A PONTE (Crônica de uma época triste)
(texto publicado no blog "O Aleph" em setembro de 2017, e tirado hoje "da gaveta" apenas pra lembrar um evento que tornou a ocorrer nesta data, e vem se tornando cada vez mais rotineiro aqui em Vitória. Tanto o evento de pessoas lá em cima da Terceira Ponte, segurando na tela e mirando o vazio, alguns pulam, outros não, quanto uma cambada de outras nas filas de carros congestionados gritando "Pula" ou querendo que o problema "termine logo" para que o trânsito continue)
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“Sabe a empatia? Pulou da ponte hoje” Enquanto policiais e bombeiros tentavam salvar uma vida (e conseguiram), foi formada uma espécie de minitribunal na ponte. (Artigo de Aglisson Lopes, publicado na página do Jornal “A Gazeta On-line”, em 25-07-17).
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As estatísticas reais, poucos conhecem. A desculpa é que os dados são sigilosos para “nos poupar” da dura realidade, ou evitar algum tipo de propaganda reversa por vias duvidosas como incentivo ao suicídio ou coisa que o valha. Desconfio sempre dessas argumentações. Primeiramente, porque a história de se querer “poupar” uma sociedade dos dados realistas que são em última instância resultado de sua própria forma histórica de se colocar no mundo já não me cheira bem. Acresça-se que a idéia de que suicídio tem essa cadeia imaginativa contaminadora e exponencialmente propagadora como se fosse liquidação de inverno numa loja famosa em shopping da capital, soa duplamente falsa. O fato é que essas informações, querendo ou não, acabam vazando e todos ficamos sabendo que há alguns dias, no início do mês, ou há poucas horas atrás, aquele conhecido, um colega de infância, um ex-colega de trabalho antigo, um certo vizinho retraído ou mesmo aquele cara que eventualmente estava nas colunas sociais foi a última vítima do famoso salto da ponte. Ora é um jornal que investiga mais fundo, ora é um conhecido que passava sobre a ponte na hora do fato, ou mesmo um profissional dos bombeiros ou militar, que, cansado da tarefa pesada e ingrata de tentar solucionar isoladamente questões de natureza insolucionável do ponto de vista coletivo, desabafa com algum ente próximo.
A verdadeira questão é que, mesmo sabendo que algumas causas reputadas ao ato de desespero final possam de forma bastante comum ter co-relação com tantas outras que vemos no dia-a-dia, tais como o acometimento por doença incurável, dívidas, depressão (outra causa multifatorial), perda de um amor (alguém ainda, nos dias de hoje?) ou alguma outra tragédia, o que parece mais determinante não é a causa em si, genérica, mas a forma individual, única e trágica como aquela dada situação vai abordar o sujeito que está nessa situação, na beirada de uma ponte, prestes a se atirar. As “causas gerais” atribuídas como justificativas mais comuns parecem muito mais um tipo de calmante coletivo para que tal ou qual fato possa ser digerido e assimilado, explanado para o grupo que assiste a um ato de puro abandono da vida de forma tão direta, porque afinal, a sociedade, nós, que estamos “do lado de cá”, precisamos ler em algum jornal ou ouvir de passagem e ao mesmo tempo já portando no espírito uma espécie de justificativa existencial para aquilo, para podermos dormir tranquilos. Argumentos análogos aos que já conhecemos de antigamente, do tipo: “Ah, foi assassinado no beco, mas também, olha o estilo do sujeito. E ainda mais, passando por ali, aquela hora, não devia ser boa coisa”. Ou seja, o cidadão por caber neste ou naquele estereótipo, já mereceu sua bala na nuca. Bora dormir. Ou então: “Ah, foi estuprada, mas também, usando aquela sainha provocativa e aquele cabelão”. Tem ainda: “Ah, foi assassinado mas todo mundo sabia que era maconheiro”, e dai por diante. Basta ler as páginas policiais do jornal pra saber como há coisas muito piores. E não é diferente com as notícias paralelas (sim, porque poucas são oficiais, devido ao tal “sigilo” protetor mencionado ali em cima), todos perguntam: mas quem era? Tava endividado? Era drogado? E a conversa do instante ou do dia segue animada na justificativa da causa reputada imediata que possa mais tarde permitir novamente o acionamento do botão do sono, quando chegar a hora.
A história que ensejou esta crônica, na verdade, recentemente ocorrida sobre a mesma Terceira Ponte, o famoso cartão postal de Vitória, não tem a ver com mais um salto ‘bem sucedido’ para os confins do universo sobre o vazio. Tem a ver com o contrário, um salvamento bem aplicado por um novo grupo de trabalho dos bombeiros que merece nosso apoio e total compreensão. O fato foi narrado com muita perspicácia no belo artigo publicado no dia 25 de julho, pela página na internet do “Jornal A Gazeta”, de autoria do jornalista Aglisson Lopes, que utilizei como epígrafe para esta crônica. No citado artigo, ele questiona com muita sensibilidade e propriedade o fato de que, embora simultaneamente tenha sido salva uma preciosa vida, como a minha ou como a sua, toda empatia pulou da ponte naquele momento, diante das atitudes agressivas e injustificáveis de parte dos presentes ao local. Dentre os comportamentos citados na matéria, alguns mesmo trajando camisas com dizeres de conotação religiosa, outros vestidos a rigor e dirigindo carros caros num país onde tudo é caro, a vida de uma outra pessoa era rifada aos berros por um bando de cidadãos completamente insensíveis e focados apenas em suas próprias vidas supostamente maiores e melhores do que o potencial suicida. Havia brados de ordem política, daqueles a que estamos acostumados (e tantas vezes enojados devido à sua prepotência e desumanidade) a ver pelas redes sociais, havia brados de ordem racista e sem a menor consideração básica sobre a mínima noção de direitos humanos e respeito à dignidade, esses valores hoje aparentemente tão ultrapassados mas inseridos perpetuamente dentro da alma de nossa vilipendiada Constituição Federal.
Não se pretende, neste singelo texto, abordar em profundidade quaisquer aspectos ou estatísticas as questões reais, concretas e determinantes que levam qualquer um indivíduo a optar por maneira ao mesmo tempo tão drástica, e em se tratando do signo que representa a Terceira Ponte para a capital do estado, uma maneira ao mesmo tempo apoteótica, pública, escancarada e sem a menor chance de retorno, de se livrar deste mundo. Algumas discussões já detectadas na mídia sobre o assunto, superficiais em sua maioria, dedicam-se a reafirmar planos de reengenharia para subir telas protetoras, ou algo do gênero, que impediriam supostamente as pessoas se lançarem lá de cima, quando não dão solução pior ao problema. Em momento algum, o problema principal, o único que realmente importa, para além das vaidades coletivas, o de não querermos assumir que a vida em nossa realidade social pode não estar sendo nada boa para muitos, em diversos aspectos, esse problema continuará sempre sendo relegado.
Por isso a importância do tato e da sensibilidade do outro olhar que resgata não apenas o momento no tempo onde uma vida qualquer foi salva, e essa será sempre uma vida extremamente preciosa que justifica todos os esforços em sua preservação, mas um olhar também que não se cala diante da miséria humana. De um lado, um tipo de miséria sentida com muito impacto sobre a vida de alguém em desespero que não quer mais procurar outras saídas. De outro, a miséria talvez muito maior , de boa parte dos que ficamos por aqui, nós que falamos tantas vezes e com tanta empolgação e razão argumentativa em mudar o país, criar um novo Brasil, que esse sim, estará livre dos seu passado nefasto qualquer que seja ele, e pronto para o futuro, nós que continuamos em nossas vidas cotidianas sem qualquer empatia ou o mínimo de respeito pelo outro, por suas diferenças, sem reconhecer seu espaço, suas dores e suas vivências, sem atribuir-lhe ou dedicar-lhe o mínimo de atenção, tempo ou energia que, caso fossem bem aplicados, talvez fizesse toda a diferença.