A arte do meio (Ensaio)
Quem acompanha, mesmo ao longe, a cultura do sol nascente, já deve ter se perguntado alguma vez sobre a razão das visíveis diferenças entre eles e "nós", ocidentais. É claro que esse ar "exótico" que tantas vezes atribuímos ao que é distante de nós, não é fato isolado apenas em relação ao Japão, mas por extensão, cabível a todo o oriente, por várias razões, desde as histórias próprias de suas nações, a formação de seus povos e seus valores, até o efeito da longevidade cultural que caminha no tempo para muito além da nossa base greco-romana, e como se sabe, todos invariavelmente devedores da maior e mais antiga civilização de todas, a chinesa.
Contudo, o Japão tem algo diferente, é o que se vê logo. Como todos os países orientais, partindo de uma antiga e direta influência da China em algum lugar no tempo, mas caminhando por seus próprios pés em seguida, ao desenvolver sua própria arte, sua linguagem em ideogramas específicos, sua extensa rede de fortes valores éticos baseados na honra e no sistema análogo ao feudal, consolidado em hierarquia e vassalagem, que durou longas eras, até meados do século XIX, quando ainda representava uma das culturas mais fechadas ao ocidente até então.
Talvez justamente por isso, por ter sofrido menos interferências estrangeiras do que a China, a Ìndia ou outros pequenos países do sudeste da Ásia, o Japão preservou intacto seu olhar sobre o mundo, sobre a arte, a maneira especial de reverenciar suas centenárias tradições. Um olhar que, posteriormente, mesmo tendo sofrido enormes tragédias como a história das duas bombas atômicas da segunda guerra mundial, e antes disso ainda, uma devastadora influência militar, política e econômica do ocidente, principalmente americana e inglesa, a partir do final do século XIX, de forma impressionante ainda conseguiu manter incólumes suas principais tradições.
Não é difícil perceber esses traços, que sugerem simultaneamente uma estética contraditória por seus fundamentos e influências, mas que na verdade não é. De um lado, além de possuírem o biotipo semelhante aos povos do extremo oriente, utilizarem os ideogramas oriundos da escrita chinesa, e uma certa maneira de lidar com o tempo e o mundo norteados pelas influências do Taoísmo e do Zen-budismo, não vai muito além em suas identidades com o contexto geral dos outros povos orientais. Porque a partir dessa base comum, a forma particular com que metabolizaram essas referências para torná-las apenas suas, os valores reais de um povo, que na verdade é o que os particulariza, esses sim é que fazem a enorme diferença ao se constituir uma essência denominada Japão.
Sim, porque num segundo momento, sua escrita rica e independente, valorada em matizes próprios, nada mais tem a ver com a sua base-mãe chinesa, seu olhar pela pintura expressa formas e cores completamente distintas do restante da ásia, os versos que compõem seus poemas mundanos, odes militares ou escritos de celebração são sentimentos próprios, calcados em outros valores. E é nesse instante que salta aos olhos, dentre as diversas manifestações artísticas e culturais imensamente ricas desse povo, o ritual dispensado a boa parte das atividades cotidianas, que para qualquer um de nós, ocidentais, passaria batido por se tratar da mais desinteressante rotina.
A razão deste ensaio, navegar com os japoneses nos motivos, não situando-os no espectro mais amplo dos "povos orientais" nesse quesito, mas pelo contrário, particularizando o sentido de sua busca existencial no mundo, compreender como e por que a motivação dessa necessidade ritual do cotidiano, usando a "Cerimônia do Chá" como referência maior.
Porque a percepção da cultura japonesa é diametralmente oposta à noção da cultura ocidental, onde a finalidade do objeto, seu uso constituído no resultado de sua ação, é o que importa. Se do ato resultou riqueza, se resultou morte ou guerra, conquista de um território, ou até mesmo nos parâmetros individuais, se restou fortuna ou azar, saúde ou doença, a graça numa conquista amorosa ou uma derrota para a lida de Eros, isso é o que importa mais ao sangue ocidental.
Para os orientais, ao contrário, no sentido universal, o ritual é uma forma de não se atingir de imediato um objeto, mas sim de mediá-lo, de adiá-lo, de permitir que ele seja visto em detalhes em sua constituição e formação antes de lhe ser dado o destino. O ritual permite que a energia, a sensação, o estado de espírito que se quer alimentar e preservar dure mais, por arte, técnica e conhecimento do mundo repassado pela tradição, e isso durante gerações é transmitido como verdadeira arte, traduzindo-se nas mais diversas frentes.
São notórios os relatos de guerra que mencionavam, na antiguidade, como as torturas chinesas eram especialmente cruéis, e eram pensadas profundamente, com rigor e método, para fazer durar o máximo de tempo possível o sofrimento do condenado, fazendo com que sofresse muitas mortes em vida, antes de vir a falecer.
O Kama-Sutra, como outras diversas narrativas eróticas coletadas aleatoriamente em boa parte da China, da Índia, e do próprio Japão, mostram em comum como a valoração do tempo e todos os seus segredos de posições, toques, gostos e preferências, toda uma estética do corpo se predispondo aos estímulos mais variados antes de atingir o êxtase como pressupostos de elevação da intensidade do prazer .
As artes marciais, levadas à perfeição em terras japonesas, por centenas de anos, expressam com primor esse princípio. Uma busca do equilíbrio entre dentro e fora, movimento e estática, respiração e batimentos, homem e natureza, a necessária consciência de que não estamos sozinhos no universo, há todo tipo de coisas ao redor. Seres inanimados, energias, animais, outros iguais enfim. Como sintonizar tudo isso que incessantemente não para de girar à nossa volta?
Nesse olhar renovado sobre o mundo, num sentido diferente de perceber o tempo e as finalidades ocidentais, o que importa mesmo nem é o fado, o objeto em si. Importa o meio e não o fim. O durante, o valor maior, e não o destino. Enquanto o pensamento ocidental tantas vezes se situa, querendo ou não, na máxima de Maquiavel, onde "os fins justificam os meios", no caso oriental, e especificamente no japonês, é o contrário que se dá. Não é o fim que importa, mas o "durante". Como se dissessem, veladamente; "Ora, no fim todos estaremos mortos". A razão maior da vida é a própria vida, não é o que está além, nem é o que ela pode conquistar em termos de materialidade apenas. Isso implica numa nova forma de consciência e , potencialmente, uma revaloração dos sentidos, tornando-os maiores e mais permeáveis. Vamos fazê-la parar, a vida, em vez de acelerar continuamente, vamoz fazê-la se decantar em vez de fluir embolada em ponteiros, vamos desmaquinizar a relação corpo x mundo, conscientizar cada gesto, intensificar cada ato, inseri-los numa relação muito mais profunda que não poderá simplesmente ser "cooptada pelo sistema" ou "sequestrada" de uma dada individualidade. Os sentidos ganham nova chance para surgir, diante de um mundo massacrado continuamente pelas necessidades materiais? É como se o corpo, aqui tornado único com seu espírito ou estado de consciência, passasse a ter mais olhos, mais tato, mais olfato, mais paladar porque assume o tempo para si, para poder usufruir interminavelmente de si mesmo, sem a culpa imputada por outros mecanismos perversos.
Perceber os movimentos como únicos, achar sua beleza, e se não tiverem, vamos conferir-lhes alguma. Também nos rituais alimentares, do preparo de pratos específicos, suas formas de fazer, toda a referência de acessórios, temperos, tudo pensado com esmero para estimular e valorizar o paladar, isso tudo torna digna de admiração essa forma rica de lidar com o tempo, um tempo em uso para não ser finalizado abruptamente, mas sim ser percebido a cada segundo como intensidade, como duração. A cerimônia do chá, no Japão, se insere nesse contexto da busca de sintonia de cultura e história, individual e coletivo, humano e natureza. Tudo que envolve desde a escolha do tipo de chá, o lugar em que será servido, seus utensílios, a música, a preferência por estes assuntos em vez daqueles, tudo isso que aparentemente para qualquer um de nós, ocidentais, seria nada além de pura perda de tempo, nesse novo olhar se agiganta porque traz em si uma outra noção, que precisa ser assimilada com muito mais sutileza.
Comparando, é muito mais factível imaginar um cidadão nas ruas de Londres, Nova York ou num Shopping em São Paulo, entrar na sua cafeteria, aguardar uns cinco ou dez minutos na fila, pedir um cappucino ou um espresso duplo, pagar seu ticket no cartão e sair em seguida para a rua ou apenas sentar-se para engolir a bebida automaticamente enquanto corre os dedos na tela do celular. A noção de que se "aproveita melhor" o tempo, gastando-se cada vez menos tempo para cada ato reputado um "mero ato de sobrevivência ou alimentação da máquina", tais como: tomar café, tomar banho, se vestir, almoçar, jantar, ir ao banheiro, escovar os dentes, e logo logo, os atos vitais como dormir, levantar, conversar, e por que não, morrer também ,inscritos indelevelmente nas anulações cotidianas a que todos nos submetemos por conta de um sistema com o qual jamais soubemos lidar.
A Cerimônia do Chá, que não é a única, mas apenas uma de muitas ritualizações da vida levada com extrema seriedade e arte por esse povo especial é algo que dialoga diretamente com nossos propósitos. Os japoneses, em sua maioria, são budistas ou taoístas, então a idéia da divindade que os aguarda em outro mundo melhor ou da famosa "premiação" no além-vida , coisa tão comum entre nós, oriundos que somos da cristandade, é algo praticamente inexistente. As duas linhas filosóficas preocupam-se sobretudo com o agir ético em vida, valorando esse espaço de tempo em atitude ou contemplação que devemos preservar com todas as forças. Subjaz, ao final, a idéia de que todo final é necessariamente trágico para todos, mas isso também pode ser encarado de uma forma natural, desde que não se aposte inteiramente nos fins, nos resultados, todas as ações em vida.
Portanto, nisso há uma sabedoria maior, algo que não necessariamente é revelado assim, logo de primeira: o fato de saber-se, desde o início, que não temos outro caminho a ir a não ser o que já temos, que nossas vidas são essas mesmas, e cabe aceitá-las em primeiro lugar, tentando modificá-las no que preciso for, mas que nesse processo (talvez aqui resida a maior diferença), não e´tanto o resultado final da ação o que deveria contar mais, mas qual será a partir de determinado ponto, a forma com que vamos lidar com a vida.
Um ocidental típico, caminhando em pleno dia de semana por uma das barulhentas e poluídas ruas que o rodeiam nessas previsíveis capitais, e que entra na sua Starbucks pra comprar rapidamente um café expresso e sair andando em seguida em disparada pra chegar a tempo no trabalho, certamente vai olhar a ritualização do chá como banal, tediosa e uma perda de tempo. É como ver o movimento inteiro do Tai-Chi-Chuan pela primeira vez. A gastura que temos ao ver aqueles movimentos dos velhinhos no jardim, lentos como as pequenas folhas resvalando a brisa morna de uma manhã de primavera. Acostumados com a aceleração, o pulso forte, a cafeína, filmes de ação, carros em alta velocidade, cobranças sem fim por uma produtividade escravizante nos postos de trabalho, não sabemos perceber esse outro ritmo de fruição do tempo. Mas basta acelerar um pouco esse ritmo, por exemplo, ao transformarmos os mesmos movimentos lentos do Tai-chi, o princípio da harmonia, a comunicação do corpo com o universo, a fala do gesto tendo a natureza como maior referência, basta acelerar o compasso para transformá-lo na arte marcial do Kung-fu, sua consequência em termos de defesa pessoal, e daí todos passamos a entender melhor do que se trata. É porque não temos olhar para o que não respira no nosso pulso. Entendemos uma relação, mas não a outra. Entendemos a guerra, a defesa, a objetificação e a "utilidade" de tal coisa, mas não a arte de outra. Entendemos a ação, mas jamais a contemplação, porque está "fora" do nosso espaço de visão. Fomos educados assim, e é preciso cada vez mais deseducarmo-nos a nós mesmos desses padrões impostos para que a vida possa ter algum outro sentido maior e menos mesquinho do que o que vivemos normalmente.
Assim como a percepção da relação lentidão x aceleração na arte marcial do Tai-chi x Kung-fu, é por analogia a mesma situação que ocorre quando o tempo para e tem início a cerimônia do chá. Aquilo que aos olhos ocidentais seria a "perda de tempo", é na verdade, o reencontro com ele, agora maior, mais intenso, valorando os elos sociais com os presentes, valorizando a natureza pela planta e seus benefícios, e com todo o potencial da descoberta de si mesmo através dele. A sabedoria maior, e aparentemente tão mais difícil se ser alcançada, de que a vida está mais nos seus meios dos que nos seus fins.
Contudo, o Japão tem algo diferente, é o que se vê logo. Como todos os países orientais, partindo de uma antiga e direta influência da China em algum lugar no tempo, mas caminhando por seus próprios pés em seguida, ao desenvolver sua própria arte, sua linguagem em ideogramas específicos, sua extensa rede de fortes valores éticos baseados na honra e no sistema análogo ao feudal, consolidado em hierarquia e vassalagem, que durou longas eras, até meados do século XIX, quando ainda representava uma das culturas mais fechadas ao ocidente até então.
Talvez justamente por isso, por ter sofrido menos interferências estrangeiras do que a China, a Ìndia ou outros pequenos países do sudeste da Ásia, o Japão preservou intacto seu olhar sobre o mundo, sobre a arte, a maneira especial de reverenciar suas centenárias tradições. Um olhar que, posteriormente, mesmo tendo sofrido enormes tragédias como a história das duas bombas atômicas da segunda guerra mundial, e antes disso ainda, uma devastadora influência militar, política e econômica do ocidente, principalmente americana e inglesa, a partir do final do século XIX, de forma impressionante ainda conseguiu manter incólumes suas principais tradições.
Não é difícil perceber esses traços, que sugerem simultaneamente uma estética contraditória por seus fundamentos e influências, mas que na verdade não é. De um lado, além de possuírem o biotipo semelhante aos povos do extremo oriente, utilizarem os ideogramas oriundos da escrita chinesa, e uma certa maneira de lidar com o tempo e o mundo norteados pelas influências do Taoísmo e do Zen-budismo, não vai muito além em suas identidades com o contexto geral dos outros povos orientais. Porque a partir dessa base comum, a forma particular com que metabolizaram essas referências para torná-las apenas suas, os valores reais de um povo, que na verdade é o que os particulariza, esses sim é que fazem a enorme diferença ao se constituir uma essência denominada Japão.
Sim, porque num segundo momento, sua escrita rica e independente, valorada em matizes próprios, nada mais tem a ver com a sua base-mãe chinesa, seu olhar pela pintura expressa formas e cores completamente distintas do restante da ásia, os versos que compõem seus poemas mundanos, odes militares ou escritos de celebração são sentimentos próprios, calcados em outros valores. E é nesse instante que salta aos olhos, dentre as diversas manifestações artísticas e culturais imensamente ricas desse povo, o ritual dispensado a boa parte das atividades cotidianas, que para qualquer um de nós, ocidentais, passaria batido por se tratar da mais desinteressante rotina.
A razão deste ensaio, navegar com os japoneses nos motivos, não situando-os no espectro mais amplo dos "povos orientais" nesse quesito, mas pelo contrário, particularizando o sentido de sua busca existencial no mundo, compreender como e por que a motivação dessa necessidade ritual do cotidiano, usando a "Cerimônia do Chá" como referência maior.
Porque a percepção da cultura japonesa é diametralmente oposta à noção da cultura ocidental, onde a finalidade do objeto, seu uso constituído no resultado de sua ação, é o que importa. Se do ato resultou riqueza, se resultou morte ou guerra, conquista de um território, ou até mesmo nos parâmetros individuais, se restou fortuna ou azar, saúde ou doença, a graça numa conquista amorosa ou uma derrota para a lida de Eros, isso é o que importa mais ao sangue ocidental.
Para os orientais, ao contrário, no sentido universal, o ritual é uma forma de não se atingir de imediato um objeto, mas sim de mediá-lo, de adiá-lo, de permitir que ele seja visto em detalhes em sua constituição e formação antes de lhe ser dado o destino. O ritual permite que a energia, a sensação, o estado de espírito que se quer alimentar e preservar dure mais, por arte, técnica e conhecimento do mundo repassado pela tradição, e isso durante gerações é transmitido como verdadeira arte, traduzindo-se nas mais diversas frentes.
São notórios os relatos de guerra que mencionavam, na antiguidade, como as torturas chinesas eram especialmente cruéis, e eram pensadas profundamente, com rigor e método, para fazer durar o máximo de tempo possível o sofrimento do condenado, fazendo com que sofresse muitas mortes em vida, antes de vir a falecer.
O Kama-Sutra, como outras diversas narrativas eróticas coletadas aleatoriamente em boa parte da China, da Índia, e do próprio Japão, mostram em comum como a valoração do tempo e todos os seus segredos de posições, toques, gostos e preferências, toda uma estética do corpo se predispondo aos estímulos mais variados antes de atingir o êxtase como pressupostos de elevação da intensidade do prazer .
As artes marciais, levadas à perfeição em terras japonesas, por centenas de anos, expressam com primor esse princípio. Uma busca do equilíbrio entre dentro e fora, movimento e estática, respiração e batimentos, homem e natureza, a necessária consciência de que não estamos sozinhos no universo, há todo tipo de coisas ao redor. Seres inanimados, energias, animais, outros iguais enfim. Como sintonizar tudo isso que incessantemente não para de girar à nossa volta?
Nesse olhar renovado sobre o mundo, num sentido diferente de perceber o tempo e as finalidades ocidentais, o que importa mesmo nem é o fado, o objeto em si. Importa o meio e não o fim. O durante, o valor maior, e não o destino. Enquanto o pensamento ocidental tantas vezes se situa, querendo ou não, na máxima de Maquiavel, onde "os fins justificam os meios", no caso oriental, e especificamente no japonês, é o contrário que se dá. Não é o fim que importa, mas o "durante". Como se dissessem, veladamente; "Ora, no fim todos estaremos mortos". A razão maior da vida é a própria vida, não é o que está além, nem é o que ela pode conquistar em termos de materialidade apenas. Isso implica numa nova forma de consciência e , potencialmente, uma revaloração dos sentidos, tornando-os maiores e mais permeáveis. Vamos fazê-la parar, a vida, em vez de acelerar continuamente, vamoz fazê-la se decantar em vez de fluir embolada em ponteiros, vamos desmaquinizar a relação corpo x mundo, conscientizar cada gesto, intensificar cada ato, inseri-los numa relação muito mais profunda que não poderá simplesmente ser "cooptada pelo sistema" ou "sequestrada" de uma dada individualidade. Os sentidos ganham nova chance para surgir, diante de um mundo massacrado continuamente pelas necessidades materiais? É como se o corpo, aqui tornado único com seu espírito ou estado de consciência, passasse a ter mais olhos, mais tato, mais olfato, mais paladar porque assume o tempo para si, para poder usufruir interminavelmente de si mesmo, sem a culpa imputada por outros mecanismos perversos.
Perceber os movimentos como únicos, achar sua beleza, e se não tiverem, vamos conferir-lhes alguma. Também nos rituais alimentares, do preparo de pratos específicos, suas formas de fazer, toda a referência de acessórios, temperos, tudo pensado com esmero para estimular e valorizar o paladar, isso tudo torna digna de admiração essa forma rica de lidar com o tempo, um tempo em uso para não ser finalizado abruptamente, mas sim ser percebido a cada segundo como intensidade, como duração. A cerimônia do chá, no Japão, se insere nesse contexto da busca de sintonia de cultura e história, individual e coletivo, humano e natureza. Tudo que envolve desde a escolha do tipo de chá, o lugar em que será servido, seus utensílios, a música, a preferência por estes assuntos em vez daqueles, tudo isso que aparentemente para qualquer um de nós, ocidentais, seria nada além de pura perda de tempo, nesse novo olhar se agiganta porque traz em si uma outra noção, que precisa ser assimilada com muito mais sutileza.
Comparando, é muito mais factível imaginar um cidadão nas ruas de Londres, Nova York ou num Shopping em São Paulo, entrar na sua cafeteria, aguardar uns cinco ou dez minutos na fila, pedir um cappucino ou um espresso duplo, pagar seu ticket no cartão e sair em seguida para a rua ou apenas sentar-se para engolir a bebida automaticamente enquanto corre os dedos na tela do celular. A noção de que se "aproveita melhor" o tempo, gastando-se cada vez menos tempo para cada ato reputado um "mero ato de sobrevivência ou alimentação da máquina", tais como: tomar café, tomar banho, se vestir, almoçar, jantar, ir ao banheiro, escovar os dentes, e logo logo, os atos vitais como dormir, levantar, conversar, e por que não, morrer também ,inscritos indelevelmente nas anulações cotidianas a que todos nos submetemos por conta de um sistema com o qual jamais soubemos lidar.
A Cerimônia do Chá, que não é a única, mas apenas uma de muitas ritualizações da vida levada com extrema seriedade e arte por esse povo especial é algo que dialoga diretamente com nossos propósitos. Os japoneses, em sua maioria, são budistas ou taoístas, então a idéia da divindade que os aguarda em outro mundo melhor ou da famosa "premiação" no além-vida , coisa tão comum entre nós, oriundos que somos da cristandade, é algo praticamente inexistente. As duas linhas filosóficas preocupam-se sobretudo com o agir ético em vida, valorando esse espaço de tempo em atitude ou contemplação que devemos preservar com todas as forças. Subjaz, ao final, a idéia de que todo final é necessariamente trágico para todos, mas isso também pode ser encarado de uma forma natural, desde que não se aposte inteiramente nos fins, nos resultados, todas as ações em vida.
Portanto, nisso há uma sabedoria maior, algo que não necessariamente é revelado assim, logo de primeira: o fato de saber-se, desde o início, que não temos outro caminho a ir a não ser o que já temos, que nossas vidas são essas mesmas, e cabe aceitá-las em primeiro lugar, tentando modificá-las no que preciso for, mas que nesse processo (talvez aqui resida a maior diferença), não e´tanto o resultado final da ação o que deveria contar mais, mas qual será a partir de determinado ponto, a forma com que vamos lidar com a vida.
Um ocidental típico, caminhando em pleno dia de semana por uma das barulhentas e poluídas ruas que o rodeiam nessas previsíveis capitais, e que entra na sua Starbucks pra comprar rapidamente um café expresso e sair andando em seguida em disparada pra chegar a tempo no trabalho, certamente vai olhar a ritualização do chá como banal, tediosa e uma perda de tempo. É como ver o movimento inteiro do Tai-Chi-Chuan pela primeira vez. A gastura que temos ao ver aqueles movimentos dos velhinhos no jardim, lentos como as pequenas folhas resvalando a brisa morna de uma manhã de primavera. Acostumados com a aceleração, o pulso forte, a cafeína, filmes de ação, carros em alta velocidade, cobranças sem fim por uma produtividade escravizante nos postos de trabalho, não sabemos perceber esse outro ritmo de fruição do tempo. Mas basta acelerar um pouco esse ritmo, por exemplo, ao transformarmos os mesmos movimentos lentos do Tai-chi, o princípio da harmonia, a comunicação do corpo com o universo, a fala do gesto tendo a natureza como maior referência, basta acelerar o compasso para transformá-lo na arte marcial do Kung-fu, sua consequência em termos de defesa pessoal, e daí todos passamos a entender melhor do que se trata. É porque não temos olhar para o que não respira no nosso pulso. Entendemos uma relação, mas não a outra. Entendemos a guerra, a defesa, a objetificação e a "utilidade" de tal coisa, mas não a arte de outra. Entendemos a ação, mas jamais a contemplação, porque está "fora" do nosso espaço de visão. Fomos educados assim, e é preciso cada vez mais deseducarmo-nos a nós mesmos desses padrões impostos para que a vida possa ter algum outro sentido maior e menos mesquinho do que o que vivemos normalmente.
Assim como a percepção da relação lentidão x aceleração na arte marcial do Tai-chi x Kung-fu, é por analogia a mesma situação que ocorre quando o tempo para e tem início a cerimônia do chá. Aquilo que aos olhos ocidentais seria a "perda de tempo", é na verdade, o reencontro com ele, agora maior, mais intenso, valorando os elos sociais com os presentes, valorizando a natureza pela planta e seus benefícios, e com todo o potencial da descoberta de si mesmo através dele. A sabedoria maior, e aparentemente tão mais difícil se ser alcançada, de que a vida está mais nos seus meios dos que nos seus fins.