Convalescente (Crônica das influenzas)

a performance rarefeita  de um corpo em constante aprendizado
tateando, cansado, o caminho áspero do mundo por outras vias
por uns dias, sequestrado da sua saúde, a dor não é das piores
mas o suficiente para turvar o humor e o bastante para sacudi-lo
das pontas dos pés ao fio do cabelo, a cada espirro ou acesso de tosse

febres intermitentes, me dói em tudo que é lugar
talvez seja o censor interno que , de um lado se culpa
na memória turva e internalizada (herdada)
de que sempre somos culpados de alguma coisa

o não-gostar-de-médico
que minha mulher recrimina
o gelado que minhavó recriminava,
o dormir tarde demais, que minhamãe recrimina
o ar-condicionado exagerado do trabalho
do cinema, do banco, do carro
que ninguém recrimina, mas me arrebenta
misturado ao ar podre de uma cidade grande
e, no fim de tudo, o preço existencial
de um certo nariz intolerante e excessivamente
alérgico

diziam os antigos alquimistas que o nariz
é o órgão supremo da intuição
acima do coração, uma légua
acima do cérebro, duas léguas
e que pessoas do meu naipe
farejam mais do que vêem
aspiram mais do que ouvem
cheiram mais do que pensam

os perfumes, a légua e meia do emissor
a comida, a um dia de distância
os problemas, antes deles se inventarem
a decepção, no primeiro contato
e o desejo, na outra ponta do universo

o problema sempre foi
tentar convencer o resto do corpo
de que o nariz é que tinha razão
desde o princípio

em outra época, eu teria sido bruxo
e provavelmente seria queimado na fogueira
por conta desse meu nariz

disse o homeopata, em sua meia hora de consulta
antes de eu sequer articular uma fala
mais coisas sobre mim por conta do meu nariz
que eu jamais iria conseguir descobrir sozinho
por qualquer outro meio

como bom homeopata, ele não soube dizer, é claro
se havia algum remédio que me curasse
dessas crises de rinite, sinusite, tudo que é ite
que tenha algum fundo alérgico
essas pragas que me maltratam a vida
há tantas décadas

porque elas são apenas saídas que meu corpo encontra
para ensaiar outras formas de conhecimento
reações inconscientes a um mundo que ele não aceita
coisa que uma saúde perfeita jamais permitiria
como se o pedágio necessário
de querer ser  artista
fosse arrumar, o mais rápido possível
alguma dorzinha aqui ou ali, imprevista
para me trazer um ramo de  poesia

seu diagnóstico foi o mais perfeito
a ponto de eu sair daquele consultório
renovado em minha ciência de mim
pela interferência do meu nariz
este ser que agora tornara-se parte da minha essência
e não mais apenas um órgão acessório

do consultório pra casa
em casa pra cama
febre
medicações e as alterações de percepção do ao-redor
a doença muda os sentidos do dia, qualquer doença
o mau humor com a luz forte, a dor no rosto enjoada
o cuidado com medicamentos, não posso quase nada

xaropes me dopam e remédios pra enjôo me deixam doidão
meu organismo rejeita tudo que é química, principalmente
aquelas porcarias que de que me entupiram quando era criança
quando eu enchia a cara de melhoral mas nunca melhorei
aspirina, ibubrofeno, diclofenacos, e american corporation ltd$$

recorro à dipirona: o suor, a pressão baixa, a alegria quando a dor cessa
corticóides, hormônios dão ânimo logo pela manhã
com café e a minha velha vontade matinal de domar o mundo na porrada
anti-histamínicos ao cair da noite, a calma artificial tão desejada
como se fumasse ópio:
a malemolência típica, raciocínio obnublado
e o confortável controle sobre o ritmo do pensamento
pela primeira vez em meses
nenhuma cachaça permitida
nem comidas muito gordas
(as melhores)

e esta fome, meu deus! corticóides com anti-histamínicos
são o melhor aperitivo que alguém poderia desejar
sou a única criatura do planeta que come compulsivamente
quando fica gripado. Sobretudo doces e comidas gostosas
Como muito mais do que quando estou bom
e em vez de emagrecer, ao final de uma semana
(quando a sinusite não quer ampliar a temporada)
costumo ganhar de volta os dois ou três quilos
que vinha perdendo no mês com algum esforço

o bom da doença, se tem algum
é a mudança do tato, a perspectiva do jeito
a respiração da comida, pra compensar o paladar perdido
a pisada quando se retoma
um pedaço de saúde depois de alguns dias

o ar do mundo é outro depois de uns dias
não tem mais o mesmo cheiro
há uma certa leveza, na forma de percebê-lo
que não estava aqui antes

o ritmo das coisas, das pessoas
quem nunca ficou doente não pode ser poeta
porque é na espinha quebrada do sistema
que reside o melhor verso

a água do chuveiro
derramando-se lentamente pelo corpo  é outra
sentir a gota, o descer da gota, morno fluxo
do pescoço às costas, das costas aos tornozelos

a dialética do espírito, clara , cristalina
depois de uma puta noite maldormida
por conta de nariz entupido
é aquela mesma capaz de te fazer perceber
já desperto muito cedo
a beleza do canto inusitado dos pássaros
ao se desfazer a madrugada aos poucos
o sentir dos raios do sol no primeiro calor

aos poucos, como uma tempestade
a influenza vai passando
e depois dos dois primeiros dias
(sempre os piores)
vai vindo de fininho uma calmaria
aquela que antecede a retorno da roda

quando retorno à rua, vou assim meio bobo e tonto
entre canteiros, tudo que é antigo parecendo o primeiro
as sombras da cidade, o movimento das pessoas
todas as cores me atraem, é o vermelhão da graxa
no meio desse jardim verde da igreja

o Canarim da Terra
que eu não percebia tão amarelo

a chuva que volta sem aviso e pesada
revigorando o limpo do ar por mais uns dias

me encanto até pelos urubus
esses companheiros de final de tarde
em altos vôos sobre o topo de morro
pegando vento aberto nas térmicas ascendentes

quase recuperado e um convencido convalescente
hoje inauguro um novo corpo para o mundo