O PAI DO MEU AMIGO ERA UM ESPIÃO
Quando completamos dez anos de idade, junto com toda a sabedoria do mundo, ganhamos ainda uma espécie de sexto sentido, uma antena parabólica mais aguçada e perspicaz, que consegue intuir as verdades das coisas ainda não acontecidas. E aquela verdade foi aos poucos se revelando, à medida em que entrávamos e saíamos da casa do nosso querido amigo A, depois das sofridas e intermináveis sessões das aulas de quinta série. Estávamos nos idos de setenta e qualquer coisa, pleno auge da famigerada ditadura militar que assolaria o país durante mais de vinte anos. Numa época onde as expressões “sete de setembro”, “patriota” e “nacionalista” garantiam o brilho de qualquer caráter e uma boa reputação, e em contrapartida, os termos “comunista”, “hippie” e “ter idéias próprias” eram terminantemente proibidas para crianças desde o nascer ao por-do-sol, dentro do espaço que compreendíamos como “rua”e é claro, depois do pôr-do-sol também, até o nascer do sol no dia seguinte, por precaução, no outro espaço comumente denominado “casa” ou “lar”. A verdade é que, por essa razão ou outras inteiramente desconhecidas, corríamos enormes riscos, todos nós, simplesmente por estarmos ali, naquele lugar, naquela época, por um mero acaso.
Enquanto o pau quebrava,
literalmente, nos idos de 70, no perigoso mundo adulto, a casa do meu amigo era
o verdadeiro paraíso para qualquer criança. Os pais sempre fora, trabalhando,
uma empregada que mais parecia uma segunda mãe, mas que ao contrário da maioria
das mães, era geralmente mais bem humorada, liberal e preparada para nos auxiliar nas melhores
bagunças e ainda fazer uns lanches inesquecíveis de tudo que é doce, sanduíche
e suco. Pensando bem, ela não lembrava muito uma mãe, vamos lá. Nosso amigo
ainda dispunha daquela raridade de ter duas irmãs, uma de idade mais próxima à
nossa, e outra menorzinha, que não apenas não eram chatas como a maioria das
irmãs, mas compunham com o resto da nossa seleta turma uma equipe e tanto para
nos ajudar a desfrutar de um quintal gigante com árvores, muita terra, mato,
areia e um cachorro Pastor Alemão amigo. Sem contar que a mais velha, V., era
realmente uma graça, com aqueles seus longos cabelos cacheados e os lábios
sempre marcados com batom rosa. Havia ainda
um quarto com uma variedade enorme de brinquedos de todo tipo, desde os
tradicionais jogos de tabuleiro, uma coleção de carros de ferro em miniatura matchbox , um estojo de química, jogo
de ping-pong, robozinhos de controle remoto e ainda, algo meio inexplicável
para um garoto daquela idade, meu amigo ainda dispunha de uma coleção de
artefatos indígenas que o pai dele teria adquirido em pleno Xingu, em uma de
suas muitas viagens pelo país afora. Seu pai, que conhecíamos mais por
fotografia do que em pessoa, era sempre ausente, viajava muito.
E foi justamente por
conta dessas ausências contumazes dos pais em casa que saltou logo minha
curiosidade infantil diante do quadro benéfico que se instalava naquelas tardes
com essa turma toda de quatro ou cinco amigos. Nenhuma outra casa tinha aquela
perspectiva do mundo dos sonhos. “Minha mãe tá na escola dando aula. Sai cedo e
só volta à noite”. “Meu pai tá viajando”. Invariavelmente eram as respostas
quando alguém indagava sobre o assunto. Logo esquecíamos e aproveitávamos o que
as tardes traziam de bom, sem adultos inoportunos para acabar com a festa.
O tempo passou, e um belo
dia vimos pela primeira vez o pai do nosso amigo, que por acaso tinha se
demorado em casa por uma semana a mais, entre uma e outra viagem. Alguma coisa
com seu vôo tinha atrasado e ele precisava remarcar a passagem. Num mundo onde
mal mal as pessoas em volta, numa cidade perdida nos confins do Brasil, possuíam
sequer automóvel, não é difícil imaginar o quão fantástico era estar próximo de
alguém cujo pai voava assim com tanta frequência; era quase como conhecer por
tabela o próprio Flash Gordon. E o Senhor L (acho melhor a abreviação
enigmática, cujas razões logo compreenderão), era mesmo um cara diferente. Eu
não era lá muito entendido de estilos e roupas de pais ainda com a idade de
nove ou dez anos, mas notava-se logo as diferenças. Seu aspecto lembrava muito
o que víamos nos filmes americanos. Cabelos cortados curtos com um pequeno
topete, aparado com máquina nas laterais, costeletas curtas e aqueles óculos
pretos e redondos de armação policarbonato, semelhante aos operadores da NASA,
que víamos nos filmes de ficção científica. Relógio tradicional de aro de metal
branco e correia marrom, calças sociais,
cinto da cor dos sapatos, sempre brilhantes, e normalmente camisa social de
manga curta, com alguma caneta no bolso esquerdo. Sempre de poucas palavras e
sorriso amigável no rosto, às vezes fazia perguntas sobre nossos brinquedos
preferidos e qual a matéria da escola em que nos destacávamos. Recomendava
estudos e principalmente que nunca deixássemos de jogar xadrez, seu jogo
favorito. “O Xadrez é a metáfora da vida”, eu sempre o ouvia dizer, e mesmo eu
tendo recém-iniciado minhas lições básicas no mundo de cavalos, bispos e
rainhas e ainda sem me lembrar direito o que vinha a ser metáfora, achava
aquilo de suma importância.
Algumas vezes, indo pegar um brinquedo esquecido na sala, eu vi o Sr. L. ao telefone no quarto ao lado, que funcionava como uma espécie de escritório, falando em voz baixa uma língua que às vezes eu não conseguia identificar. Também não entendia nada de línguas, como acho que até hoje não entendo, mas eu já sabia o suficiente das aulinhas chatas de inglês e sobre as torturas do verbo “to be”, pra saber que de vez em quando o que ele falava parecia mesmo o inglês das provas chatíssimas, às vezes não. Sons meio arranhados de “erre” na garganta, ou muito “L”, quem sabe? O próprio A. tinha me falado tempos antes que seu pai concluíra dois cursos superiores e falava mais de um idioma, além de já ter morado em outros países e contar no currículo com diversas viagens internacionais. Naquela sala com cara de escritório, mal iluminada por uma luz amarela, o Senhor L caminhava par um lado e outro, abria umas gavetas com chave escondida no armário de vidro, fumava uns charutos sempre acompanhado de um copo de conhaque. Na estante, vários livros sérios de capa dura, microscópio, globo terrestre, livros de interesse destacado por geografia, coleção fabulosa de “NatGeo”, outras revistas de viagens e uma chaise para fumar. Seria um tipo de professor? Algum executivo? Semblante sério, malocado atrás da porta do escritório desta segunda moradia que passou a ser a casa do meu amigo, uma vez que eu passava mais tempo lá do que na minha própria casa, eu espreitava o Senhor L, de vez em quando, enquanto ele anotava coisas num bloquinho de papel que depois amassava e guardava no bolso. Logo ele sumia por mais uns tempos e a casa retomava nosso paraíso de sempre. Até um dia em que, novamente livres para explorar, a curiosidade falou mais alto. Carlinhos na parceria de crime, Breno de vigia na porta do quintal para ver se Dona Sandra, a secretária, não voltava pra sala, e Zé Carlos distraindo nosso amigo A. com uma interminável partida de Xadrez. Eu e Carlinhos entramos no escritório pra escarafunchar gavetas. Chave escondida na mão, olha daqui, espia de lá, mexe em papel, gaveta destrancada na esperteza e decepção, os próprios espiões em campo, pra quebrarem a cara na sequência: não tem arma automática que nem o “agente 86 Maxwell Smart”, não tem código secreto rabiscado numa folha para iniciar a terceira guerra mundial, não tem o nome do verdadeiro assassino de Kennedy, e nem a fórmula de transformar metais em ouro. No máximo, um monte de papéis carimbados, uma foto tirada nos Estados Unidos, com alguma autoridade americana e a bandeira nacional daquele país ao fundo, uma coleção de selos raros em envelopes especiais, notas de dinheiro estranho e alguns documentos com foto.
Algumas vezes, indo pegar um brinquedo esquecido na sala, eu vi o Sr. L. ao telefone no quarto ao lado, que funcionava como uma espécie de escritório, falando em voz baixa uma língua que às vezes eu não conseguia identificar. Também não entendia nada de línguas, como acho que até hoje não entendo, mas eu já sabia o suficiente das aulinhas chatas de inglês e sobre as torturas do verbo “to be”, pra saber que de vez em quando o que ele falava parecia mesmo o inglês das provas chatíssimas, às vezes não. Sons meio arranhados de “erre” na garganta, ou muito “L”, quem sabe? O próprio A. tinha me falado tempos antes que seu pai concluíra dois cursos superiores e falava mais de um idioma, além de já ter morado em outros países e contar no currículo com diversas viagens internacionais. Naquela sala com cara de escritório, mal iluminada por uma luz amarela, o Senhor L caminhava par um lado e outro, abria umas gavetas com chave escondida no armário de vidro, fumava uns charutos sempre acompanhado de um copo de conhaque. Na estante, vários livros sérios de capa dura, microscópio, globo terrestre, livros de interesse destacado por geografia, coleção fabulosa de “NatGeo”, outras revistas de viagens e uma chaise para fumar. Seria um tipo de professor? Algum executivo? Semblante sério, malocado atrás da porta do escritório desta segunda moradia que passou a ser a casa do meu amigo, uma vez que eu passava mais tempo lá do que na minha própria casa, eu espreitava o Senhor L, de vez em quando, enquanto ele anotava coisas num bloquinho de papel que depois amassava e guardava no bolso. Logo ele sumia por mais uns tempos e a casa retomava nosso paraíso de sempre. Até um dia em que, novamente livres para explorar, a curiosidade falou mais alto. Carlinhos na parceria de crime, Breno de vigia na porta do quintal para ver se Dona Sandra, a secretária, não voltava pra sala, e Zé Carlos distraindo nosso amigo A. com uma interminável partida de Xadrez. Eu e Carlinhos entramos no escritório pra escarafunchar gavetas. Chave escondida na mão, olha daqui, espia de lá, mexe em papel, gaveta destrancada na esperteza e decepção, os próprios espiões em campo, pra quebrarem a cara na sequência: não tem arma automática que nem o “agente 86 Maxwell Smart”, não tem código secreto rabiscado numa folha para iniciar a terceira guerra mundial, não tem o nome do verdadeiro assassino de Kennedy, e nem a fórmula de transformar metais em ouro. No máximo, um monte de papéis carimbados, uma foto tirada nos Estados Unidos, com alguma autoridade americana e a bandeira nacional daquele país ao fundo, uma coleção de selos raros em envelopes especiais, notas de dinheiro estranho e alguns documentos com foto.
Tudo ia assim muito bem,
e nosso amigo A. era muito querido por todos, inteligente, comunicativo e boa
praça, e não poderíamos desejar algo melhor do que o quartel-general que se
tornara sua casa para nossas missões de todas as tardes. Para melhorar ainda
mais a cena, ele morava perto de uma quadra de futebol, que por sinal sempre à
nossa disposição. Não podíamos desejar nada melhor. Tínhamos bicicletas, peladas diárias, quintal grande com cachorro,
jogos de tabuleiro e uma enorme estante com todos os tipos de livros. Contudo, depois de dois verões no paraíso, no
retorno das férias de julho, fomos comunicados que a família de A. não
retornaria mais à cidade, pois havia se mudado para São Paulo. Depois do susto
e da decepção inicial, o tema foi se assentando e as rasas especulações davam
conta do básico: o pai buscara uma melhor colocação profissional, a mãe seguiu
junto, e assim se resolveram num lugar onde talvez o progresso batia mais
frequentemente à porta, diferente de nossa pequeníssima cidade desimportante.
Mas pra mim, não. Nunca engoli a história, e passei a buscar com rigor nos meus apontamentos afetivos e
memoriais os traços daquele sumiço repentino, numa época em que isso não era
incomum por estas terras.
E não era nada difícil
concluir o que aconteceu, pasmem. As pessoas é que andavam muito alienadas à
minha volta, a ponto de não enxergar o óbvio. O visual do pai do meu amigo,
igual aos operadores da NASA, com seus óculos de policarbonato pretos, suas
calças sociais, o cabelo estilo militar, as conversas em línguas estranhas, uma
incontida admiração pela estampa da bandeira americana em fotos ou no quadro ao
lado do globinho mundi azul no escritório, e mais: o homem só viajava de avião
numa época onde poucos por aqui sabiam o que era um avião. Ora, era um daqueles
espiões da CIA, que tanto víamos nos filmes. Um espião americano, em nossa
insignificante e isolada cidadezinha no interior do país. E como viríamos a
saber muito tempo depois, os mais antenados, é que a CIA ajudara não apenas na
instauração do golpe militar aqui no país, como reflexo direto da tal “Guerra
Fria”, mas declaradamente o apoiou do ponto de vista técnico e ideológico, sabe
lá o terror que se esconde nessas duas palavras. Nesse contexto, o que o pai do
nosso amigo iria querer por ali? Estava passando um tempo de desintoxicação dos
arquivos mundiais de buscas e capturas, enquanto preparava um retorno
estratégico ao topo do mundo? Acaso espionava alguma de nossas zelosas
instituições locais? Uma faculdade, duas escolas de segundo grau, um batalhão
de polícia e dezenas e mais dezenas de hectares de bois e café? Difícil
adivinhar o que acontece no mundo adulto, cruel e oficial dos espiões
profissionais. As aventuras do agente secreto 007 e sua paródia “Maxwell Smart”
e mais um monte de filmes de sessão da tarde já nos informavam sobre o mundo
sutil da espionagem. Mas o fato é que todos nós, que estivemos tão próximos
daquela casa e de nosso amigo nos últimos tempos, provavelmente estávamos desde
sempre correndo risco de vida. Imagine só: certamente fomos documentados,
estudados e filmados por minicâmeras secretas enquanto brincávamos
inocentemente com aqueles quebra-cabeças espiões ou invadíamos em segredo o
escritório do Senhor L, ou e então quando
quebrávamos deliberadamente as vidraças da casa vizinha, na calada das
tardes, ou quem sabe, no momento em que amarrávamos uma bombinha num barbante
nos pés de um pardal apenas para vê-lo voar em dificuldades. Fomos flagrados
por alguma anotação criteriosa e olhos profissionais enquanto nos apropriávamos
dos frutos do quintal alheio, que por acaso era extremamente rico em
jabuticabas, mangas e mexericas, e sobretudo, já deviam saber agora de nossas
informações sigilosas sobre como pretendíamos dominar o mundo no tabuleiro de
War, tudo isso agora certamente já devia estar sendo debatido por todas as
cúpulas ideológicas desse planeta. Nossas experiências no laboratório de
química do nosso amigo seriam catalogadas e usadas como prova dos nossos planos
subversivos. Era apenas uma questão de tempo, agora. Os americanos iriam nos
invadir a qualquer momento, e tudo por conta das informações do pai do nosso
amigo, espião da CIA.
Algum tempo depois, seja
pelo aumento da complexidade dos exercícios na escola, que tomava inteiramente
nossa atenção, seja pelas questões diversas trazidas pelas voltas do coração
permanentemente apaixonado, coisa que já começava a se instilar em meu peito
nessa idade, o assunto da espionagem sumiu da minha vida, assim como rapidamente
já tinha sumido primeiro da mente e do espírito dos outros colegas, comparsas e
co-subsersivos mirins que tramávamos os destinos do planeta nas tardes em casa
do nosso amigo. Mas não há como não revelar um fato que algum tempo depois me
pegou pelos pés, mudando um pouco minha compreensão do assunto e fazendo eu me
questionar se não tinha perdido alguma coisa naquela história toda: Depois de
muito tempo desconectado, recentemente tive notícias de A, por outros colegas.
Nosso amigo A., uma vez terminado o ensino médio, mudou-se de São Paulo com a
família direto para Moscou, para estudar
engenharia química, pois conseguira bolsa integral na principal universidade
daquele país. Não apenas formou-se com louvor, como fizera ainda mestrado e
doutorado e hoje era um dos importantes nomes da equipe de professores e
cientistas nucleares da Rússia. Na sua foto feliz de rede social, ele aparecia
ao lado do pai, já velhinho, ambos posando perto do bonito palácio do Kremlin
em meio à neve alta, com grossos capotes
de inverno e usando um daqueles bonezinhos engraçados de pele de urso.