Escreviver (desconstruindo Pessoa)

"Não tenho ambições nem desejos
ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho"

(F. Pessoa)
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Tenho ambições e infinitos desejos
ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de não estar sozinho. 


(Claus Zimerer)

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Ser-escritor, verbo atemporal
e como tal, o desejo implícito
que quer estar  livre das eras

                                        quer estar no meio da vida
                                                  por entre seus lençóis de seda
                                                                   quer lamber a ferida
                   
com sua língua de sal

para que ao doer cada vez mais a inspiração nunca falte
o sangue nunca pare o coração não assente
e o corpo transcenda em palavras

quer tentar a lavra
sem qualquer certeza de sucesso
para além de qualquer
condicionamento
mesmo quando ainda não se sabe
com exatidão
o que seja a liberdade

                                              quer estar em guerra
                                           com qualquer outra força
                                          que não seja  honestidade
                                            intelectual ou espíritual
                                            a fidelidade a si mesmo

                                     (a única que realmente importa)

ser-escritor é nunca perder a esperança
                                       do casamento perfeito
                                                   entre a intenção do sentido e a fala  que o encarna
                                                   entre o som  e o corpo que o profere
                                                   mesmo quando a voz enrouquece
                                                   quando a mente enlouquece

o ser-escritor é posição dura, conquistada todo santo dia na labuta
                                                                                     é o ferido quase caído,
ao qual os passantes atiram seus trocados
e que mesmo quebrado
jamais  fugirá à sua própria luta
inglória, anônima, individual na maioria das vezes
sem poder contar com olhos atentos ou qualquer escuta
a não ser a sua

o destino da escrita que não pode depender do acaso
nem de prêmios não pode depender
de saudações nem qualquer tipo de pódium
porque por paradoxo todos gostamos de troféus
gostamos de ser acarinhados amaciados
se a palavra puder ser nossa moeda
compraremos o mundo em conforto de veludo
para convencermos a nós mesmos de que somos importantes
mas ceder ao olhar impositivo do público é perder-se um pouco a si mesmo
é perder os objetivos que iniciaram em nós a nossa  busca

a tristeza de não ser compreendido é natural, certeira e ambígua
porque ao tempo em que é um tipo de desânimo tolerável, simultaneamente incita os brios
ao fazer o verso admitir ser superado não pelo olhar que nos diz o que fazer
mas pela digestão do olhar que metaboliza em mim um outro que sou
e posso assim me recolocar em um novo projeto possível

como a tristeza de não ser publicado ou não ser lido é parte da realidade mais cotidiana
de um país de terceiro mundo que ainda seguirá assim por séculos
tristeza maior é a de ser domado por pura vaidade
cevando em algum lugar no exterior de nós aquele monstro coletivo
que pretende nos dizer a hora, o lugar e os motivos
pretende  impor nossos valores
aceitar esse pacto  é não saber por que escrever
é não possuir sequer o direito de fazê-lo

popularidade, fama, resultado, fim
isso nada tem a ver com escrever
porque escrita é fim em si mesmo
a não depender de nada mais
tocar em frente, tocar
sem se arrepender jamais
se a palavra verdadeira foi dita
não se arrepender por viver
a ebriedade dos próprios sentidos
cada vez  mais aguçados
sintonizados na carne da vida

hoje, mais que nunca,
quando a incompreensão tosca
os  olhos irrefletidos do sistema
fazem total injustiça
sobre a beleza da nova literatura
(essa que recoloca a vida
em nova e maior perspectiva)

recupero-me para outros e grandes desafios
recuperando Pessoa como vitamina
através de Nietzsche
em vez de naufragarmos sob a dor
em vez de nos cobrirmos  de luto
lembraremos melhor

"que importa à árvore se não lhes apreciam os frutos?"