Pare e siga

Vôo sem asas, braços abertos
desço o morro na ventania
duas rodas sem freio
nas mãos, a brisa
generosa do dia

Paro na curva, fotografo
apenas de memória
a bela baía de Vitória
atletas e remos 
Álvares versus Saldanha
o bonito quadro que surge quando

contrariando a natureza
(sempre egoísta),
homens conseguem
concordar em alguma coisa
e seus esforços 
remando na mesma direção
são algo mais
além de mera duração
o esporte é a metáfora da beleza
do algo além
contra o puro desperdício de tempo
e  força bruta do cotidiano

Sigo leve, fotografo
(e meus olhos são câmera, memória
meus olhos são imaginação)
A garota de patins na pista livre
passa deixando seu rastro
não é daquelas experts na arte
como vejo tanto por aqui.
é até meio desengonçada 
pra dizer a verdade

Em seus patins
como um patinho
que ensaia os primeiros passos
um pouco longe da mãe
a solidez em seus vintepoucos
na  fluidez dos traços
de um mesmo corpo
a mulher que insiste
(já vencendo)
onde há pouco
reinava a criança

Coxas torneadas
corsário bordeaux
joelheiras apertadas
cano alto
retrô
fechando demais os joelhos
patins de quatro rodas
bota branca

difícil crer que ela continua de pé

Em movimento
todo desejo se sustenta
porque reside apenas no tédio
a inércia que derruba
viver é descoberta
é como andar de bicicleta
pagamos as aulas com tombos 
e no fim aprendemos a coisa sobre
a qual nos debruçamos
nós a absorvemos
e é nos tornando um pouco o outro
que aprendemos a ser
aquilo que realmente somos

Aprendemos o  outro
e viajamos através dele
nosso passaporte seguro
para o desconhecido
que habita em nós
e é justamente pela experiência do outro
é quando aprendemos o outro
que nos tornamos maiores
isso, o que por fim nos distingue
do resto dos animais
que apenas repetem pelas eras
seus tacanhos rituais

Ela sorri assim mesmo
alheia aos tropeços
se anima  e vai
fotografo, mesmo sem câmera
(o registro da vida, assim sem jeito, de início,
que ganha beleza aos poucos quando se move)
o movimento se estabiliza no caminho
e logo ela pega o jeito
estica na pista, a cada passada
eu sigo, de camelo na lateral
um pouco atrás
sem que ela perceba
(minhas lentes são meu segredo:
saber-se observado
estraga esse tipo de beleza
que não quer a posse
mas apenas contemplação)
o vento vem do norte
e ela pedala nessa  direção

Ela não usa capacete 
(deveria)
mas para minha sorte, neste dia
seus cabelos soltos longos
contra o vento forte
raios dourados e vermelhos
são qualquer coisa à parte
e as mechas são flamejantes cobras
inquietas, de couro espelhado
tinta-ouro, no quase- cobreado
reflexos no sol de beira-cerca
fim de tarde na praia
alinhando o vermelho das castanheiras
ela vira à esquerda
na altura de Jardim Camburi
e eu sigo meu pedal
me despedindo da garota de patins retrô

Uma parada pra Coca , na volta
porque hoje não quero coco
cansado de vida saudável
(a vida mesmo gosta é de ir contra
pra mostrar força. saúde demais incomoda,
porque não tem a sedução arrebatadora
de tudo que é proibido)
na praia, os coqueiros e sombrinhas
desvelando toda libido
corpos em profusão
em chamadas de verão
e na memória amaciada, aqueles cabelos
o perfume amendoado
me aveludando por dentro
e o traço leve de suor
nessa cidade que quer ser maior
num tempo deliciosamente  lento
de uma manhã de domingo