O homem do lago
*Ensaio sobre "Walden", de H.D. Thoreau
"Eu fui à floresta porque queria viver deliberadamente... Queria viver profundamente, e sugar toda a essência da vida. Acabar com tudo que não fosse vida. Para que, quando a minha morte chegasse, eu não descobrisse que não vivi."
-------------- (H.D. Thoreau)
1)Não existe releitura, porque toda leitura é sempre a primeira
Aquela escultura ou pintura que admiramos numa exposição, num bar ou na casa de um amigo; aquela música que nos encantou desde o primeiro momento em que a ouvimos num passado recente ou remoto; o perfume daquela mulher numa festa ou na antessala de um consultório médico; o impacto fulminante de vida que nos tocou pela contemplação de uma dada paisagem que observamos há uma semana ou anos atrás, quer seja numa foto ou na natureza. Aqueles versos tais, a cor, a textura e o cheiro que possuíam, a forma de sua disposição, a maneira como as idéias são articuladas naquela prosa, sua pulsão, o conteúdo e a forma especial com que dadas palavras foram colocadas no papel por seu autor, ou quem sabe, noutra visão muito bela por sinal, a forma como o autor é que foi colocado no papel pelas palavras que o engendraram? Tudo isso eventualmente pode nem ter sido alterado em seu elemento original desde a primeira aparição no mundo. Com efeito, a tela continua a mesma, e quem sabe o livro nem sofreu alterações editoriais desde a sua primeira impressão. A química que compõe os acordes dissonantes do perfume ou as características mais notáveis que integravam a paisagem podem até persistir depois de um tempo, na natureza. Contudo, mudei eu, mudamos nós, tantas vezes e de forma avassaladora, desde a última vez que estivemos na presença daqueles mesmos objetos-para-mim ou aquele livro em nossas mãos, há cinco, dez ou mais anos atrás.
"Eu fui à floresta porque queria viver deliberadamente... Queria viver profundamente, e sugar toda a essência da vida. Acabar com tudo que não fosse vida. Para que, quando a minha morte chegasse, eu não descobrisse que não vivi."
-------------- (H.D. Thoreau)
1)Não existe releitura, porque toda leitura é sempre a primeira
Sendo honestos por virtude e por necessidade de poupar tempo, confessemos logo a verdade: não existem releituras, nem de livros nem da própria vida, porque toda leitura, como cada vivência, é sempre a primeira para o que nós somos agora
Aquela escultura ou pintura que admiramos numa exposição, num bar ou na casa de um amigo; aquela música que nos encantou desde o primeiro momento em que a ouvimos num passado recente ou remoto; o perfume daquela mulher numa festa ou na antessala de um consultório médico; o impacto fulminante de vida que nos tocou pela contemplação de uma dada paisagem que observamos há uma semana ou anos atrás, quer seja numa foto ou na natureza. Aqueles versos tais, a cor, a textura e o cheiro que possuíam, a forma de sua disposição, a maneira como as idéias são articuladas naquela prosa, sua pulsão, o conteúdo e a forma especial com que dadas palavras foram colocadas no papel por seu autor, ou quem sabe, noutra visão muito bela por sinal, a forma como o autor é que foi colocado no papel pelas palavras que o engendraram? Tudo isso eventualmente pode nem ter sido alterado em seu elemento original desde a primeira aparição no mundo. Com efeito, a tela continua a mesma, e quem sabe o livro nem sofreu alterações editoriais desde a sua primeira impressão. A química que compõe os acordes dissonantes do perfume ou as características mais notáveis que integravam a paisagem podem até persistir depois de um tempo, na natureza. Contudo, mudei eu, mudamos nós, tantas vezes e de forma avassaladora, desde a última vez que estivemos na presença daqueles mesmos objetos-para-mim ou aquele livro em nossas mãos, há cinco, dez ou mais anos atrás.
E é justamente nesse estado de consciência que recebo e leio "de novo pela primeira vez", e não apenas "releio" a obra "Walden", de H.D. Thoreau, depois de a ter lido ainda na universidade, tempos atrás. Não há como descrever em simples palavras o fascínio, o encantamento e o "contágio" que essa obra provocou em mim, novamente pela primeira vez, devo frisar. Talvez menos pela "convocação à vida na natureza", como seu sentido mais comum (e de certa forma vilipendiado)é normalmente atribuído, e nem pela necessidade ou vontade de passar a ser , eu mesmo, mais um ermitão a querer morar numa cabana na floresta, construindo meus objetos e minha morada com minhas próprias mãos e desdenhando qualquer coisa que a tal civilização me tenha dado. Não digo que isso tudo não me atraia, e vez ou outra eu penso mesmo em ser um ermitão e ir morar numa cabana à beira de um lago. E preocupantemente, isso tem me ocorrido até com uma frequência até absurda nos últimos tempos. Mas, o objetivo deste ensaio, e o que me atrai mesmo na obra de Thoreau é, além da forma brilhante e inspirada da escrita, sua essência premonitória e corajosa, diagnosticando com precisão as consequências já adiantadas de uma revolução industrial em sua efetividade, e propondo, segundo seus próprios fundamentos, o "remédio" para tal situação. E isso partindo de uma atitude ousada ao confrontar a essência do pensamento no ocidente: o "ser" e o "fazer", e de como esses dois valores se inter-relacionam no tempo, trazendo efeitos imediatos sobre a vida das pessoas. Sim, paradoxalmente, Thoreau era sim um ermitão a buscar paz em uma cabana às margens de um lago calmo numa cidade fria do oeste americano. Mas Thoreau, por sua ampla formação intelectual e humanista, jamais poderá ser considerado "apenas" um ermitão que parte para o mato a construir uma cabana como fuga do mundo.
À primeira vista, isso poderia parecer simplesmente a constatação de uma coisa boba, trivial, como perceber que com o passar das estações as árvores crescem, frutificam e morrem, assim como os animais. Contudo, por várias razões tal constatação acaba se tornando uma contra-corrente em nosso meio. Porque a atitude predominante na vida, desde o advento da civilização e desde que somos "treinados" para ser gente em nosso meio, é a repetição de rotinas, comportamentos, valores e principalmente visões sobre o que nos rodeia. Há uma pegada de malícia aí, que pode ser transposta sob o ponto de vista de uma crítica ao sistema, ao nosso padrão de vida ocidental e suas consequências. A vocação enraizada do modo de agir e pensar ainda é Cartesiana, o sistema precisa , para funcionar, operar com lógica, previsibilidade e objetificação, porque é afinal um mundo material e concreto, mesmo quando pretende injetar ideologias sob moeda-sonho para agregar comportamentos dissidentes. Portanto, funciona melhor para a produção da vida econômica, nesse modo que vivemos, o fato de nos comportarmos fisica e mentalmente como as variáveis X e Y tornados famosos por Déscartes. Ou seja, sendo previsíveis dentro de um mundo plano que comporta mais destino pronto do que descobertas. Ao recusar, logo de cara, essa lógica como razão predominante a reger nossas vidas, criamos comportamentos aleatórios e variantes perigoas que causam indigestão na máquina. Quando é dada a perspectiva ao vivente, de que suas verdadeiras opções não são apenas escolher entre um carro vermelho ou azul, escolher entre a gravata borboleta ou italiana, escolher entre a Coca ou a Pepsi, mas sim escolher de fato se há a necessidade real de que se utilize o carro como meio de transporte em sua vida, em particular, se há necessidade de gravatas para o que quer que seja ou mesmo por que raios ainda se fabricam refrigerantes no mundo de hoje, então é aí que existe , de um lado, o "perigo" à ordem constituída. E de outro, como o autor de "Walden" nos lembra o tempo inteiro, existe um tipo de "liberdade" muito especial, que se inicia exatamente quando o vivente se apropria da vida como algo novo, incondicionado, aberto à aventura de existir em outro contexto.
O que importa, no trânsito das impressões subjetivas que vamos adquirindo como experiência de vida, é que passado esse tempo, desde que contemplei aquele quadro, absorvi aquele perfume, toquei com minhas próprias mãos aquela escultura ou ouvi de um amigo aquela sua história; o sentido que agora absorvo do que leio, do que aspiro, do que vejo, do que sinto até, e a força com que isso tudo fala diretamente a mim, as palavras que me saltam aos olhos bem como a concatenação de idéias e sensações que elas me suscitam agora em novos sentidos e as construções que antes me escapavam e agora maravilhosamente são outras, a sequência de estados de espírito, sensações , memórias e vivências daquele perfume cotejado à luz das minhas melhores memórias afetivas, seus prazeres e suas tragédias (ou comédias), a sensação de luz e fuga ou a melancolia que salta aos olhos das tintas sobre a tela à minha frente, num lugar onde antes eu via apenas alegrias; o som antes melodioso daquele instrumento que me contagiava e hoje eventualmente pode soar como refresco ou tortura porque também meu gosto musical hoje é outro, a maior parte disso tudo mudou, mas não mudou "em si", posto que todos já eram fatos ou obras "acabadas" em sua realização material, mas simultaneamente agora são outras em sua longevidade estética simplesmente porque eu mesmo sou completamente outro, passados esses minutos, horas ou décadas, meros instantes no tempo.
"Nada permanece", como dizia o sábio Heráclito, em sua agonia posteriormente recolocada em campo para regozijo dos polemistas favoráveis a Parmênides, para quem nada mudava, e o ser sempre continuava o mesmo, "sempre retornando ao que é". Deixemos o glorioso Parmênides de lado, para passear com Heráclito sobre rios cujas águas jamais retornam à origem, e principalmente pela intuição mágica de que, se não nos molhávamos novamente sobre as águas do mesmo rio, isso não apenas porque essas águas já não seriam mais as mesmas, mas principalmente porque nós já não éramos os mesmos. O resgate da vida, no comportamento ocidental, e sua premissa da impermanência estão visceralmente interligadas, para o objeto deste ensaio, à abordagem de Thoreau sobre Walden. Isso é o que precisa ser resgatado. Com urgência.
Abandonemos Parmênides e saiamos a passeio com Heráclito, pois. Seria trágico imaginar que aquilo que compõe o humano, seus valores, suas percepções de mundo, sua própria história, permanecessem os mesmos, ainda quando regidos pelo tempo. Portanto, reafirmando a tese de Heráclito contra a imobilidade, diríamos que todo cartesianismo assim como toda permanência é algo forçado. O natural, a forma como a vida flui, é o movimento. Sou, na verdade, muito menos um sujeito cartesiano com uma suposta independência formal e sob cuja racionalidade assentariam os desígnios do mundo, e muito mais um feixe de relações intercruzadas que carregam consigo as mais diversas origens, muitas delas claramente de gênese não-antropológica, mas diretamente da natureza "exterior". A transposição do homem medieval, sujeito às inclementes ordens divinas, toda a inflexível lógica que exalava desse contexto, foi substituída depois de Déscartes, essencialmente pelo homem consciente, senhor de si, homem burguês e empreendedor que já nascia capaz de capturar o mundo-dádiva natural e transformá-lo, na fábrica, em algo de seu manejo. Previsível, calculável, e desejável, nos cânones da nova lógica instaurada. A Idade Média, com toda a sua complexidade, com tanta sede de penitência, com toda a rede eclesiástica regendo os domínios do corpo, eram variáveis demais para serem reduzidas a um mero plano bidimensional de X e Y. Deixemos de lado a maior parte dessas variáveis, e vamos focar, portanto, no que pode ser mensurado, disse Déscartes.
Abandonemos agora essa certeza e a permanência trazidas a lume por Déscartes , que aliás, lembra em algum momento Parmênides, não tanto pela matematização e operacionalização do mundo material, mas por advogar, por trás dessa aparente revolução maquinal da natureza, a idéia de que todas essas variáveis poderiam ser calculadas e alcançadas num plano que pressupõe a estabilidade do ser. No caso, o ser divino, Deus. Há o homem, esse ser privilegiado, respaldado pelo pai celestial, e partilhando por sorte da consciência e do saber-fazer que lhe são próprios. E há a natureza, o resto, o "refugo", abandonado e partido de sua origem, espoliado, e disponível para mero desfrute, como se o Éden novamente ressuscitasse ao nosso favor, e sem a serpente nem as punições para atrapalhar.
Resgatemos o animal do homem, portanto, em vez de o mantermos num pedestal entre deuses e a divindade. Não sou uma essência, mais ou menos imutável, com raízes primeiras nalguma divindade fundadora, ou o que valha, mas sou mesmo algo material, neste instante do agora, fruto de tudo que li, do que vi, das conversas que tive, das comidas que provei, das árvores em que subi para colher mais alto a melhor fruta, das águas das cachoeiras sob as quais me banhei, das pessoas que conheci e muito mais. E o fato dessa entidade denominada "eu" consistir nessa quantidade de informações que chega mesmo em alguns momentos a questionar a possibilidade fechada da existência de uma subjetividade fundante, típica na cultura ocidental, traz novas e infinitas possibilidades de leitura sobre aquilo que agora repousa sob meus olhos. Daí, que sempre temos reiteradamente a chance de ler o mundo inteiro pela primeira vez, a cada vez que acordamos, durante todos os dias das nossas vidas e principalmente toda vez que estamos com algum livro sob os olhos. Isso porque a leitura é a mãe da mais poderosa imaginação criadora. Tudo é sempre novo, porque novos somos nós, a cada instante da vida, desde que os sentidos não sejam embotados, desde que a capacidade de perceber e assimilar o novo se mantenha sempre em aberto, não tolhida por nenhum tipo de preconceito, valores morais rígidos ou formas de conhecimento obtusas calcadas em dogmas artificiais.
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2) "Walden", e o conceito de "Transcendência" como reapropriação da relação sujeito x objeto, como elevação do olhar do homem sobre si mesmo e contra a idéia tradicional do "místico", do 'divino", do " religioso" por uma nova consciência da Humanidade na Terra.
A maior justificativa pessoal para a "experiência Walden" , então realizada por um "garoto" de apenas 28 anos que se mudou para as margens do lago Walden, em Concord, Massachussets, Estados Unidos e resolveu durante um tempo de quase três anos ler, estudar e escrever compulsivamente e viver exclusivamente do seu próprio trabalho e dos produtos obtidos na natureza, parece ser uma das passagens mais belas e mais citadas tanto em remissão à obra quanto do seu autor:
"Eu fui à floresta porque queria viver deliberadamente... Queria viver profundamente, e sugar toda a essência da vida. Acabar com tudo que não fosse vida. Para que, quando a minha morte chegasse, eu não descobrisse que não vivi."
Contudo, depois de complementado esse trecho com o sentido inteiro do original, um prolongamento da frase que não é tão conhecido quanto a primeira parte, isso tudo passa a ganhar outro sentido, a meu ver muito mais complexo e abrangente, cujo desenvolvimento é o objetivo deste ensaio . No texto completo, temos agora a idéia original, mas em dois desenvolvimentos com amplos efeitos:
"Eu fui a floresta porque queria viver deliberadamente... Queria viver profundamente, e sugar toda a essência da vida. Acabar com tudo que não fosse vida. Para que, quando a minha morte chegasse, eu não descobrisse que não vivi. Não queria viver o que não era vida, tão caro era viver; e tampouco queria praticar a resignação, a menos que fosse absolutamente necessário. Queria viver profundamente e sugar a vida até a medula, viver com tanto vigor e de forma tão espartana que eliminasse tudo que não fosse vida recortar-lhe um largo talho e passar-lhe rente um alfanje, acuá-la num canto e reduzi-la a seus termos mais simples , e, se ela se revelasse mesquinha, ora, aí então eu pegaria sua total e genuína mesquinharia e divulgaria ao mundo essa mesquinharia, ou, se fosse sublime, iria saber por experiência própria, e eu poderia apresentar um relato fiel em minha próxima excursão (...)".
A rigor, há uma contradição nesse pensamento, se for tomado por inteiro. Não uma contradição do autor, que está em sintonia com seu propósito de vida, e o põe em prática até as últimas consequências. Uma contradição de teses dentro da história do pensamento, principalmente se o leitor fizer uma rápida passagem sobre o texto, sem se deter de forma mais aprofundada. Infelizmente parece ter ocorrido exatamente isso na maioria das críticas a respeito dessa obra, "Walden". O que há na verdade é apenas uma contradição entre o que comumente se lê, divulgando-se e perpetuando-se apenas o sentido da primeira parte do pensamento, como mostrei acima. Depois, quando se lê o mesmo pensamento por inteiro, pegando do início ao fim e descobrindo seu verdadeiro e mais amplo significado, em consonância com a proposta de Thoreau, abrem-se outros horizontes.
O equívoco dessa leitura superficial , ou voluntariamente capciosa para tentar diminuir o valor de sua obra, é percebido da seguinte forma: Capturando a idéia exposta por Thoreau, de que "Viver a vida sugando-a até a medula" é ao mesmo tempo ser "espartano" em seu método, sua forma de se instalar no mundo, é como se voltássemos à Grécia ou à Roma antiga, e nos lembrássemos da "guerra" temática e tão conhecida entre Estóicos e Epicuristas. Como é possível imaginar, numa mesma frase, sentença ou pensamento enfim, que alguém deseja "sugar o máximo da vida", o usufruir, "curtir o que há de bom," termo tão comum ao hedonismo presente em grande parte na filosofia de Epicuro, com seu antípoda, a idéia contraditória de que isso deve se dar não pela intensificação dos sentidos de uma forma prazerosa e coerente com esta filosofia, mas sim conduzindo esse processo de forma espartana, e portanto, de forma estóica, ou seja, agindo como os estóicos, esses "budistas antes de Budha" de forma a diminuir a capacidade de expandir os sentidos para que , desta forma, o intelecto e a verdadeira noção de mundo, uma vez livre da materialidade contagiante e contaminante do sentido humano do mundo, e seus prazeres, não atrapalhem a concentração do pensador diante de seus nobres propósitos? Ora, se tem uma coisa que os Epicuristas conheciam bem é a possibilidade de intensificação do prazer através dos sentidos e através disso a busca de um estado mais elevado de espírito que pudesse combater o lado trágico e cinzento da vida. A morte não tem jeito, portanto remédio para a dor-de-vida é o prazer, diria um epicurista resolvido. Coisa inteiramente contrária à noção dos Estóicos, que viam no treinamento de engolir sapos e rãs, enfim, enfrentar sem desculpas a dureza cotidiana e os rigores dos invernos da alma, contendo-se nos prazeres, escolhendo voluntariamente a privação, levando uma vida frugal e desse jeito fortalecendo-se em propósito e determinação ao desapegarem-se aos poucos da matéria ,a única forma de se combater os "excessos do mundo".
Em outras palavras, a idéia aqui, para seguirmos o que se tem na história do pensamento ocidental, seria de que , se alguém pretende "sugar a vida até a medula", isso seria mais natural de ser concebido, como mais tarde foi intentado por diversas escolas literárias, filosóficas e artísticas, com a defesa aberta da exacerbação dos sentidos de modo a se atingir um potencial de fruição e criação benéficos para toda arte. Prazeres como o sexo, a embriaguez natural ou artificial, a música, utilizada agora como forma de síncope e êxtase, o estímulo ao sentidos de diversas formas , e nessa sintonia, essas atividades, de fundo hedonista e epicurista, poderiam e deveriam ser alimentadas para que o artista alcançasse todo seu poder criativo, e nesse sentido, a idéia de uma vida mais plena passaria necessariamente pela sinestesia, a sede que o corpo tem de estímulos, a necessidade física desse contato ampliado com o mundo. Mas é justamente aqui que Thoreau dá uma guinada, e transverte o sentido superficial e mais comum que poderia lhe ser atribuído ao pararmos na análise da primeira parte da bela frase. Thoreau, afinal, não era um epicurista, isso é muito fácil de ver não apenas em "Walden", como de resto em boa parte de sua obra. Conhecia a fundo as doutrinas gregas, mas sua opção não é pela idéia de prazer que se tem comumente. Por isso, a segunda parte do texto, ao contrário do que sugere a primeira, ao conduzir tal processo de ampliação da capacidade do conhecimento e fruição do homem dentro da própria vida, ou ao menos da "vida mais plena" conforme seu autor, relegando a idéia de prazer mundano em busca de outros estímulos, é Estóica, Espartana: ele entende, como os estóicos, que o problema do mundo não é que lhe faltem estímulos sensoriais. Há estímulos demais, em diversas nuances, na vida comum e usual dos cidadãos agarrados àquela já instaurada sociedade industrial de seu tempo. Há drogas, há sexo fácil (já naquela época), há toda uma cultura instaurada para amaciar os corpos quando chegam em casa, seja na mansão ou no barraco, exauridos do trabalho. Diante da sua visão de que a vida, em geral, era aprisionante, excessivamente carregada de obrigações inúteis e escravizantes, repleta de um excesso de trabalho, excesso de abnegação em torno de ideais fúteis e objetivos de vida diminuidores do seu potencial , apequenadores de sua "essência de vida", propõe que esse excesso deve ser eliminado. Absorve, integralmente, a atitude estóica em detrimento da sensualidade de Epicuro. Afinal, sendo coerente com seus propósitos, como é que poderia criar uma alternativa ao pensamento e à atitude comum de sua época, calcadas na acumulação capitalista, na vida material fabril ou comercial, sem abrir mão de seus supostos benefícios, se era justamente sobre esses "benefícios" que residia seu conceito de que todo homem é escravo ao aceitar a sujeição de sua liberdade no mundo por um pagamento tão raso?
Portanto, é pela via espartana, estóica, de uma "libertação" não apenas dos sentidos e prazeres que usualmente se vê na vida social e de caráter mais urbano, que Thoreau funda sua filosofia de vida. Desta forma, a idéia de "sugar a essência da vida, pelo menos a princípio, " distancia-se completamente do senso usual que se tem, talvez principalmente característica mais presente na cultura ocidental, de que isso estaria relacionado à exacerbação dos prazeres de todo tipo: os prazeres da mesa, do sexo, da embriaguez, da perda provocada da consciência de si através de estímulos externos. No fundo da proposta de Thoreau, há um outro tipo de prazer que será agregado ao final, como resultado da nova experiência do homem no mundo, mas a príncípio é da negação dessas evidências ocidentais que surge o golpe mais forte do seu texto. Tal constatação só se percebe melhor quando tomamos o texto original por inteiro ,na forma como escrito pelo autor. A questão que se põe depois de assimilarmos a maior profundidade e amplitude do pensamento sobre "Walden", é que, a partir dessa espécie de negação dos sentidos, não necessariamente ocorre um empobrecimento do viver, como poderia supor. Para Thoreau, esse rasgo estóico necessário ao homem contemporâneo sobre sua vida é necessário para que suas energias não se dissipem no caos improdutivo das grandes cidades. Existe, ainda inexplorado, dormindo no fundo de alguma floresta, um "verdadeiro sentido" da vida, algo poderoso e inusitado que apenas um retorno ao contato íntimo com a natureza poderá despertar. É onde surge a idéia de transcendência. Não é exatamente o conceito comum de transcendência, como em nosso meio se atribui às forças do espírito normalmente ritualizada por alguma religião. Embora Thoreau não fosse propriamente um ateu declarado ou anticristão, essa idéia de transcendência não é de fundo religioso, e a "espiritualidade" que surge na lida do homem de forma direta com a natureza está ligada muito mais a um dado tipo de materialidade não concreta, um tipo de energia sensível, perceptível, algo que somente se instaura a partir do momento em que se torna possível viver uma vida livre e desincumbida de toda aquela faina comum à vida dos moradores de grandes cidades, uma energia advinda de todo um preparo e intencionalidade do humano na busca de direcionar suas melhores forças à expansão e comunhão mais íntima com na natureza exterior, ou seja, se há transcendência, ela não é religiosa ou mística, num sentido litúrgico, ao enredar na vida humana todo aquele resto de vida que não é o homem mas o circunda. Não se vislumbra em nenhum momento a necessidade, quer seja teórica ou a própria narrativa visual ou sinestésica de sua presença na floresta como se estivesse na "presença" de algum tipo de entidade celestial ou divindade de natureza puramente metafísica ou religiosa, no sentido comum. Se existe um outro elo do homem com a natureza, ou se aqui, talvez pela primeira vez em sua época, se fala com empolgação e seriedade na total diluição ou substituição da relação sujeito x objeto do conhecimento (cânone ocidental e recorrente), não é porque um espírito exterior ou metafísico o conduza pelas mãos, como em Déscartes, mas sim porque se propõe para o homem um novo tipo de consciência, não-lógica, não-proposicional, que absorva sua relação com a natureza. A natureza ,naõ mais como o "externo", sendo parceiro ou inimigo de um "sujeito" , mas homem e natureza como uma e só coisa, indissociável. Esta, a verdadeira transcendência em Walden. Talvez um retorno ao que se é, a uma completude original talvez fruída por algumas comunidades humanas num passado remoto, status somente alcançável através de um olhar de fora, olhar que só se adquire quando o próprio homem se coloca "fora" das garras da civilização que ele próprio criou.
E aqui, novamente a idéia de frugalidade contra o excesso. Essa frugalidade que se propõe uma absoluta concentradora de forças com o propósito de permitir ao homem largar tudo que é supérfluo e viver mais intensamente a vida nos bosques não deve novamente ser confundido com algum tipo de misantropia. Thoreau constrói sua cabana isolada ás margens do lago Walden, mas não se isola em definitivo da vida na cidade. Ele mora no lago, mas está sempre em contato com a vila, para comprar o pouco que lhe falta e a terra não pode dar, para ler os jornais semanais, passear pelas ruas e ouvir as últimas "fofocas", como ele mesmo diz. Além disso, amigável e hospitaleiro, recebe constantemente visita de pessoas de fora, que param na sua cabana para descansar, partilhar com ele das frugais refeições obtidas com seu próprio cultivo de feijões, batatas e dos produtos que ele colhe na floresta como mirtilos, ervas e raízes, e dos peixes que pesca no lago. Com efeito, seu afastamento é de natureza reflexiva, filosófica, existencial. Segundo suas regras de vida, ele precisa se colocar à parte como um lugar, uma forma de pensar a própria sociedade em que vive. É estando à parte e lidando diretamente com o elemento natureza, que ele vai perceber melhor a interação entre as pessoas, tanto consigo mesmas como umas com as outras. É ali, também, às margens do lago e de forma bastante independente como produtor /comerciante de seus próprios produtos, que ele perceberá com maior rigor qual é o papel do Estado na sociedade americana de sua época, e de como esse papel por vezes era de um verdadeiro vilão. Um Estado que obrigava à guerra, impunha impostos desmedidos e beneficiava os excessivamente ricos em detrimento de uma maior justiça social. Esse segundo ponto de sua estada em Walden influenciará grandemente o seu trabalho como escritor , no futuro.
O aspecto diferencial de sua obra, uma vez proposta e encenada por ele mesmo sua estratégica "retirada" e propósito da busca de relativa independência diante da sociedade industrial, é que, em nova e aparente contradição, uma vez que está plenamente inserido na vida em comunhão com a natureza, aquela idéia original de "vida espartana", sofre novamente uma mudança radical. Porque agora, uma vez reatados os laços do homem com sua verdadeira vida ancestral na mata, eliminados os excessos de laços nocivos da sociedade de consumo, que ordinariamente, como modo de vida, cria sempre novos meios pelo comércio, pela indústria, pelo excesso de trabalho alienante e pelas maneiras comuns de se intoxicar os sentidos do homem nas cidades, este novo homem que renasce em contato com a natureza inicia um processo de transcendência com relação ao seu meio. Transcendência, repito, não como uma forma de legitimação de uma possível "alma" etérea, doada pelo criador em relação com a divindade, mas uma transcendência como "mudança do olhar" do homem sobre si mesmo e sua vida, tendo como mediadora a própria natureza, que passa a integrar seu ser-no-mundo, de forma inafastável, indissociável.
No contato simples e direto com a natureza, ou seja, quando o homem passa a ter que cavar o sustento com suas próprias mãos, de forma direta, construindo sua morada, vestimentas, alimentos, interagindo de forma positiva com a terra, com as árvores, com os animais que em condição de igualdade (isso e´fundamental para o autor) povoam com ele o planeta, sua consciência de mundo se altera. Ele passa a ouvir melhor, a sentir mais os cheiros, passa a saber respeitar melhor os ciclos da natureza que refletem sobre a própria vida, isso tudo de forma diametralmente oposta à vida artificial das cidades. Essa idéia de transcendência talvez nem seja assim tão nova, posto que, de forma semelhante ao relato de alguns estudos antropológicos feitos por pensadores em viagem pelo mundo, com experiências originais de comunidades indígenas não apenas da américa do norte, mas experiências resgatadas de relatos pré-colombianos dos índios da américa do sul e outras tribos espalhadas pelo mundo. A incorporação do "elemento homem" como mais um elemento dentro de uma ordem geral e harmônica da natureza, uma ordem partilhada com igualdade entre todos os seus integrantes, que adquirem status especial de sagrado, mas um sagrado que permanece imanente, mesmo quando transcendente. Por isso Thoreau foi muito mal compreendido à época, tanto por defensores quanto por detratores. Uns o julgavam solto demais, com tendências ateístas, contra os dogmas religiosos. Outros o consideravam não apenas um cristão exemplar propondo um retorno ao cristianismo primitivo, da vida frugal e compartilhada na natureza, defendendo o criador. Ao que sugere nossa leitura, ambos estão distantes dos propósitos do autor.
É dessa forma que Thoreau também contribui, mesmo de forma indireta, para a dissolução de um dos cânones do pensamento ocidental, desde os gregos. A eterna questão entre a apropriação do mundo pelo resultado da guerra sujeito x objeto. Opondo-se completamente ao Cartesianismo (racionalismo) que norteou e ainda em grande parte norteia nossa cultura ocidental pelos fundamentos da matemática e da física, enfim das ciências aplicadas à natureza, que colocam esse sujeito em posição de comando, um comando lógico e impositivo sobre tudo ao seu redor, o homem de Walden, que abriu mão da civilização industrial, e assim ao viver na floresta, em contato com bichos, plantas e o céu azul sobre sua cabeça, passa se interar de outras forças que não essas da racionalidade obtusa e materialista dos números e estatísticas, que não aquela ditadura eclesiástica que impôs o cristianismo pacificador e alienante à cultura das massas. Para Thoreau, isso é um superlativo com relação à condição humana, por várias razões. Primeiro, porque ele achava possível uma forma de sociedade calcada nesse tipo de ordem aleatória, que pressupõe inclusive um "desgoverno" ou um governo anárquico (se é que é possível o termo), descentralizado e passível de interação maior entre seus próprios cidadãos, em grupos com voz ativa (isso será desenvolvido em diversos outros trabalhos, tais como "A desobediência Civil". Segundo, e talvez o ponto maior de sua filosofia, é que essa nova vida, atribuída pela história do pensamento como "transcendentalismo" e que irá influenciar um séquito de novos autores pelo mundo afora, é para ele algo que não aliena, porque não propõe qualquer ordem metatífsica, mas é capaz de aumentar a intensidade da vida humana sobre o planeta, ao eliminar seus entraves civilizatórios.
Melhor compreendido, ou para usar um termo mais caro ao autor, melhor "absorvida" essa idéia de que o homem não é algo ao lado, acima ou à parte na natureza, mas é peça integrante e indissociável dela, é a partir daí que se estabelece o cerne de "Walden". Como os índios habitantes da américa há séculos antes dos brancos chegarem, ele quer resgatar essa possibilidade única do homem poder ser novamente conectado com a mãe terra, com os irmãos animais, com os espíritos-planta, e isso se vê em diversas passagens do livro, descritos com uma belíssima visão poética. Homem , em certo sentido, é também planta, é também bicho , é sol e é árvore. Quando está na lavoura capinando as batatas ou os feijões que ele próprio plantou e colherá antes do inverno, quando toma seu banho matinal ou vespertino nas geladas águas do lago e de dentro dele contempla a imensidão silenciosa do imenso céu azul refletindo-se em sua superfície, ou quando quebrando o silêncio, vê o canto e o movimento da águia-pescadora mergulhando as garras para pescar o alimento do dia, ele é tomado pela beleza da coisa toda, e é nesse estado de êxtase criativo, um novo êxtase, um a seu sentir criado pela atitude de se desvencilhar do "lixo" material e espiritual que compõe a vida na sociedade industrial, é somente desta forma que se torna possível ao homem conectar-se novamente com sua própria essência, e tornar a intensidade da vida algo medular, uma vida de verdade, por assim dizer.
Thoreau é o pioneiro, dentro da era contemporânea, a militar pela "causa ecológica", a sentir e fundamentar de forma sólida esse afastamento voluntário e um retorno às origens do homem junto à vida natural, juto ele que teve uma criação urbana e rigorosa formação universitária e era conhecedor profundo dos clássicos não apenas do pensamento ocidental, mas um admirador da filosofia oriental que por sinal tem muita influência sobre sua forma de ver a vida, e sua magnífica obra Walden, não sem motivo, tornou-se precursora de uma avalanche de autores diversos dentro das mais amplas correntes de pensamento, tanto escritores quanto filósofos ou políticos mundiais que, com maiores ou menores diferenças, absorveram fortemente essa influência, de Tolstói a Gandhi e Martin Luther King, de Emerson a Nietzsche, de Hemingway a Kerouac e de Kerouac a Bob Dylan e o movimento contestador pós-guerra e ao Hippie- flower-power dos anos sessenta.
Numa vida que segue dentro da "civilização" massacrante, alijante, e tantas vezes miserável do ponto de vista da progressiva destruição do meio ambiente, da má distribuição das riquezas e das chances de plenitude dentro de um mundo dominado, mas contraditoriamente entender que isso não foi sempre assim, que isso tem suas causas concretas e históricas, entender até mesmo que existem alternativas. Compreender que, por conta de cada novo momento, único, inédito, temos sempre à frente a possibilidade de fazer tudo diferente, começando por uma leitura original da vida, pensar a possibilidade de um cotidiano que não é apenas o resultado matemático das probabilidades de X e Y calculadas e projetadas para nós no dia de ontem, e buscar uma absorção do dia à moda de "Walden", como se realmente tudo no mundo fosse incondicionado e sentindo que cabe a cada um prospectar dentro do seu dia, único, incomparável, e acima de tudo mágico, porque ainda não vivido, a atitude ou visão sobre a vida que a torna a nova experiência de viver, e não a repetição do vivido como planejamento, é experiência que não pode ser relegada.