Oferenda

Súbitos
os símbolos
brotam
da esquina
uma humanidade retomando
                                        rituais
coletânea de tendências
depositadas brutas
ancestrais
nascidos assim do chão
caleidoscópio de poesias densas

épocas
costumes
crenças
penso em fotografar
(um cético que adora o sagrado)

até tiro do bolso o celular
mas meu medo de roubar a metafísica
do ato me dissipa

como os primeiros índios do Xingu
no contato com a câmera branca
preocupados em que o viajante
lhes roubasse a alma
(e roubou)

velas brancas, velas vermelhas
umas inteiras
outras quase inteiramente derretidas
ardendo ainda
nas primeiras horas da manhã

moedas de vários tamanhos numa cesta
com grandes rosas brancas
bonitos arranjos
alguns búzios e sementes
alguns santinhos também
(eu não saberia dizer quais)
a cachaça, litro a meia
o grande galo negro, pescoço cortado
seu sangue coagulado sobre o chão
e pedaços de vidro
sobre fragmentos de cristal pedra

o sol refletindo
naqueles cristais logo cedo
miríades luminosas contra o asfalto
eu quase podia tocar a energia ao redor
que Orixás foram evocados na libação
quais entidades se apresentaram para a missão
que desejos os mais secretos
foram demandados com fervor

fechamento do corpo contra inimigos
a bênção sobre disputas territoriais
a cura do peito que procura abrigo
lenientes contra todo tipo de dor

uma ânsia de intensificar o prazer
livramento de alguma pena de morte
juras de vida em nome do amor

a cada dez passos uma nova perspectiva
viro o pescoço
pra contemplar o trabalho

aquele amuleto espargido em rito
sobre o cimento frio da metrópole
diz muito mais sobre nossa memória
sobre quem somos e o que somos
do que tenho visto tão repetidamente
nesses tristes livros de história