Da inutilidade da poesia

Pontas secas, no limite do quintal
a árvore
há muito não estava em si

Sua essência desistira
de qualquer consciência
para me legar apenas
metáforas

Mas eu amava suas pontas aduncas
seu estilo alto e gótico
e o celeiro de pássaros ao entardecer
quando as tintas do ocaso
escondiam atrás dela
os últimos raios




Era somente depois desse itinerário de sol
que o dia se encerrava

À noite, corujas sibilantes no paiol de galhos
suas pupilas dilatadas
posando para a foto noturna

A lua em suas costas, gigante
sorridente e amarela

E a favela crescendo iluminada
no bairro de luzes atrás
como bolas de natal
procurando um nicho

Morta ou quase
tantas vezes tentadas
até se extinguir

Uma, por artifícios de formigas
essas criaturas tacanhas e hediondas
cegas de qualquer arte, escravas do ser social
incapazes de se tornarem outras
portadoras daquele mal
que nos faz cada vez mais
adorar as cigarras

Outra, por obra da perfídia humana
ciente e persistente nas artes do abate
injeções de toxinas no calado da noite
até que abdicasse do mundo
sonegando sombras e abacates

Falhando tudo isso
e a natureza compensando
uma vez mais
a cada chuva rebrotavam
os galhinhos verdes
novas folhas
o sol acudia
e os ramos floriam

Ontem, depois de ruídos motosserras
veio o homem me dizer, satisfeito
com o trabalho na surdina realizado
suado, sorrindo, num dia quase perfeito
que seus troncos abatidos, cortados

Medidos todos com algum conceito
serviriam para banquinhos, uma mesa
lenha para os galhos imprestáveis
e tudo que fazia, que beleza
não seria assim apenas
mais uma morte de árvore vazia

Mas se esqueceu, o cidadão
que as metáforas nem sempre
têm os pés no chão
e que para se criarem
alimentam-se primeiro
da utopia

Posto que ninguém costuma
fazer versos para banquinhos,
mesinhas, e quem sabe
para um graveto que virou fumaça
e que em vez de se doar a tudo
que antes possuía alguma graça

Uma nova vida, desprovida
embutida nalgum tipo banal
de função
há que provar-se por um instante
o despertencimento e a indefinição
o molhar os lábios
na incontida magia da fugacidade

Esqueceu-se o cidadão
(mais esta espécie de formiga)
que, de todas as qualidades
materiais das coisas
a que importa menos à poesia
é a tal utilidade