ANSIEDADE (crônica, sem trocadilho)
"Ansiedade é o cara dar descarga antes de acabar de mijar". Ainda meio atordoado, eu releio em pensamento essa fala que apanhei perdida por aí, por tabela num texto da rede, sem memória neste instante sequer para homenagear o suposto autor. Depois dessa definição ao mesmo tempo conceitual-filosófica-existencial e poética tão devastadora, que denota não apenas uma enorme capacidade de síntese, aliada a um espírito de época jocoso e ao desejado oportunismo gaiato que caem bem nas mãos de qualquer cronista, eu fico pensando por que é que algumas gentes, como eu, ainda gastam tanto tempo em pesquisas metafísicas sobre pensamentos, falas, sons, livros, filmes, e ainda varam noites mirando estrelas e procurando onde-sei-lá-o-quê-ou-quem que tenha dito alguma coisa relevante, agora ou há cinco mil anos atrás, algo que tenha o toque-pérola de fazer valer o dia, a semana, a vida .
Para contraditar essa enorme curiosidade e o incansável espírito da descoberta, que segundo Aristóteles nos redefine perante a natureza, tenho aquele outro espírito "de porco" que às vezes questiona os resultados de suas próprias buscas quando vê o resumo da ópera eventualmente sendo melhor definido por um passante que tava buscando porra nenhuma e achou por acaso. Traduzindo em miúdos, é como se confessasse, aqui pra ninguém ver, que depois de tantas amarguras e dedicação, eu já esperava que Heidegger me desse alguma coisa além de um "ser-para-a-morte" para enfrentar o cotidiano, que Sartre me tirasse a dúvida : é o ser ou é o nada , afinal? ou um ser que é nada, um nada que pode vir-a-ser, enfim, ô Sartre! amor bandido, esse. Mergulhando no profeta Nietzsche por mais de duas décadas pro Zaratustra no final das contas continuar me dizendo que "devemos rir de nos mesmos, e afinal, propondo a definitiva sentença: "quão poderoso é aquele que ainda pode rir e se sentir elevado?". Numa vida que mal nos permite sermos homens, quem se arriscaria a ir além, homem ou mulher, sem tomar uma saraivada de tiros pelas costas como Marielle ao enunciar alguma verdade sem nedo?
Pego então, com Deus e Camus (ou melhor, sem Deus e com Camus), no espírito-do-mundo, que é o que é , mas ao mesmo tempo sempre guarda uma certa transcendência porque o humano afinal não é apenas uma coisa, algo que se designa na solidez da matéria bruta ou se resigna com o concreto, algo que guarda um dado sentido estanque ou uma ponte equivocada para ele, como se vê aos montes pelos pensadores de aluguel barato nas esquinas, mas revela-se no absurdo daquilo para o qual realmente veio a ter. Sim, outra vez Camus. É no absurdo e não numa suposta lógica que desvelamos o que realmente somos. Não há razão maior ou sentido extra que subsista a essa simples constatação. Depois da saga inglória pelos caminhos tortuosos do conhecimento , o aventureiro espera tudo nessa vida em termos de realização, sabedoria, experiência e jogo de cintura, mas agora como é que isso fica de pé diante de uma dessas frases feitas (não sei bem por quem, mas desconfio de vez em quando que são todas oriundas da mesma pessoa, que faz isso só de sacanagem), que saem de toda parte, até mesmo quando você nem está procurando, e dá de cara com algo de natureza semelhante, um chavão filosófico na parede de um banheiro?
Nessa vida perdida de barzinhos e finais de noite, já tive oportunidade de ver várias pérolas grafitadas nas mais inusitadas paredes, portas e até nos tetos . Além dos tradicionais recados, desenhos e esboços que certamente não fariam feio numa bienal de arte contemporânea, além dos números de telefone, convites inusitados e propaganda de predicados pessoais não publicáveis neste horário, surgem sempre umas tiradas clássicas como esta : "A melhor cura pro amor platônico é uma trepada homérica", por exemplo, é uma das minhas preferidas. Mas tem também coisas mais estéticas, com direito a rima: "Renata bulimina namorava Marcos anorexia. Os dois viviam felizes. Ele nunca engordava, e ela só emagrecia", ou quem sabe : "Obrar é o Tao profundo e o princípio geral do universo. Foi obrando que vim ao mundo, obrando fiz este verso"; tem preceitos político-cidadão: "Puxe a descarga com força. Há um longo caminho daqui até o Congresso"; Há os apelos mais diretos, talvez reforçados pelo contexto e a bebida extra: "Alto, moreno, olhos verdes, musculoso e muito carinhoso, de preferência com tais e tais proporções anatômicas: se você for essa pessoa, ligue pra mim. tel xx-xxx". Há também coisas bem inusitadas, mas que não nos cabe censurar devido á grande amplitude de gostos e tendências que naturalmente não podem nem devem ser censurados dentro do que se convencionou chamar humano: "Se você gosta de Papai Noel, me chame, tenho também as versões "Barba Ruiva" e "Muçulmana" (??) tel...xxx" E por fim, há aquelas coisas mais enigmáticas, que temos um pouco de medo de saber até onde iriam as consequências se ligássemos para o número informado: "Se não gosta do seu filho/filha/sogra/irmão/pai, eu resolvo o problema. Me pergunte como... Tel" :)
É como se houvesse em algum canto perdido "a explicação" definitiva pra coisa toda. De preferência, uma explicação feliz e inconteste. Não sei se há, e hoje com um bom caminho andado, até desconfio que não ,mas como muitos, ainda continuo procurando, porque procurar, afinal, é o mais próprio do humano. Desacredito em respostas prontas, assim como desacredito de quem já achou e terminou suas buscas. Mas ainda pela tardinha, a frase do dia : "Ansiedade é dar a descarga antes de mijar", não saía da minha cabeça. Sim, por várias razões. Talvez primeiro porque eu mesmo sou ansioso pra kct, vivo achando que posso antever movimentos e minha intuição é algo que deve ser cuidado e preservado muito antes de qualquer razão? Bom, pra piorar, e sou o próprio tipo que dou descarga antes de terminar de mijar. Acho que me enquadrei no bordão. Então, faz sentido.. .
Ou talvez, buscando mais fundo nas filosofia porque depois dessa definição contundente para um dos estados mais clássicos, avassaladores e ao mesmo tempo tão em voga hoje em dia, na nossa era digital, o "status" de ansiedade, o mesmo que deflagra tão ricamente o sorriso largo de boa parte dos psiquiatras e da indústria de medicamentos que por tabela engorda nessa sombra, o mesmo status que precipita nas pessoas em geral atitudes que vão desde falar o que não se deve na hora errada, ficar nervoso demais numa entrevista de emprego, numa prévia de namoro ou no entrevero sexual, a mesma energia poderosa e ao mesmo tempo pernóstica que nos faz acordar mais cedo, estudar mais do que deveríamos, malhar mais do que o corpo aguenta, xingar à toa ou sair na porrada no trânsito ou brigar com o amigo por causa da última partida de futebol, ou ainda, buzinar demais para o cara da nossa frente no trânsito, o pobre coitado que assim como nós, não tem a menor culpa nem noção do que está acontecendo logo ali na frente do engarrafamento.
Eu mesmo me descobria uma espécie de xingador enclausurado das outras pessoas no trânsito. Veja só. Não abria o vidro nem, obviamente, xingava ninguém no grito, mas xingava alto e sozinho dentro do carro, tudo que é palavrão. Até que andei levando uns cascudos de gente aqui de casa, e resolvi mudar de tática. Aprendi que deixar um sonzinho ambiente no cd player ainda ajuda e pensar em passarinhos e na água do mar podem ser um bálsamo e tanto. Mas é do ansioso, antecipar tudo, para o dia de hoje, tudo que ainda teima -- essa coisa boba da vida-- em tentar acontecer na época e contexto certo, mas nós insistimos para que aconteça aqui e agora. Ansiedade. Excesso de futuro, sim, dar descarga antes de terminar de mijar.
Porque vivemos em um mundo artificial, lidamos em conflito com uma situação que, a princípio, seria natural e conservadora da vida. O mesmo status que, na natureza livre, prepara a presa com um ciclo orgânico , poderoso e súbito de hormônios, acelerando seus batimentos, ampliando a cobertura de visão dos olhos, aumentando a respiração e colocando-o súbito em estado de alerta para a fuga, provoca em nós um desastre. A mesma pré-condição que, se fosse exagerada, poderia estragar também a caçada do predador, como vemos tantas vezes nesses documentários do NatGeo ou Animal Planet, os jovens leões que perdem a caçada de zebras porque avançaram antes da hora, ou põem o grupo em perigo porque se deixam avistar antes pelos perigosos líderes da manada de Búfalos.
A mesma ansiedade animal, presente em quase tudo que é bicho, mas que em nós, humanos, certamente faz mais estragos do que neles. Porque não estando exatamente nessa luta literal pela sobrevivência , "na natureza selvagem" -- apesar de muitos dizerem que a nossa vida na cidade é mais selvagem que na floresta, enfim-- todos esses sintomas que nasceram para ser amigos, gatilhos, reflexo de saúde e força, se voltam contra nós. Nem vou entrar na seara dos males físicos, disponíveis pra qualquer um nesse glossário da net, mas os mais preocupantes são mesmo os psíquicos. Há um mundo, afinal, que se constrói em paralelo, baseado apenas na ansiedade da vida , em seus diversos momentos, e com sérias consequências para o ansioso, propriamente dito, bem assim para todos ao redor.
E além de tudo isso, o ansioso tem a tendência de sempre estar cansado demais. É viciante, é do sangue, e é difícil pra kct tentar mudar essa tendência, porque é como se torcessem a sua natureza para aquilo que não é. Simples até, de entender: como gasta por antecipação boa parte da sua energia-- psíquica, primeiramente-- para tentar antever os movimentos dentro do próprio dia ou das situações a que está exposto, e como vive de expectativas (e expectativa é algo que cansa muito pra carái), esgota-se nos preparativos e movimentos. E é claro, depois quando se envolve diretamente no problema em que está inserido, estará naturalmente despendendo a energia física para tentar resolver a vida real, daí ele se cansa sempre duplamente, e por isso chega ao fim do dia, ou da noite, completamente esgotado.
Ao contrário do que qualquer bom-senso recomendaria, um pedaço de descanso absoluto para desintoxicar alma e corpo dessa correria, essa mesma criatura ansiosa estará cometendo algum destes erros, ou todos juntos: estará assistindo a algum programa que o deixará ainda mais ansioso, seja pelo jornalismo chão, seja pelo excesso de consciência de mídia, pulverizada de hora em hora sobre seus sentidos já em polvorosa, estará tomando ou café ou coca-cola ou um chá verde pra injetar ainda mais cafeína ou quem sabe comendo aquelas maravilhosas barras de chocolate 70% cacau que entram como um tiro na corrente sanguínea. Se não for nada disso, ainda na fase inicial, e a vida já o tiver alçado a um nível mais profissional de ansiedade, como numa hierarquia do videogame que você sempre se esmera para melhorar, ele já estará tomando seu Rivotril ou Lexotan para garantir o soninho sistemático e engrenado para religar o mecanismo com muito café ou quem sabe um Prozac às sete da manhã seguinte?
Por isso fico grato entre outras coisas quando, logo cedo, já desperto e no meio das minhas pesquisas matinais e rabiscações, vejo logo de cara uma frase com tal poder poético de síntese que certamente por outras impossibilidades materiais não poderia ter sido cunhada lá nos primórdios da humanidade, no Egito, ou na Babilônia, Assíria, quem sabe? pela simples falta do equipamento a ensejar a conclusão da idéia, mas que permanecerá no espírito ainda por um tempo, todas as vezes que uma criatura como eu estiver novamente de frente com seu mictório, seja em casa, seja nos espaços coletivos enfim, e vai acabar se lembrando, como uma espécie de mantra: "Ansiedade é dar descarga antes de mijar"...