Réquiem para Hannah Baker

É quando o mundo continua insensível aos teus gritos mudos
e tudo o que ouves dele não é mais qualquer consolo
somente acusações e sentenças proferidas à queima-roupa
como tijolos intransponíveis de um muro sólido e surdo
a memória que agora te volta à tona, com  tanta frequência
é o frasco de comprimidos ou a água morna da banheira
enquanto a lâmina afiada e fria, preparada no ritual
aguarda, como num manual, aquela instrução certeira

Quando o gatilho armado que, ao lado de  tua cabeça
repousa, relegado, antes que o pior aconteça
na explosão de matéria rubra a redecorar o quarto
na amarga espera para se tornar um retrato
quando o desejo maior é cessar todos os desejos
aliviar-se para sempre de ser, de ter, pensar ou sentir
porque a língua que praticas, a pele que tocaste um dia
na frente de um espelho, a razão bela e frágil de existir
o corpo-sem-medo que agora habita em ti
é objeto em despedida a imaginar outros vôos
e a coragem que ora inauguras é  pássaro
a buscar em caminhos improváveis as alturas

Mas, ora, há tanto tempo te preparas para esse momento
que em tua rotina te esquecestes  um grande ensinamento
ninguém discordaria de ti, da tua luta e tua senda verdadeira
pois não deixará de pronto, o mundo, de ser o lugar de toda dor
mas como tudo que dói, ou a duração de tudo que encanta
a vida sabiamente é passageira em suas feridas, podes apostar
e tudo cicatriza, mesmo o tecido diáfano dos sonhos rompidos

E é  justo no instante em que falha toda razão e foge toda explicação
que passa ao largo o sentido latente que deixaste morrer ao fundo
mesmo sendo o sofrimento a essência de tudo, o fato é que aprendeste
a desacreditar em ti mesma, ao sangrar e  abandonar assim teu coração
e contra toda pulsão que engendra a vida, relegastes qualquer amor
a centelha que pulsa em tudo que vive, que molha as folhas no sereno
que aquece os líquens no mais tenebroso inverno, que ilumina o breu
que nas noites ermas  instila sonhos nos olhos do que ainda não cresceu

É justo desse tempo que resta, de quem ainda hoje pretendes ceifar a quinta- essência
que teu ser ansioso aguarda para ocupar o espaço ilimitado e reservado dentro de ti
e como não se deve colher jamais antes da colheita, não se apresse o viajante a partir
acalma-te, respira, abre bem os olhos da coragem e absorve tudo ao redor: flua !
e verás que mesmo dentro da mais íntima sinfonia tua, do mais alto do céu praticável
à menor criatura que habita o chão, todos replicam o poder ancestral de fé na vida
não importa, agora, se isso é por hábito, desespero, gratuidade ou pura pretensão

Esse teu exagero no sentir e esse teu excesso de visão é que são as fagulhas pra atiçar o fogo
e se de um lado colocam-te à beira do abismo, também te resgatam no outro e pelo outro
não imagines, sem ousadia, que tudo será sempre mais do mesmo, porque tudo muda
retornaste à mesma vida, mas ela não é mais a mesma, porque tu também és outra agora

Importa saberes que não estás sozinha, e que toda criatura inteligente que sobre a terra respira
(a quem não foi retirada a condição de humano, ou por forças superiores teve a liberdade tolhida)
já pensou um dia, na sua hora mais silenciosa, se isso era tudo necessário ou apenas despedida

Sem a dor, sem o imprevisto, sem a diferença que, com perfeição, teu raro espírito concebe
seríamos todos máquinas irreparáveis, programáveis para desperdiçar a verdadeira força 
pois é justo na tua cor díspar, tua respiração acelerada e o delírio claro do olhar que tudo vê
é  no teu sentido não descoberto, na tua dor eclipsada, é justo na tua lágrima contida
e na inconteste sensibilidade diante da vida e diante do fundo tosco de todas as verdades
que estão as tais respostas para o sol brilhar aqui fora e o viver ainda possuir qualquer magia
é através do áspero tato que sentes ao tapa no rosto de uma realidade que não te acalenta
e de um presente que não mais te representa, que se forma a revolta e rearranjam as forças
do que ainda resta de humano sobre a Terra, e é essa peleja ainda hoje teu melhor combate
se nisso não enxergas sentido, com teu olhar de vate, é porque descobristes o segredo, enfim
não desesperes de tuas verdades, viva por elas, viva por mim, reinvente o mundo para quem chega
e se a vida é grande demais para ti, doe este excesso a quem ainda não tem: sejas generosa, uma vez!
quem  sabe assim não descobres na ausência implícita de sentido um novo e outro incrível motivo
talvez uma boa razão para que então se criem a partir do nada os teus outros sentidos?
 
Pois se ainda assim, em pouco não estiveres mais a partilhar conosco tua rica dança
é nosso próprio sentido que restará subtraído da tua original e única beleza
e o resto do viver, encolhido, tolhido, esvaziado de todas as certezas
continuará, para a eternidade, extorquido de qualquer esperança