Rilke, Pessoa e a fidelidade ao mundo

"Quem se eu gritasse, me ouviria pois entre as ordens
Dos anjos? E dado mesmo que me tomasse
Um deles de repente em seu coração, eu sucumbiria
Ante sua existência mais forte. Pois o belo não é
Senão o início do terrível, que já a custo suportamos,
E o admiramos tanto porque ele tranqüilamente desdenha
Destruir-nos. Cada anjo é terrível.
E assim me contenho pois, e reprimo o apelo".

(Rilke, "Elegia", parte I)
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Por mais casto e dedicado que eu mantivesse meu corpo
por mais que eu castrasse meus atos
 eletrocutasse meus desejos
meus poemas ainda assim seriam 
essas criaturas 
ora perdidas, ora  lúbricas
incontidas, doces e ferinas
flertando em eterna curiosidade
e êxtase
com o próprio mundo
 em qualquer esquina
Simples assim, sem sequer
eu permitir
Porque meus versos é que me usam
para existir
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(Claus Zimerer)



Como ser fiel, por prazer ou dever
e ainda permanecer poeta
Não é como perguntar ao fogo
se ele ainda queima
depois de apagada a chama?
Ser poeta, como dizia Rilke,
sustentado por Pessoa
é reivindicar para si
o direito de ter e ser
todas as coisas do mundo
mesmo que isso só dure
o tempo do verso

Se o poeta não se deixa levar
mas é leal
presta lealdade a quê
a quem, exatamente
se os sentimentos do mundo
mudam o tempo inteiro
alados por impressões
contidos na respiração instável do momento
e as mesmas impressões lá atrás marcadas
serão outras logo ali na frente
renovadas, com outras cores
imagens, sons e sabores
se tudo correr bem?

Ser fiel a um dado estanque de tempo
não é deixar de amar a poesia
que sobretudo é fluxo?
deixar de desejar tudo
que o toma pelo braço
não é papel de poeta
mas de soldado
que precisa impor a ordem
a tudo que é exterior a si
quanto ao poeta, quem ainda não sabe
que não existe nada que lhe seja exterior?

Fidelidade a qualquer valor
é professar a não liberdade
e uma vez mais legitimar
o vínculo formal e social
essa palavra cantada
que soa como cadeado
é o dever do soldado
para com seu general
do elo para com sua corrente
do escravo para com seu senhor
da engrenagem para com
o sistema que ela alimenta

Sendo palavra
-- e por isso
uma eterna fermentação do sentido--
ser fiel à formalidade
é menos que nada
e nunca rima com liberdade
Jamais deve ser comparada
com os estados de afeição
amor, ódio, paixão
Paixão e ódio são  arrebatamento
amor é  assimilação
ambos contradizem qualquer tradição

Não fosse assim, o paradoxo ainda reinaria soberano
pela estreiteza da visão julgadora, que tudo recrimina
porque não sabe criar
pois como o poeta seria desleal com sua terra natal
ao apaixonar-se pelas viagens ao redor do mundo
por cada povo, cada costume, cada cultura
que o assediaram intensamente desde que partiu
tornando sua humanidade mais ampla?
querer ser do mundo não é, uma vez mais
o desejo de revelar-se a si e à sua própria terra
para o desconhecido?

Como o poeta seria desleal com suas crenças
ao entregar-se deliberadamente a outras
que tocaram seu espírito de tal maneira
que o mundo materializou-se uma coisa
nova a cada dia, diante do seu olhar extasiado?
desdenhar Deus não é amá-lo e homenageá-lo
ainda, sobre todas as coisas, porque significa
sobretudo reconhecê-lo independentemente de sua forma?
adotar outras espiritualidades e professar
sem preconceito outros ritos
não é testemunhar a beleza da condição humana
em suas infinitas tentativas
de  tocar o sagrado??

Como o poeta seria desleal com seus amores
se a cada ser que amou desde que nasceu
dedicou seu corpo, sua alma, sua melhor ação
o seio materno, os primeiros brinquedos
as paixões juvenis, o ensaio do beijo
o primeiro gozo, a primeira dor
em suma, tudo aquilo que o fizeram
compreender o amor
e ainda perceber a vida como esse incandescente
caldeirão de magias e sentidos
e assim o fizeram querer mais,
mais e sempre mais
dessa musa amorosa repleta de tanto leite
e foi justamente isso, em magnitude, que
o tornaram poeta?
amar incondicionalmente o que o tocou
da forma mais profunda
não abandonar seus sentimentos
mas alimentá-los ricamente, para que cresçam
que fluam com esse grande rio
onde cada água jamais permanece a mesma
não é celebrar a grandiosidade da vida
não é provar em última instância
que o amor existe como a amplidão
do céu na noite estrelada
e não na particularidade de uma estrela
isoladamente?

Lealdade, no fim, é  preceito de si mesmo
porque a verdade de um sentimento
só obedece ao seu próprio pulso
e não alimenta outro corpo
a não ser o que sente
esse corpo-no-mundo
envolvido perdidamente
Pode-se cumprir o dever, o pacto
por senso de justiça, obediência
ou dedicação à palavra dada
mas lealdade, se há,
é algo que veleja em outras águas
e ser leal, como se diz
é primeiro ouvir a própria voz
assentindo que tudo é válido
se não for pequeno

Se a palavra é condicionada
por coisa outra que não
seja a sua própria força
e por amor ao seu objeto
não é sequer lealdade
mas dever de ofício
pacto social, moral,
simples compromisso
com carimbo e cartão marcados
e como tantas vezes visto
recurso utilizado com frequência
por aqueles que mais o caluniam
para se justificarem aos olhos
da recalcada consciência
ou pagarem tributo ao censor do outro

Não há qualquer correlação possível
entre o amor exponencial do poeta ao mundo
--seja que mundo for--
e sua realização material
daí o sofrimento inerente a toda visão poética
que perscruta os labirintos intocados
de tudo que é humano
daí o choque recorrente do verso
com o mundo que o circunda
a absorção nas coisas do mundo
e o repúdio de todo pacto
quando ele diminui a vida

O poeta será sempre a criatura
para além da compreensão
e aquém do compreendido
porque o amor incondicional pela vida
e a realização de sua matéria enquanto desejo
pertence ao puro acidente, é do acaso  sua realização
como é da vida a instabilidade o imprevisível
e amar não é necessariamente possuir
mas a expectativa desse  amor superlativo
é que o mantém vivo
seja o amor ao mundo real, como se diz
ou àquele que ele mesmo cria no seu âmago
seu mundo imaginário, repleto de sentidos
Sentir não tem o condão
de empoderar a quem ama
sobre o que se ama
antes, é um enfraquecimento
uma vulnerabilidade, uma confissão
aquela beleza trágica e delicada
que dá origem à vida
e que, por um descuido,
pode também eliminá-la

Ser leal para assenhorear-se de alguém
garantir direitos sobre seu pertencimento
em vez de se deixar seduzir por ele
em vez de se apaixonar por ele
não e´forma superior de interação
antes, é sintoma de impotência
ou confusão dos sentidos
por uma via moral
socialmente imposta

Desde logo, que se cante o perdão
porque ao poeta há de ser perdoado
o exagero nos sentidos
uma certa fugacidade
uma frequente frivolidade
jamais  cobrar-lhe fidelidade
a não ser ao motivo do seu verso
porque ser poeta é absorver de forma
tão intensa a liberdade em seu próprio ser
que, uma vez internalizado esse movimento
de ser livre
-- que é nada além da mais pura necessidade
ele jamais se perguntará novamente
se pode ou deve tal coisa
porque seu desejo abraça as coisas antes
por dentro, pelo que elas são
e apenas assim é que elas podem vir ao mundo
em toda a sua plenitude

Ele sabe
que , para muito além de qualquer  convenção social
( e é disso que falamos, afinal)
está lá, perto ou longe, como única razão
que faz seu peito respirar
uma razão sem qualquer outra razão específica
uma razão desarrazoada, mutante e bela
pura pulsão, pura intuição, vento e gosto
que a cada momento
pode ser uma nova razão

Uma mulher que cruzou seu caminho
lembrando ao espírito adormecido em trevas
como a pele, o perfume e o movimento são a própria vida
--um poeta busca a mulher, em particular, pelo gosto da aventura
e o prazer da descoberta, mas ama sobretudo o feminino
que há nas mulheres, essa experiência de eternidade contida--
uma criança que resplandece o brilho nos cabelos
contagiando o olhar por tudo aquilo que ainda não viveu
--um poeta busca a luz  que existe nas crianças--
um velho, num rosto enrugado como um grande livro
reverberando as frases escritas pela vida
na experiência de talhar o mármore
--um poeta se alimenta da experiência que não é a sua
porque sabe que em apenas uma vida não poderá alcançá-las todas,
as experiências que compõem a humanidade
a não ser pelo amor e compaixão dos demais seres--
uma simples libélula, essa coisa
indefinível essa palavra bela
entre o infinito e as possibilidades
--um poeta precisa crer na transcendência
apostando na imanência de tudo que vive
e só através disso, almejar o sagrado--
e até mesmo uma pedra
quando o poeta sofre com ela
ao percebê-la imortal
--repudiando a imortalidade é que a poesia
pode tocá-la finalmente ao falar da vida

Mesmo que cada uma dessas paixões
mude da noite para o dia
mude diversas vezes dentro do mesmo dia
e como cortiça, os sentimentos mergulhem tantas vezes
e retornem vivos e sagazes novamente à superfície
isso não terá sido a sua exceção, mas a sua regra
ele não terá negado a si mesmo por três vezes
ele não terá se vendido por qualquer dinheiro
sequer terá deixado de amar
tudo que já amou um dia
terá apenas exercido em corpo e alma
-- ou melhor, --
numa alma tornada corpo em plenitude
a sua natureza mutante como o mundo

Terá sempre sido fiel, leal e dedicado
com o mais profundo que habita seu espírito,
ao apaixonar-se incessantemente por tudo que a vida
soberana e inexorável trouxe à sua mesa
todos os segredos que ela lhe sussurrou
no ouvido da noite
todo o brilho e todas as cores
que ela, insistente, insistiu para que
ele olhasse com bons e novos olhos no cotidiano
quando ele já se cansava de tudo
todos os socos e tapas e chutes
dos quais ela não lhe poupou
quando ele encontrava-se inerte
e sua pele já nada mais sentia

Não é porque queira causar qualquer dor
não é porque se julgue um ser superior
não é ainda porque desdenhe absolutamente
de todos os valores humanos que, por
fraqueza ou virtude se convencionou
adotar em sociedade

Fidelidade, para o poeta
é o amor incondicional pelo mundo
quando sente que não deve obediência
a ninguém, a não ser a si mesmo
e no seu silêncio mais profundo
ele nem precisa se explicar
porque a razão é bem mais simples
mais pura e mais direta
se o seu sentido de lealdade
seguiu apenas seus próprios versos
é porque, para continuar vivendo
ele precisava permanecer poeta