O garoto da camisa preta
Ele vivia assim, sentado
na mureta da quadra de esportes
ensimesmado
uma criança bastante comum
no que tem de mágico e maldito
em ser criança
para um mundo governado
por adultos
Caçula e franzino de três irmãos
a irmã mais velha, preferida do pai
o irmão mais velho, preferido da mãe
ele não era bom na escola
nem era bom em jogar bola
Sobrava sempre nos grupos
colecionava apelidos e desfeitos
entre os supostos amigos
enveredava-se, quase sempre
sozinho por seus mundos
perdidos, confusos
dominados por criaturas
sem nome
Mas um dia
logo ao completar de ano
um estranho amigo chegou
com bandeiras, propósitos
e uma camisa preta
agora havia outros amigos também
tantos que fizeram um clube
e todos pensavam do mesmo jeito
e todos gostavam das mesmas coisas
lá ele era acolhido e respeitado
frequentavam os mesmos lugares
saíam à noite juntos, sempre em grupo
e marchavam juntos também
em suas estranhas ginásticas coletivas
onde não tinha mais bola
e sempre de camisa preta
com muitos gritos de ordem
todos muito jovens
menos o instrutor
grisalho, falante, marcial
Os posters da Marvel
que lotavam as paredes
do seu quarto
deram lugar a outras imagens
novas figuras de heróis
com poses altivas
queixos para o alto
fotos antigas
de uma guerra perdida
e suas eternas camisas
pretas
salpicadas de estrelas
Em seu novo clube
também faziam tatuagens
gostavam de correntes
e toda semana se reuniam para ler
o mesmo livro estranho, de capa dura
reinventado o novo sentido para o nobre deus nórdico
reinventado o novo sentido para o nobre filósofo alemão
agora havia um novo sentido para tudo, afinal
um novo sentido para o próprio sentido
até mesmo para o livro mais lido
e agora não havia mais humilhação
e agora o mundo se explicava à luz do dia
todas as difíceis engrenagens da dor
todas as complexas engrenagens do sistema
era tudo muito simples
um grande caos perpetrado
por sub-raças, subculturas
e a eterna moral baixa dominante
bora consertar tudo
é só apertar uns parafusos
ruim no começo
mas no fim tudo se ajusta
Uma vez diagnosticado o problema
restava a solução simples:
mudar os rumos da história
tarefa para a qual
ele mesmo era peça
fundamental
Aprendia uma nova canção
entoada sempre com a mão no peito
e enorme emoção
frustrado na urna
da quadra logo partiu às ruas
de receita simples e contagiante
sua prática dali por diante
era lutar pelo supremo ideal
socar e incendiar inimigos na balada
era raspar a cabeça para não se misturar
era panfletar a nova ordem mundial
regrar mulheres
regrar crianças
e a arte, finalmente
o que mais importava regrar
nas ruas, nas portas dos centros de perdição
o garoto da camisa preta, enfim
havia descoberto a solução