe de Moçambique diretamente para
a terra de Machado de Assis, discursando de forma belíssima sob a pele de um
existencialista carioca que flana pelas ruas quentes da capital.
CRÕNICAS: “O PAPO AMARELO & ARREMATES”, Gilberto Braga. Como
sua figura pessoal, doce, comunicativo e de uma inteligência iluminada, não é
outra a leitura dessa brilhante reunião de crônicas do Cachoeirense Gilberto
Braga, “Braguinha”. Trabalho de uma fineza, erudição e um conhecimento
específico sobre história regional do Espírito Santo que é digno de registro.
Há de tudo, nessa coletânea: registros pessoais, memórias de menino, relatos
históricos e políticos de casos famosos noticiados pela imprensa, correlatos de
desenvolvimento do próprio estado do Espírito Santo, tudo com uma verve irônica
muito bem desejada na pena de um cronista. Braguinha tem uma fluidez notável e uma capacidade inata de
fazer parecer fácil o que é muito difícil para qualquer escritor, ou seja ,
dando aulas de síntese sem perder a facilidade da leitura, o “Papo Amarelo” é
de um colorido e uma vida que dão gosto a qualquer um de ser capixaba ou espírito-santense,
e mais do que isso, um gosto por ser seu leitor.
CONTOS: “VOZES
ANOITECIDAS”, Mia Couto. Contos. Reinaugurando ricamente a prosa poética nessa
mistura única entre escritos e oralidade típicos das terras africanas, não há
como permanecer o mesmo depois desse livro. Acho que não se permanece o mesmo,
em geral, depois de ler Mia Couto. Cativante, do tipo que rouba almas do resto
do mundo para a grande África. Não aquela Africa das caçadas de leões, dos safaris,
do Tarzan ou dos programas do NatGeo, mas uma áfrica mítica em sua realidade
cotidiana, habitadas por mais deuses do que o panteão grego, e com os quais convivem
os mortais pelas savanas e demais terras desoladas por uma guerra que nunca
acaba mesmo quando termina.
CLÁSSICOS: "VIAGEM Á ITÁLIA", J.W..Goethe. O impressionante "diário de viagem" de Goethe durante um período de dois anos na Itália. O olhar profundo, poético, científico e histórico de um gênio multimidia do seu tempo, antes da era industrial. O momento exato em que a formação rigorosa alemã se encontra com o âmago do pensamento e das artes latinas, construindo definitivamente o espírito clássico que acompanhará Goethe pelo resto da vida. "O HOMEM NA MULTIDÃO": Baudelaire. A partir de um texto de Edgar Allan Poe, Baudelaire viaja como o eterno flaneur pelas ruas atribuladas da Paris de seu tempo, procurando o olhar singular daquele cidadão que está no meio de tanta gente mas ainda é um incógnito. Texto riqúissimo sobre estética, crítica literária e relato do mundo vibrante que o autor testemunhou como ninguém no apogeu do século que ajudou a fundar.
"RELÂMPAGOS: DIZER O VER" . Ferreira Gullar. O poeta se aventura por um dos seus temas prediletos , ao analisar em detalhes, quase fenomenologicamente, as obras de diversos artistas plásticos através da história. Uma aula de conteúdo e mais uma demonstração da imensa sensibilidade do grande mestre, que faz um diálogo denso com as artes visuais.