Voz
Impregnado-me de Pessoa no meu melhor espírito, absorvendo gentes enquanto ando pelo mundo. Como poderia não ser assim? As muitas faces de um autor assumindo sua multiplicidade não apenas como artifício literário, como tantos, ou razão velada para não ter que assumir suas posições, mas como necessidade criadora essencial de externar, da forma como recebe e processa, os impactos da vida em sua linguagem própria. Que não é estática, mas está sempre em movimento. A linguagem a se criar na medida em que a interação entre corpo e mundo se incrementa, fazendo história.
Não há um "bom" nessa história, assim como não há um "mau". Para a relatividade da arte, tudo é motor. Tudo é, ou deve ser, razão e motivo e inspiração.
É muito mais, essa heteronomia, porque nele a visceral autenticidade e universo caótico criador é impensável como compartilhamento enquanto o verso não se fez. Só depois. Cada face de Pessoa não é um fake, é uma voz autônoma, criada na plasticidade da lida com o mundo, e surgida de uma inteligência sensível e poderosa como resposta.
Não há como conciliar Alberto Caeiro com Álvaro de Campos, e nem Ricardo Reis com o "Pessoa, ele próprio" ou com os dois primeiros. A necessidade estelar de existirem essas vozes, delas serem expressas, é o que configura a vontade artística e todo o seu poder, quando não é contido, no último grau.
Diferentemente dos defensores da "objetividade", aos quais o ardido Nelson chamava abertamente de idiotas, tudo na vida de um artista é subjetividade. Mesmo quando ele pretende ser objetivo. Porque não há como se expressar sem trazer à tona seus monstros, suas gnomos e seus mundos fantasiosos quando cria.
E no momento exato em que cria, todo o seu ser, tomado pela voz que o comanda, procura no calor das forjas que o alimentam sob pressão qual é a resposta ao mundo que toda essa complexidade pode dar para aquele momento.
Se é provocado pela injustiça social gritante que bate à sua porta, o poeta grita, agrupa-se, soma forças, dá o sangue, e não se deixa seguir sendo oprimido pela máquina de moer ossos.
Se é a existência que dobra esquinas demais, há que se ter a leveza e a coragem para, ora enfrentá-la na porrada quando o pulso se faz fraco, ora ter a esquiva ligeira e consciente para absorver o golpe e não deixar o impacto duro demais quebrar o queixo.
Se é o amor que possui o espírito, aprender a lidar com esse bicho mutante, que para cada história assume formas diferentes, e se engrandece ou enfraquece assim, sem muita explicação, porque explicação é coisa da ciência, e no amor qualquer lógica sempre sai perdendo.
Se é o prazer, a beleza, o encantamento com a vida que prevalece, mesmo quando está ciente das mazelas e do trágico que pressupõe as possibilidades de vida, o olhar terno do poeta que protege a flor da sombra, que não deixa que ela se quebre ao vento impune, o beijo na saliva que também irriga, o olhar que nutre raízes, porque na vida atuam inexplicavelmente em imbricada relação, essa coisa da beleza extrema com algum tipo de dor.
Se é o positivista frustrado com a civilização em Álvaro de Campos, se é o lírico Alberto Caeiro ou o pagão Ricardo Reis, entre tantas possibilidades, isso não foi mero exercício de vaidades literárias, como tantas vezes se atribui equivocadamente. É porque a pulsão de vida martelando continuamente diferentes portas dentro do ser, precisa inexoravelmente vir à tona, e para isso acontecer sem que se perca a unidade do pensamento e caia-se deliberadamente no que se convencionou chamar de "loucura", é necessário que cada perfil, com seus motivos próprios, olhar de mundo e experiência de criação, possa com tranquilidade vir à luz e dizer o que sente com sua própria voz.
Ser Jeckyll pela crença num fiapo de razão e ao mesmo tempo Hyde, quando os instintos precisarem salvar o homem do que a civilização ainda não o castrou; ter sido ontem a criança, em encantamento para vencer a amargura, hoje o velho para não continuar pueril; hoje o homem viril, que emprenha a vida de novas possibilidades simplesmente porque obedece a um impulso maior que passa por ele e não pode ser contido, ser amanhã a mulher para conceber o novo sem ressalvas, e amá-lo como se ama a um filho como potência do que ainda não foi. Admitir ser tudo, em dor e prazer, e não poupar à pena o real que se sente, seja na pele seja no sonho.
Ser artista e aceitar o impacto do mundo sobre a confluência do espírito com o corpo, sem saber de antemão quem vencerá essa batalha, é ter sobretudo a coragem de não se negar, a si mesmo, o fato de albergar nos confins do dentro-mundo, tantas e tão diversas criaturas. Se eu crio, então tudo posso na órbita não limitada de minha imaginação. Seus parâmetros terão unicamente a ética como fio, nada mais.
Que essas criaturas sejam bem nutridas, que possam ter vida, e que suas vozes sejam cada uma a seu tempo, únicas, coloridas, sonoras, e que ao vir ao mundo materializar-se em expressão torne tudo mais rico, mais belo e mais intenso de ser vivido.
Não há um "bom" nessa história, assim como não há um "mau". Para a relatividade da arte, tudo é motor. Tudo é, ou deve ser, razão e motivo e inspiração.
É muito mais, essa heteronomia, porque nele a visceral autenticidade e universo caótico criador é impensável como compartilhamento enquanto o verso não se fez. Só depois. Cada face de Pessoa não é um fake, é uma voz autônoma, criada na plasticidade da lida com o mundo, e surgida de uma inteligência sensível e poderosa como resposta.
Não há como conciliar Alberto Caeiro com Álvaro de Campos, e nem Ricardo Reis com o "Pessoa, ele próprio" ou com os dois primeiros. A necessidade estelar de existirem essas vozes, delas serem expressas, é o que configura a vontade artística e todo o seu poder, quando não é contido, no último grau.
Diferentemente dos defensores da "objetividade", aos quais o ardido Nelson chamava abertamente de idiotas, tudo na vida de um artista é subjetividade. Mesmo quando ele pretende ser objetivo. Porque não há como se expressar sem trazer à tona seus monstros, suas gnomos e seus mundos fantasiosos quando cria.
E no momento exato em que cria, todo o seu ser, tomado pela voz que o comanda, procura no calor das forjas que o alimentam sob pressão qual é a resposta ao mundo que toda essa complexidade pode dar para aquele momento.
Se é provocado pela injustiça social gritante que bate à sua porta, o poeta grita, agrupa-se, soma forças, dá o sangue, e não se deixa seguir sendo oprimido pela máquina de moer ossos.
Se é a existência que dobra esquinas demais, há que se ter a leveza e a coragem para, ora enfrentá-la na porrada quando o pulso se faz fraco, ora ter a esquiva ligeira e consciente para absorver o golpe e não deixar o impacto duro demais quebrar o queixo.
Se é o amor que possui o espírito, aprender a lidar com esse bicho mutante, que para cada história assume formas diferentes, e se engrandece ou enfraquece assim, sem muita explicação, porque explicação é coisa da ciência, e no amor qualquer lógica sempre sai perdendo.
Se é o prazer, a beleza, o encantamento com a vida que prevalece, mesmo quando está ciente das mazelas e do trágico que pressupõe as possibilidades de vida, o olhar terno do poeta que protege a flor da sombra, que não deixa que ela se quebre ao vento impune, o beijo na saliva que também irriga, o olhar que nutre raízes, porque na vida atuam inexplicavelmente em imbricada relação, essa coisa da beleza extrema com algum tipo de dor.
Se é o positivista frustrado com a civilização em Álvaro de Campos, se é o lírico Alberto Caeiro ou o pagão Ricardo Reis, entre tantas possibilidades, isso não foi mero exercício de vaidades literárias, como tantas vezes se atribui equivocadamente. É porque a pulsão de vida martelando continuamente diferentes portas dentro do ser, precisa inexoravelmente vir à tona, e para isso acontecer sem que se perca a unidade do pensamento e caia-se deliberadamente no que se convencionou chamar de "loucura", é necessário que cada perfil, com seus motivos próprios, olhar de mundo e experiência de criação, possa com tranquilidade vir à luz e dizer o que sente com sua própria voz.
Ser Jeckyll pela crença num fiapo de razão e ao mesmo tempo Hyde, quando os instintos precisarem salvar o homem do que a civilização ainda não o castrou; ter sido ontem a criança, em encantamento para vencer a amargura, hoje o velho para não continuar pueril; hoje o homem viril, que emprenha a vida de novas possibilidades simplesmente porque obedece a um impulso maior que passa por ele e não pode ser contido, ser amanhã a mulher para conceber o novo sem ressalvas, e amá-lo como se ama a um filho como potência do que ainda não foi. Admitir ser tudo, em dor e prazer, e não poupar à pena o real que se sente, seja na pele seja no sonho.
Ser artista e aceitar o impacto do mundo sobre a confluência do espírito com o corpo, sem saber de antemão quem vencerá essa batalha, é ter sobretudo a coragem de não se negar, a si mesmo, o fato de albergar nos confins do dentro-mundo, tantas e tão diversas criaturas. Se eu crio, então tudo posso na órbita não limitada de minha imaginação. Seus parâmetros terão unicamente a ética como fio, nada mais.
Que essas criaturas sejam bem nutridas, que possam ter vida, e que suas vozes sejam cada uma a seu tempo, únicas, coloridas, sonoras, e que ao vir ao mundo materializar-se em expressão torne tudo mais rico, mais belo e mais intenso de ser vivido.