“QUASE SERTÃO”


Colorido e musical como tudo que vem da Bahia,  esse baiano-capixaba e artista multifacetado Paulo Sena (cujo nome quase prenuncia teatro e movimento de cinema) encanta com seus contos. Conhecido aqui no estado do Espírito Santo e fora dele pela  cultura do teatro, do cinema e da dança, com diversos trabalhos premiados nesses gêneros e muito bem acolhidos pela crítica e pelo público, Paulo estreia agora oficialmente no campo da literatura com seu belíssimo “Quase Sertão”, livro de contos contemplado pelo Edital Funcultura/2016.  O livro sai pela Editora Gracal, em primorosa edição, tem no total vinte e quatro narrativas curtas.  Projeto gráfico, belas ilustrações e capa por arte de Diego Scarparo. Capa, aliás, que é talvez a mais bonita do ano, por estas terras capixabas
 Tive a oportunidade feliz ao ler uns tempos atrás, em primeira mão, o conto de abertura “Matilda e o Vento”, e sentir o imediato encantamento não apenas pelo estilo, pela enorme vitalidade do texto que saltava aos olhos, mas principalmente pela ousadia do autor em abrir mão de formalismos da língua para buscar fundo na oralidade regional da sua terra os significados mais amplos ou mais específicos das palavras e suas inter-relações. A oralidade. Sim, hoje em dia redescoberta contra o antigo preconceito que imputava apenas à linguagem culta e escrita maior valor e contexto, evoca outros mistérios por sua própria riqueza e dinâmica, e a simplicidade aparente de um texto em sua fluência, porque pauta-se em parte na forma como as pessoas falam na “vida real” aqui fora é, via de regra, o que mais engana ao leitor desatento, porque sugere uma facilidade que não há. Não nos podemos esquecer de que o grande Guimarães Rosa, apenas para citar um forte exemplo, era um pesquisador-registrador-ourives da oralidade.
      A densidade do mundo está ali, ao lado, em cima e por dentro daquelas palavras e histórias, em sua forma livre e direta. Ao passo em que permitem uma imediata identificação do leitor com aquele mundo e suas nuances, ao mesmo tempo poderiam sugerir um aspecto pueril quando se vê que a forma de falar sem rebuscados escolásticos e os temas tratados são aparentemente comuns e envolvem  personagens e contextos como  crianças e velhos, trabalhadores braçais, a vida no interior de uma pequena vila com riacho ou à beira da praia, casas com coqueiros no quintal, horta, pomar e criações ciscando no terreiro. Grande equívoco.  O paradoxo aqui é que ao optar como autor, de forma consciente, pela pesquisa da linguagem viva da rua, da comunidade, da vila, abrindo mão da suposta segurança de seguir cânones, escrever simples, fluente e com densidade torna-se na verdade tarefa muito mais difícil, não se iluda o leitor, e sobretudo, tarefa reveladora de outras realidades possíveis em vida. Porque a língua revela o real, e quanto mais fragmentada, reportada diretamente aos seus universos regionais de nascimento, mais ricos seus significados, sua possibilidade de poiesis. Essa suposta simplicidade que o é muito mais por elegância do estilo do que por qualquer limitação criadora, mais por anti-verborragia do que por excessiva escolha de palavras, é conquistada na arte do tempo. Porque pressupõe uma depuração do estilo e uma trajetória anterior de quem escreve, muita pesquisa, muitas vivências, muita tentativa e erro, muita coragem para abrir mão de fórmulas já estabelecidas para tornar-se fiel apenas a um determinado olhar que ora se compõe, mas também poder dar-se a chance de encontrar nesse movimento a tão famigerada “própria voz” num ambiente que tantas vezes resvala na  segurança do padrão. E o mais difícil para o autor, tarefa  que só surge mesmo é com o tempo, e depois de se ter ultrapassado tamanha prova de obstáculos,  é o exercício universal de se colocar por instantes no lugar do leitor, e olhar “de lá para cá”, tentando captar de fora, como parabólica ao longe, qual o grau de imersão e convite o escrito traz em si. Impossível saber. Mas é tentativa inafastável que se faz.
                Há um outro aspecto que gostaria de ressaltar, que também tem a ver com ambiência, contextualidade, e creio que a imagem será melhor explicitada por analogia. Por conta da bela construção de frases, narrativas e sentidos que muito lembram a prosa poética, e fazendo aqui um  paralelo  com dois outros grandes autores contemporâneos de língua portuguesa muito reverenciados, “Walter Hugo Mãe” e “Mia Couto”, é curioso notar como em Walter Hugo Mãe, as densas narrativas e a grande dramaticidade de seus personagens, seja como em “Filho de Mil Homens” ou “A Desumanização”, o foco intenso da narrativa, enfatizado com muita riqueza pela prosa poética também tão utilizada pelo autor, dirige-se primordialmente às relações entre personagens e reside diretamente nessa intersubjetividade a força da história, do imaginário e seu grande apelo. No caso de Mia Couto, embora também seja bastante fértil na riquíssima prosa poética, o papel da terra-mãe, o lugar, o espaço “África”, é o pano de fundo e espinha, que ora subliminar ora explicitamente presente, dão o tom da relação entre as pessoas, e das pessoas com o mundo ao redor. Em Hugo, embora haja ambientação diferente a cada livro, as histórias sobressaem-se sozinhas, independente do contexto, pela forte dramaticidade dos personagens humanos e as relações entre si. Em Mia Couto, o terceiro elemento, terra, é que dá o tom. O lugar é o mais forte. Terra, enquanto terra mesmo, chão, e a magia tribal que disso emana, de seus rios, de suas árvores, de suas gentes produto desse barro criador, e também Terra n’outro sentido: planeta, mãe, berço, como gestante da humanidade e aflita entidade viva que se apercebe da dor de seus filhos constantemente em guerra. Daí que seria possível imaginar as histórias de Walter Hugo Mãe possíveis em outras ambientações visuais, outras terras, um tanto desvinculadas do ambiente onde se desenlaçam, porque é como se seu texto não dependesse tanto disso, e por outro lado seria muito difícil imaginar isso para o mundo criador de Mia Couto, onde é quase não se concebe  qualquer história, sopro ou movimento seja humano, de bicho ou de planta sem o contato íntimo, profundo, materno e às vezes brutal com as terras Africanas.
               Na minha leitura, o autor Paulo Sena consegue um elemento de junção criativa em que, ao mesmo tempo, como na linha medular de Mia Couto  revela logo de cara o lugar, (e isso não é escondido nem sugerido, mas dito de forma cantante e direta), fazendo a união forte do elemento humano com as referências do que se vê e se toca ao redor, e simultaneamente, ao vincular esse humano à terra que habita, evidenciando que essa terra tem uma particularidade  que ora se torna visível pela forma poética  de se utilizar a relação entre oralidade regional e  a criação de palavras. Paulo eventualmente as cria sem cerimônia e  com muito tato, quando precisam atender ao sentido que ele busca naquele espaço. Suas histórias se tornam densas porque não apenas são ricas em  elementos universais como dor,  loucura,  prazer, os tratos complexos e costumes presentes desde as metrópoles até os rincões mais perdidos do planeta, mas porque há um regionalismo na fala e no gesto que são ao mesmo tempo intraduzíveis, fazendo com isso que o leitor ao imergir nos textos sinta que aquilo ali só poderia ter acontecido daquela forma,  naquele lugar e naquele tempo do conto, o que causa um efeito misto entre o onírico do realismo fantástico pela natureza de alguns textos, em particular, aliado a uma crônica forte da vida no interior perdido de um tempo aonde ninguém mais visita.
           “Quase Sertão” é título forte, que também evoca de plano para nossas mentes associativas de leitores algo clássico do inconsciente coletivo literário, como o “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, ou  “Os Sertões”, de Euclides da Cunha. De Rosa, um dos seus autores preferidos, Paulo certamente herdou o tino da pesquisa atenta da oralidade, além da arte de fazer as palavras dançarem em seus sons, sentidos e formas mutantes. A  fluência poética de movimentos que vai compondo as histórias lembra realmente um corpo, porque tem organicidade a forma do arranjo dos textos no livro, resultado para cujo sucesso certamente muito contribuíram sua experiência simultânea com o teatro a dança. E de Euclides da Cunha, possivelmente herdou por imaginário a locação, projetada aqui sobre a sua Bahia do interior, também sertão, na verdade ainda pertencente àquele mesmo naipe dos  “Sertões” que reside no imaginário universal de nós que não somos nordestinos, pela identificação geográfica e humana que todos temos “do outro” que habita aquelas terras extremamente ricas em sua cultura popular.
              O que resulta disso tudo, numa estética bastante ousada, por sinal, ora é o “maravilhamento” do mundo como pathos e novidade que transcende qualquer coisa dita comum, porque  vai buscar plasticidade e beleza através de contos como  “Banzo’, “Matilda e o Vento” , “Boizim”, “Brejo”, ora em histórias populares com  intenção de cordel como “Os desejos de Lola” e “A procissão”, ou nos inspirados  “causos” como em “Oco”, “Furdunço” , “Os Velhos” e “Os filhos de Riboaldo”, estes últimos em curtíssimas narrativas que alcançam grande expressividade ao nos apresentar o universo entre real e imaginativo por um olhar que se poetiza. Aqui, toda história é poesia e o trivial se engrandece pelas palavras .