O pequeno sol


E o futuro pai desabafava com um amigo, desses que sempre têm o toque certo: "Mas o parto já é mês que vem e eu já li a porra toda de revistas  e ainda não aprendi nada sobre crianças". O cara ,do alto de sua garrafa de cerveja, responde, todo chinês: "Não se preocupe, ele  é que vem pra te ensinar. Você vai aprender com ele. Portanto, cabe ficar com a mente aberta e os ouvidos atentos".
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thanks, my friend!



Recentemente casados, não demorou três verões para que ela engravidasse. No início, susto e ansiedade pelo inusitado da coisa toda. Ambos muito novos, a vida ainda por fazer e a experiência cósmica e existencial apavorante de engendrar um terceiro ser humano pela frente.  Passados uns dias da notícia, como em tudo na vida, a consciência maior das grandes coisas foi se assentando e agregando a si as melhores expectativas ao preparar mentes e corpos para o importante papel a ser exercido.

O fato é que, em pouco tempo,  aquela menina de 22 anos exibia a mais linda barriga que ele já tinha visto. Radiante, enorme e perfeita, benzam os deuses! Deixando o pudor de lado, pela primeira vez ele percebia, ao contrário do que lhe fora ensinado na cartilha previsível dos homens passada de geração em geração, como uma gestante podia ser bonita enquanto mulher, e como a idéia da mãe potencial não tinha necessariamente que anular ou contrariar o tanto de mulher que havia na mesma mistura. Raça doida de seres sublimes! Ela se aumentava. Súbito, tornou-se transparente o sentido duplo da mulher que arvora-se em mãe, tornando-se um bicho mais poderoso e mais interessante, ao contrário do que normalmente pregava o senso comum.

Mesmo a rotina amaciando a gastura toda no tocar da roda, não se pode dizer que não tenha havido "problemas técnicos" durante os longos anos que duraram nove meses. Ou oito e uns quebrados, para ser exato. Mas nada que não fosse resolvido com uma dose extra de prudência, paciência, conselhos médicos e muito repouso na reta final. O moleque já exigia muitos cuidados mesmo antes de nascer. Aquela barriga magistral cada vez aumentava mais, e não seria surpresa se na hora H, sem aviso, surgisse dali mais uma criatura ou duas para dar um alô para a humanidade. Esses ultrassons sabem nada!

E haja marido para compensar tamanho enjôo e indisposição dos primeiros meses!...O tradicional calvário de todas as gestantes, seguido com aflição pela maioria dos pais de primeira viagem. As muitas idas ao médico para a verificação do andamento, banheiro a cada hora, não pode isso, não pode aquilo, cheiro de café à distância já provocava náuseas, perfumes não podia, nem produtos de limpeza por perto. Hormônios fervendo a toda prova, gerando um desencadeamento de crises vulcânicas a cada meia hora, do tipo bumerangue: "Mas eu estou feia!!" " Vou engordar e você não vai gostar mais de mim..." "Vou  pra casa da minha mãe"... "Aumenta esse ar-condicionado pelo amor de Deus, criatura, que tô morrendo de calor"..Mais comida! tô morrendo ! Ou o tradicional desejo "Hoje vou querer salada de atum com geléia de amora, temperada com pimenta mexicana, molho curry com maionese e sobremesa de jaca". Corria o cidadão pro mercado, pra farmácia, pro médico, pro mecânico e pro psicólogo, naquela clínica conhecida e  disponibilizada pela figura dos queridos amigos de boteco, cada grande FDP com sua receita mágica e infalível para o dia "D".

Agora tava fácil: era só escolher nome para o menino! Passada a fase de incerteza sobre o sexo do futuro rebento, e novamente desmistificada até essa última fronteira pelo sem-graça todo da ciência. Ele abdicara de escolher o nome logo depois da décima discussão, e de perceber então qual a importância absurdamente energética, mística e cósmica de um simples nome, conforme pregava a revista. Isso sem falar nos manuais de como criar filho, que nessa época, multiplicavam-se feito notícia ruim nas bancas de jornal. O amigo da banca já separava pra ele a edição semanal,  e nesse percurso chegou a conhecer mais alguns outros  futuros pais ansiosos de beira de banca.

Numa época onde a internet ainda era iniciante em seus "dá um Gooooogle", tinha  revista de todo tipo e livros pra todo gosto. Geralmente cheios de figuras e com conselhos e receitas milagrosas. Acompanhavam, grátis, umas fotos daquelas criaturas em vermelho fazendo caretas ao serem puxadas subitamente pelos médicos do quentinho da barriga, a cara inchada e o mau humor como se saíssem de um ringue com Mike Tyson. Ele se tornou habituée de banca. Depois de comprar o "Manual dos pais iniciantes" e de dar uma folheada em "Como criar seu filho", passou direto pelo "Adolescentes dão trabalho mesmo" e fez questão de não ler o "Doenças comuns da infância". Preferia, nessas alturas, às vésperas, ficar apenas na superfície do "Nomes de meninos e meninas" e do famoso Manual. Ansiedade não ajudaria. O segredo do boxe é esquivar ou encaixar os golpes na hora certa, não havendo até hoje notícia de boxeador campeão que só soubesse bater ou ganhasse luta antes do ringue.

Chegou o dia! Hospital na corrida, trânsito dos infernos no caminho , não há preparo que dê conta quando a vida aponta na esquina. Apoio da família, ansiosa, e da amiga mais querida, comadre experiente no mundo das pequenas criaturas, que jamais faltaria nessa hora. O moleque veio de cara amarrada, bravo e chorando grosso, deixassem ele pelamordedeus ali mesmo onde estivera nos últimos meses, quentinho e sossegado, que esse negócio de sair para o mundo era coisa de maluco! Digamos que o calvário psicológico do orgulhoso e maravilhado pai, que até então não se tocara muito sobre a realidade da coisa, começava a partir daí. Trajeto de volta para casa  na paz, o carro na frente com ponteiro cravado nos 30 km/h, a jovem mãe nervosa pedindo pra ir ainda mais devagar que tava correndo muito, o pai suando frio e barrando o trânsito  e toda a frota de carros, caminhões e ônibus buzinando  freneticamente atrás, querendo ultrapassagem. Danem-se! Pensava enquanto segurava o pé no acelerador. Carga preciosa no "Moisés" do banco traseiro, motorista tremendo no volante e o resto do mundo que compreendesse suas razões.  Chegando em casa, após sessenta quilômetros de estrada percorridos em  três horas de viagem, a vomitada de nervosismo tradicional, é claro, antes da rodada dos habanos e da cachaça da alegria (tacitamente, a promessa de parar de fumar ficava adiada automaticamente para a outra semana).

Passada a primeira semana em choque, com a criatura berrando direto num tom de voz tão alto que ele até então achava impossível nessa idade, sem muitos anos de preparo e canto lírico, zilhões de fraldas sujas e banhos técnicos de banheira cuidadosos como uma cirurgia cerebral, e  depois de assimiladas  mais outras três ou quatro semanas de adaptação ao novo sol, e ao fato de, enquanto pai, ter sido trasladado repentinamente ao status de planeta satélite da sua própria vida, a coisa ia de repente ganhando corpo, e uma quase impossível rotina ia sendo digerida pelo novo cotidiano.

Sim, porque não digo isso aos "pais por esporte" que há aos montes por aí. Mas se alguém realmente pensa em ser pai ou mãe, no sentido mais amplo e intenso da palavra, deve saber que uma coisa é a vida de casal. a parceria, a união, projetos, seja em que formato ou estilo for. Isso geralmente segue um padrão de continuidade. Se você mora separado, e vai passar a morar junto, estabelecem normas, limites, fazem uns combinados e tudo bem. Cada um ainda em sua individualidade, compartilhando o que de melhor quiser com seu parceiro. Filho, não. É ruptura, mudança de ritmo, de valores, de tempo. Aí é outra parada, irmão. O eixo do seu mundo muda. Você, criatura consciente e Cartesiana, nem sempre senhor do seu passado mas pretenso condutor do seu futuro, precisa sair um pouco de lado pro pequeno rei (rainha) passar.

Você é coadjuvante, agora. Nada demais nisso, se tiver muito amor no coraçao, um pouco de humildade e sentido de vida. Mesmo com essa mudança que poderia apavorar muitos, há uma beleza intrínseca nessa coisa toda. Abrir mão de você para outra criatura poder brilhar, isso que não necessariamente acomete apenas pais e mães biológicos, mas também qualquer tipo de pai ou mãe por adoção, que possua o belo sentimento de compartilhar vida, é algo bonito, veja só. Nos torna mais humanos e enriquece a experiência de vida.

Deixadas essas especulações metafísicas de lado enquanto assoava a meleca do nariz e penteava os longos cabelos cacheados da criatura na pia do banheiro, era só alegria daí a uns segundos quando levava o pirralho passear no parque , com bicicleta de rodinhas e a fabulosa capa de superman, ele ia correndo na frente e o pirralho se esgoelando atrás pra acompanhar. Ele recriava uma vez mais em outro contexto as tais brincadeiras que na verdade nunca haviam abandonado seu espírito.

As aventuras não paravam por aí, num cotidiano que se coloria pra caber às novas vidas. Comprar giz de cera pro moleque rabiscar a parte baixa das paredes da casa (algo não apenas não proibido mas estimulado pela mãe, artista plástica), ensinar a jogar bola, enrolar a fieira do pião a uma criatura que não sabia ainda descascar laranja nem amarrar os próprios sapatos, ensinar a xingar os palavrões certos e contar histórias pro filho dormir  e geralmente acabar dormindo primeiro de cansaço antes da história acabar, elaborar toda a ginástica de alimentação do pirralho (a parte mais difícil de uma vida de pai), pra convencê-lo de que aquilo que comia realmente era importante,  e é claro, doutrinar o pirralho desde cedo com o uniforme e o grito de guerra do maior time campeão: É Flamengo, porra!

Curtia aquilo tudo como um milagre que é ver a vida se renovando desse jeito, apenas mais um pai  babão como tantos outros espalhados pelo mundo. Um planeta ora girando feliz em torno do seu próprio sol, ou eventualmente preocupado com a chegada do inverno, quando as crises de bronquite ou a ameaça sempre presente da pneumonia ameaçavam extinguir o brilho do pequeno astro, e com ele extinguindo-se o brilho das outras coisas. Cabelos brancos em cascata na testa do pai, as tais noites insones de que tanto ouvira falar e uma recuperação bombástica na primeira  pneumonia. Mais demorada, na segunda, com os cuidados de uma mãe apegada e muito tato dos atentos médicos, que sempre perceberam logo no início.

Em outro aspecto de sua vida, contudo, a coisa empacava. A tal carreira ficara em segundo plano. Os escritos também rarearam, de repente, e ele depois de um tempo se culpava por não estar mais praticando a arte. Desde criança, a experiência da escrita integrava sua vida. Jamais estivera sozinho no mundo, sem as letras. Era como acordar e dormir pelado no frio. Apavorava o mero pensamento e a aceitação da nova realidade, porque o mundo era muito duro para ser habitado sem palavras. Rabiscava aqui e acolá, sem continuidade,  quem sabe por falta de tempo, ou falta de jeito, talvez tivesse perdido a pena. Ao menos a leitura consolava. Sempre voraz. Aproveitava para ler nos espaços dos dias, nos espaços raros das horas dentro do dias, mas escrever mesmo, nada. Não fluía. As questões genéricas do mundo pareciam tão distantes. A política, por uns tempos, lhe parecia indiferente.Os raciocínios mais objetivos, mais concretos, não vingavam. Os garranchos paravam no papel, as frases não se completavam com algo palatável e o sentido derretia pelos cantos das páginas...

O paradoxo maior é que a poesia morrera no papel, durante muito tempo, mas apesar do  estranhamento e do inusitado da coisa, não se sentia exatamente infeliz. Havia uma outra alegria, talvez maior e mais forte, que soprava segredos ainda sem dizer seu nome. Talvez porque ele não soubesse, ainda naquela época, que os versos, as rimas e a busca da beleza tinham deixado ao menos por um tempo de ser pura tinta sobre fibra de celulose para encarnar-se em cabelos, risadas e felicidade , na figura de um pequeno sol que o abraçava todas as noites antes de dormir.





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"Minha casa", desenho de Lorenzo, aos 6, no paintbrush