"MINHA LUTA": DESAFIANDO O NADA
A felicidade indisfarçável de leitor, quando você, nos dias de hoje, ainda fuça essas megastores da vida e topa com um “best-seller” de prateleira que pode ser considerado uma obra de qualidade, algo com o que vale a pena dispender o precioso tempo e saber, por aquela intuição da leitura das primeiras páginas, que isso lhe acrescentará vivência, este sim o maior objetivo, e não apenas a triste erudição perdida em autocomplacências descartáveis. Sim, porque não sei se alguém mais tem essa nostalgia, como eu, de que naufragou o critério antigo e mais rigoroso para definição de livros que chegaram a ser campeões de venda em outras épocas, como “O nome da rosa”, de Umberto Ecco, “Memórias de Adriano”, de Marguerite Yourcenar, ou “Cem anos de solidão”, de Garcia Márquez, e hoje o que vemos por aí, em todos os tristes tons de cinza, é de fazer chorar.
Uma das exceções possíveis é a bela trajetória “Minha Luta” ( é bom esclarecer que, apesar do título estigmatizado, não há qualquer apologia ou referência nazista) onde norueguês Karl Ove Kanausgärd desenvolve uma longa narrativa autobiográfica (são seis volumes, no total) de influência nitidamente proustiana -- o que é explicitamente admitido logo nas primeiras páginas do primeiro volume-- tomando como parâmetro na descrição surpreendente de detalhes e percepções da narrativa justo a tão malfadada e mal falada rotina, aquele monstro que todos abominamos, por tradição ou impaciência, apesar de não nos livrarmos dele tão facilmente.
Seus relatos, admitidos pelo próprio autor como extremamente fiéis à realidade, motivo aliás de diversos problemas para ele, dentre os quais o próprio rompimento de elos familiares e de amizades, possuem um tipo de beleza incomum. Principalmente porque ao abrir mão da busca de uma fórmula literária, um tipo de estética primorosa ou de uma imaginação produzida de encomenda para encantar o leitor, o que encanta às avessas é a falta de vaidade do autor ao se expor tanto, e de forma tão direta.
Por isso o que chama a atenção aqui, não é tanto aquela capacidade como geralmente têm os grandes poetas, de descobrir com um olhar potente, telescópico ou microscópico, nas frestas de luz entre as sombras do dia, a cor fugidia entre os cinzas da rotina, capturando-a ainda que por meros instantes com a beleza de um olhar único em seus versos. O que instiga é a proposta, talvez mais rara e certamente muito mais difícil de ser executada, de compreender e relatar como é que uma vida comum como outra qualquer, cheia de problemas banais e pontuada por belezas, graças e tragédias universais a qualquer mortal, poderia de alguma forma se constituir em interesse editorial ou narrativa a atrair tanto a atenção do outro, uma vez que não se propõe à exceção, à busca do olhar singular ou à apreensão ao que foge aos olhos do corriqueiro.
Quando o nada se põe em questão, porque é justamente do que se trata, o nada que por fim é a própria condição humana, através de um olhar que não cria heróis nem vilões, que não imagina tipos ideais nem fórmulas de acusação ou redenção da própria humanidade, proposta que não pretende doutrinar valores estéticos nem morais para quem quer que seja, e usa como ponto de partida a mecânica rotina mais singela que acomete praticamente todos os mortais que todos os dias se levantam da cama para estudar, trabalhar, cuidar de filhos, fazer compras, cuidar do cachorro, enfrentar o trânsito, em alguns casos a solidão etc , lembro-me logo de dois outros trabalhos em que vejo a mesma conexão. Um, é a obra para seriados de tv paga, “Seinfeld: série sobre o nada”, criada nos anos 90 uma das coisas mais inteligentes já produzidas para a tv. A outra lembrança é a obra do poeta americano William Carlos Willliams, que ao mergulhar na realidade imediata, mais próxima ao olhar, dos sentidos, na efervescência da América industrial do séc. XX, também consegue essa façanha de ver o "real" que nos rodeia em sua estrutura mundana. Cada um deles à sua maneira, e intencionalmente, evita abordar o extraordinário, o eventual, a exceção, como se nisso residisse uma chave essencial para a leitura da vida.
É como se dissessem ao leitor: pare de se martirizar por não ser especial. Ora, não pensemos se tratar de questão pequena. Não é. Pessoas se matam e matam aos outros com armas automáticas e bombas porque simplesmente não são notadas, não se acham especiais. Pessoas pagam caro por cirurgias desnecessárias ou investem o que não têm em roupas caríssimas e estéticas sofríveis apenas por carência. Ora, trata-se de uma ótica valorativa, essa de procurar sempre a diferença radical que poderia nos dar a originalidade absoluta, a criação absoluta, tornar-nos indivíduos superdotados, especiais em qualquer área ou atividade da vida para a qual nos dirigimos, por vocação ou destino. O fracasso ou o "comum" sempre foram e continuam sendo desprezados compulsivamente como negativas hediondas. Até mesmo essa singularidade é comprada, não sejamos ingênuos. A competição individual desenfreada, na busca "do olhar", "do sabor", "do talento", "da vocação" que segundo dizem, vai mudar o mundo. O sistema mesmo já calculou seu preço: a roupa mais cara, o carro mais potente, o perfume que confere personalidade, a fala mais luminosa, a profissão de ouro. Daí a importância das concepções artísticas como estas, que propõe outro olhar. Esses autores nos dizem ainda, em sua extrema lucidez, com toda calma, o que deveria ser óbvio, mas não é: Pare de pagar preço tão caro para ser “único”, “original”, “gifted”, pois se até Picasso nos revelava que seus geniais insights não seriam nada sem as horas e mais horas exaustivas de estúdio, na velha e conhecida ralação.
A nova abordagem, que pressupõe mudança radical em olhar e sentir, diz que o sentido da vida não reside mais no extraordinário, no que de fato não acontece porque a aventura como sabe qualquer sartriano que tenha lido “A Náusea”, é coisa que só acontece enquanto ainda não aconteceu, mas a grande aventura da vida está em saber ver nas engrenagens próprias do comum o que não era para ser comum. A rigor, nossas vidas e histórias já são incomuns por si sós, em certo sentido. A rotina é que nos embaça as percepções. Essas propostas rejeitam assim, cada uma à sua maneira, o propalado “mistério”, a “solução oculta”, que segundo nosso imaginário coletivo precisa sempre ser rebuscada, prospectada na cansativa e estereotipada tarefa solitária do escritor-minerador-melancólico porque dado à exaustiva tarefa de descobrir as engrenagens do real na verdade extremamente subjetiva que só surge para si.
Nessas obras mencionadas há uma nova concepção de vida: uma em narrativa do cotidiano sem floreios de um jovem norueguês da geração 80, como no caso de “Minha Luta”, outra através de uma sitcom de humor narrando as desventuras em série de um grupo de amigos nova-iorquinos dos anos 90 envolvidos com a cultura de mídia e as agruras da vida urbana numa das maiores metrópoles do planeta, e o terceiro, na poesia de Williams, talvez mais abertamente caracterizada nesse perfil com a obra “Patterson”, onde se trata menos de achar nas fissuras do chão pisado aquela pequena flor não percebida pela coletividade, essa imagem bucólica do poeta-descobridor clássico, e sim mostrar como a vida, em geral, com seus ritmos, rotinas, previsibilidades até certo ponto, inadvertidos de toda sorte que explodem em qualquer cotidiano, suas estéticas materiais da rua, da fábrica, da casa, dos móveis domésticos e situações de encaixes e desencaixes da rotina como ler um livro, conversar com alguém na rua, passear num ônibus a caminho do trabalho, tomar um conhaque no boteco da esquina, é como se não houvesse mais “um além”, um “segredo”, um núcleo explicador de tudo que precisa ser ansiosamente escarafunchado e exposto. Ora, a vida está aí, ao alcance de todos.
O grande valor dessas produções e desses olhares, muito mais de vivência do que apenas de fruição estética, reside em fazer ver como é que NISSO, e não fora disso, é que está a poesia, como em Williams; NISSO, e não fora disso, como em Karl Ove Knausgärd está a evidência da própria narrativa, NISSO é que enfim, “O discurso sobre o “nada” , do genial Seinfeld, está o humor maior de se estar vivo num mundo caótico, terrível e belo como este nosso, e de viver as situações tantas vezes nada nobres, nada especiais, nada particulares que atingem a todos nós e nos compõem muito mais como pessoas do que os eventuais momentos de exceção idealizada, aquela velha e conhecida magia intermitente, e tantas vezes ausente da vida, em busca da qual tantas vezes dispendemos a própria vida em vão. Num caso, ao seguirmos esse idealismo da exceção, estaremos sempre flertando o romântico frustrado que reside no fundo de cada sonhador. No outro caso, mais chão, a princípio podendo parecer menos atraente, mas trazendo em si as possibilidades de ao aprendermos a lidar melhor, de forma mais rica com a condição humana universal de nossas próprias rotinas, em vez de demonizá-las gratuitamente, aprendamos com alguma arte a criar algo de grande valor a partir daí, da sua afirmação, e não da negação, como hoje ainda é a regra.