Cansaço

A palavra da época
mais que o desejo
mais que propriamente o medo
ou o sentido histórico 
de saber o que fazer

Porque não sabemos o que fazer
(essa talvez, com tamanha simplicidade
pode ser uma inexorável verdade)
é tanta informação bombardeada
o tempo inteiro
tantos fragmentos sem laço

Que meu testemunho da época
é esse, comum e singelo: 
uma rendição pelo cansaço
não há mérito algum 
em meus próprios traços
abstratos, coisa de formiga
perdida
que sabe de um pote de açúcar
em algum lugar
mas perdeu o caminho

O meu sentido individual
[que em algum momento
deveria ser alguma bússola,
um sentido possível]
agacha-se e esconde-se do
golpe terrível que é não 
ter uma opinião
num mundo que vomita opinões

Cansado de ter opinião. Todo mundo tem.
e não existem arranjos construtivos
no intervalo entre bombardeios
cansado de não ter o poder de mudar
quando o que está lá fora precisa mais
do que apenas mais uma voz 
fazendo coro num cântico impotente
que se contenta apenas em cantar

Pode ser que isso tudo mude
como tantas vezes já mudou em mim
e de tempos em tempos eu próprio
me convença que é preciso gritar
é preciso voltar à coletividade
e que o grito, uma vez berrado junto
como animais encurralados
na porta do matadouro

Nos dará alguma ilusão duradoura
de que foi melhor berrar alucinados
do que  partirmos calados
mas enquanto não me 
enchem os olhos com
qualquer solidez
não me tocam a pele
essas falas estranhas
com uma mão humana
enquanto o ar que se respira
for esse mesmo
esse ar de curral

Eu me sentirei sempre mal
por estar sempre fazendo parte
de um coro que eu não sei onde
não sei quando nem por quê

E não haverá qualquer esperança
não haverá cor que se firme
traço que se procrie
tesão que justifique a vida
se, mastigados por essa lida

Nós não soubermos
por trás desse monte de arranjos
além dessas paredes inexpugnáveis
que acobertam sistemas
nós não aprendermos a ver

Que as mudanças nesse mundo
grande, impossível, mundo político,
mundo da história e dos destinos
venham
porque são importantes
e nós possamos testemunhá-las
ainda em vida
além de tudo, que 
sejamos nobres e altivos
o bastante
para torná-las algo passível
de ser vivido

mas que me dêem 
enquanto não chegaram
o humano direito
ao cansaço
metáfora maior
da minha triste época