"Uma Temporada no Inferno" (Literatura e vida em Rimbaud)

"25 de julho, Dia do Escritor"

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"Detesto todas as profissões. Mestres e oficiais, todos campônios, ignaros. A mão que empunha a pena equivale à que guia o arado. - Que século manual! - Jamais me servirei das mãos! Depois, a domesticidade leva demasiado longe. A honradez da mendicidade exaspera-me. Os criminosos repugnam-me como castrados: quanto a mim, estou intacto, e pouco se me dá..."
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(Rimbaud)




Por que se escreve?
Para quem se escreve?
Sobre o que se escreve ?


Destoando intencionalmente da provocativa chamada ao  engajamento proposto por Sartre, entendo que e
screver às vezes é nada mais do que procurar nosso próprio espelho, não apenas o reflexo luminoso do mundo exterior, mas aquele que possa refletir em profundidade o que realmente somos.  O impulso de pegar uma caneta, um lápis, um teclado ou um giz e sair rabiscando raivas, desejos, frustrações, impressões, histórias inventadas ou acontecidas, pode surgir pelos mais variados motivos, mas independentemente da proposta de criação, lúdica, trágica, existencial, estamos sempre tentando nos reconhecer através do que escrevemos.

Talvez por uma necessidade primordial e inconsciente de tentar ser lembrado, aquela noção de não passar pela vida incógnito, ou quem sabe, de poder perpetuar-se no tempo através das idéias?? A busca, ainda que vã, em legar alguma coisa não perecível, algo além de si próprio? Ou até o simples preenchimento do tempo ocioso com este passatempo lúdico, de forma despretensiosa.

Se escrever  envolve criação e arte, busca-se eventualmente um "algo a mais" , aquilo que possa transcender o próprio escritor, aquela busca ancestral de deixar para a futura humanidade outra lembrança que não sejam filhos ou árvores.

Escreve-se por desabafos terapêuticos, narcisistas; viagens de autoconhecimento (que também podem ser terapêuticas e narcisistas),necessidade de estabelecer algum contato produtivo com "o outro", saber que existe alguém outside the wall, outras ilhas bem-aventuradas que flutuam pelo planeta, enfim, tantas vezes repetidas as três perguntas acima, provavelmente colheríamos trezentas respostas a cada nova oportunidade.

Mas a vida não é mais vida sem as letras? Em que momento os escritos podem ser um obstáculo para a realização do poder do devir? Vivenciar um mundo perfeito em sonhos no papel não se tornariam, em algum momento, a sabotagem maior das possibilidades do viver, uma vez que cria um mundo paralelo, que se auto-sustenta, enquanto se alimenta de Quimeras?

Rimbaud pensaria assim, quando abandonou essa vida de rabiscador de palavras?

Um mero abandono, sem aviso, sem qualquer sinal.... Um simples adeus desse grande poeta.

A precocidade do seu gênio e toda a paleta de cores de sua imaginação privilegiada não foram suficientes para fazê-lo prosseguir com a escrita, a partir de um certo momento de sua efêmera e intensa vida, tendo ele , num átimo, abandonado qualquer conceito de legado ou de obra, para dedicar-se a outras aventuras, como um ser humano comum .

Tédio? Ceticismo? Impetuosidade de um espírito andarilho e inquieto, que talvez tenha percebido que a tão falada vida real, que supostamente corre lá fora, pode ser maior e mais palpável , mais intensa e emocionante do que meros traços no papel?

Por outro lado, ele poderia, em tão tenra idade, ter sofrido um improvável esgotamento do poder criativo, uma crise de incapacidade de perpetuar seu talento a cada lance, a cada novo trabalho, de forma cotidiana? O que é o dia -a- dia de um artista genial e criador? Alguém pode ser fábrica de obras primas impunemente?

O fato é que ainda persiste o enigma dessa selvagem criatura, e independentemente das respostas que ele próprio talvez pudesse dar, a sua simples saída de cena, assim sem maiores explicações, tomada como paradigma universal, levanta muitas outras questões, colocando-nos frente a um dilema bastante conhecido para quem gosta de ruminar , ou por quem quer que tenha frequentado ou habitado, ainda que temporariamente, o famigerado mundo da criação artística, em uma de suas vertentes estéticas.

Viver e exercer a atividade artistica como finalidade e motivação para se permanecer vivo, estariam, assim, de forma tão intrinsecamente ligados que não comportariam uma análise crítica de qualquer natureza, mas sim uma atitude? Uma escolha, no sentido Heideggeriano, como ato legitimador final da existência humana autêntica, algo que define o ser-no-mundo?

Nessas pairagens especulativas, não interessam aqui respostas fabricadas, ou somente o frio respaldo das biografias conhecidas, mas apreender, ou num sentido menos pretensioso, traçar possibilidades, a partir da história de vida dessa alma incomum , suas atitudes e temperamento intempestivo, suas opções e seu modo de viver, intencional ou aleatoriamente contrário aos costumes da época, seu volúvel encantamento simbolista pela ebulição do mundo humano, em todas as suas formas (o que implica dizer ao mesmoo tempo em suas formas menos sublimes, ao contrário do que pretendia a poesia clássica que o antecedeu), características pessoais que afinal o interlaçaram definitivamente com seu trabalho de uma forma muito original, criando um novo tipo de autor.

A nova poesia, surgida entre o final do século XIX e início do XX, encarnada pelos assim chamados "decadentes" Mallarmé, Baudelaire, Verlaine e principalmente por Rimbaud, pré-simbolistas e simbolistas que deram um corte no classicismo parnasiano e seus ideais ao partir para o cotidiano, a "maldição" da condição humana e a febre das ruas como fonte de inspiração e consolidarem a fantástica " invenção" da prosa poética, quebraram a espinha dorsal, a noção de ritmo e fluência, as regras fechadas do encadeamento de sons, enfim, o corpo da poesia tradicional predominante no ocidente desde os primeiros versos cantados sob a lira de Orfeu, e revitalizados com muita potência pelo movimento parnasiano. De uma forma lúdica e descompromissada, estimulada ainda por muito haxixe e absinto, o simbolismo mudou drasticamente o conceito de poeta "abstrato", este ser cinza e ausente, aéreo, alguém nativo de um universo platônico germinado no mundo das idéias, para uma nova figura colorida, musical, engajada ( num sentido apolítico), em viver sua própria vida mundana, calcada no mundo industrial, com raízes fortemente fixadas no concreto: o autor como ator e diretor da sua própria existência sem paradeiro. Associada, essa idéia, ao contraditório vaguear do pensamento colorido e distante dos textos, dançando com as palavras sobre a realidade, o abandono aos sentidos, uma semi-perda da consciência dentro do próprio processo criador, deixado, aqui, à própria sorte. Isso refletia , diretamente, a forma como esses poetas levavam a vida.

Assim como na Filosofia, onde as falas angustiantes de Kierkegaard e o brilho eloquente de Nietzsche colocavam em evidência um novo tipo de homem, capaz de constituir conhecimento válido usando sua própria existência como substrato,e sepultando, assim, Hegel e os construtores de teias definitivamente em suas cavernas, na nova literatura que entrava em cena no mesmo contexto histórico, e em especial, depois de Rimbaud, a vida do escritor não pode (ou não deve) mais andar longe de seus textos, mas refletir de forma integral aquilo que ele efetivamente experiencia.

Entoando esse mantra, que influenciaria várias gerações futuras, de Henry Miller a Allen Ginsberg, fazendo parada em toda a geração "beatnik" ( para fazer aqui uma comparação contemporânea e coerente com o "enfant terrible"), essa criança radiante surgiu assim, de repente, como surge o sol, pelas manhãs da França em uma época efervescente , e antes dos vinte anos já havia escrito tudo o que marcaria definivamente a poesia simbolista, em especial, e toda a poesia contemporânea que surgiria depois, não sendo demais dizer que nada que existe no universo literário hoje, consegue estar totalmente livre de suas cores.

E, para suprema contradição, ou quem sabe, afirmação de uma maneira "Rimbaudiana" de viver, aos vinte e dois largou tudo e partiu para o mundo sem tostão. Primeiramente , de forma inusitada, atravessando grande parte da Europa a pé; depois, alistando-se em exércitos estrangeiros, viajando o mundo em marinhas mercantes, embarcações de todo tipo, sofrendo privações, curtindo prazeres inexistentes nos livros de história, saindo e chegando de todos os mais exóticos lugares, e praticando comércio desde a Indonésia até o norte da África, traficando armas, escravos, usando e abusando dos eternos absinto e haxixe, assim como seus pares da escola simbolista, mas não se tem notícia de que jamais tenha publicado qualquer trabalho nessa fase.

O terror que muitos percebem nessa atitude inglória , mas não suportam sequer mencionar, é a mortal questão: A arte (estou usando a literatura, aqui, como ponto de partida para uma universalização do tema) não pode ser comunicada, narrada, não pode ser verdadeiramente experienciada por alguém exterior ao famoso duo criatura (objeto) versus criador (sujeito), mas somente pode ser apreendida em sua plenitude se for vivida? A arte possuiria um mundo "em-si" velado, familiar somente aos olhos do próprio artista, e dessa forma Rimbaud teria chegado ao ponto de sentir a experiência estética como inenarrável???

Isso, em se partindo do pressuposto de que exista de fato essa relação dual e que realmente o sujeito seja o criador e não a criatura, fenomenologia que, às avessas, me pareceria mais adequada para compreender o fazer artístico. Enfim, em se aceitando esses pressupostos, não é preciso lembrar, por óbvio, a sentença de morte proferida sobre tudo o que se produziu nesta Terra a título de manifestação artística, desde nossos primeiros rabiscos nas cavernas.

Ou seja, nessa aterradora hipótese, não existiria a arte enquanto tal, como atividade humana primordial ,dotada de um fazer específico, técnicas, histórias, metáforas aprendidas, e finalmente atada às mãos do seu suposto condutor, esse ser supremo denominado "o artista", nem mesmo existiria alguém nesse mundo, uma única alma capaz de apreender qualquer significado válido de uma obra, não passando, as interpretações, de mera ociosidade? O que haveria, de fato, supostamente estaria consubstanciado na rotina industrial de uma mecanicidade qualquer, pessoas dotadas de uma certa desonestidade nem sempre consciente, que reproduziriam com mãos hábeis pequenas artimanhas de entretenimento ou de utilidade , na esperança de colherem todo tipo de frutos, tão concretos como o dinheiro ou abstratos como elogios, sustentando seus maxi egos em meio a uma total desreferenciação da vida...

O desesperador da atitude de Rimbaud está no pouco caso e na maneira completamente informal como tudo se dá, nessa brusca ruptura e na ausência de uma resposta que, ao contrário do que nós, amargurados, pretendemos, talvez ele sequer soubesse rascunhar.

Uma leitura possível é que , como artista, envolvido em sua própria vida de maneira intensa, habitualmente desregrada, da forma como ele considerava o que seria uma vida dedicada às artes, dando testemunhos constantes da visão muito especial que esse modo de viver lhe permitia, o poeta não tinha qualquer consciência desse processo. Sua existência , como uma chama que se autoconsome, abnegando os princípios que , ao tempo que o tornaram famoso, também lhe forneceram os elementos necessários para construir as fantásticas e coloridas visões do mundo, visões estas que nunca se apagarão, apontou-lhe que a poesia, a arte em geral, só fariam sentido se ele tomasse parte nesse projeto, de modo visceral. Deveria ele absorver somente para si seus efeitos, suas verdades intrínsecas com mais uma dose de absinto, e curtir esse momento mágico com todos os seus sentidos hiperativados, mas sob o preço de largar de vez a tarefa de tentar comunicar a experiência, simplesmente pelo fato de considerá-la falsa ,enquanto possibilidade, para alguém que não fizesse parte da relação. A vida, intuitivamente escolhida como manifestação imanente da própria arte, excluiria, para o artista, sua possibilidade de comunicação, levando-o, simultaneamente, à desistência do árduo processo de busca e construção que define o ato de se expressar?

Penso que Rimbaud abandonou a escrita pelo simples fato de perceber que não estava sendo verdadeiro, quando , por um lado, sentia as pulsões avassaladoras que a própria vida lhe servia diariamente, permitindo-lhe que sorvesse continuamente esses licores,que o mantinham em um permanente estado de êxtase , mas por outro, fazendo-o ver que havia um preço a pagar por essa fruição integral: a percepção de que era necessário abandonar o caminho pisado, deixando de lado o narcisismo característico da raça de escritores, ciente de que a sua experiência até então não era real, e suas metáforas, por mais originais e brilhantes que pudessem parecer aos olhos de todos, não eram nada perto do que ele absorvia diretamente da fonte, a cada gole. Diante do grande impasse e da grande consciência da situação, preferiu então, viver a própria vida como saga, como poesia, e não mais narrá-la, sob qualquer forma, por considerar os discursos sobre a vida a tarefa de um ilusionista.

Em contraponto a sua obra e vida, esta é uma narrativa de uma possível história. É claro que Rimbaud, aqui, pode ser nada mais que uma mera fantasia, personagem de uma nova egotrip. Entretanto, se há sentido na viagem, sinto que estava equivocado o artista. A vida não pode ser arte. Vivê-la intensamente é possível, mas isso não passa de mera fruição, intensificação do prazer sensorial, com ou sem haxixe, absinto ou aqueles outros conhecidos passaportes. Velas se queimando enquanto têm pavio. O sentimento artístico, embora possa estar adormecido e eventualmente possa até mesmo ser trazido à tona por alguns estímulos artificiais, nada tem a ver com isso, porque se define na tentativa de expressão, sendo a comunicabilidade seu pressuposto maior. Tudo que há , nesse universo, é a busca infinita de se expressar, desde a grandeza do ínfimo. Não importa a busca de um mundo "em-si", uma absolutização.....A arte nasce de uma apropriação do mundo de uma determinada forma, não da verdade. Muitas vezes nasce de uma não vivência, como imaginário e sonho do possível. Nasce da mentira como uma semi-verdade, menos dolorosa. Surge da ilusão que cria imagens, movimento, sons e cores, antes inexistentes, como forma de embelezar o mundo. Em suma, a arte nasce de um erro, intencional ou não, de percepção do mundo, uma torção da própria vida, e representa, em essência, a arte de lidar com a aparência; a defesa, a estratégia final da vida para que continuemos a amá-la desesperadamente.... ou se vive a vida com intensidade absoluta, pura fruição e abandono, ou cria-se , através da arte, uma alternativa que pode até estar relacionada àquela, mas com ela não se confunde.

Benditas sejam, portanto, a arte e suas mentiras, suas ilusões que tornam a vida humana possível para além da mera hipótese da sobrevivência!!!...

Ilusionistas , pois, somos todos nós escrevinhadores, que no fundo nunca vivemos a vida integralmente como realidade poética e simultaneamente trágica, ao modo de Rimbaud (pois nos recusamos a navegar sobre a morte e a fruição como fundamentos), mas criamos beleza onde não há, vemos lógica e propósito onde nunca houve, inventamos possibilidades para tornar o frio, o feio, o inexorável, a dor, a tragédia em algo palatável e humano, chamamos isso de metáforas e recriamos o mundo como arte, sempre do modo como queríamos que ele realmente fosse. Por mais "realistas" que sejam nossos versos e nossa prosa, somos sempre uma opinião sobre algo, uma visão, e por que não, uma invenção?

E é claro, para que toda essa ilusão funcione , sempre é preciso alguém observando...





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Texto original publicado em 08-09-2013 em "O Aleph"