De olhos e sombras


Choras,
trancada neste quarto
há horas
borrando a maquiagem
amassando teu vestido

Choras,
enclausurada neste falso abrigo
e parte do mundo também
chora contigo
mesmo como tantas
as outras vezes
sem bem saber a razão

Teu choro é orgânico e convence
e nele está inscrito algum tipo
de beleza inexorável
em um signo atávico
que persiste através das eras
mesmo à sombra desses 
olhos líquidos
escorrendo pelo rosto abaixo

Porque se o mundo soubesse
que neste exato instante
provavelmente já nem mais te lembrarias
do porquê dessas lágrimas
desacreditaria de tua versão
Mas confie que comigo
teu segredo estará sempre guardado

Choras,
nem tanto por que isso seja necessário
--visto que és assim muito mais
uma criatura de berros, unhas e gestos
predispostos pela luz da lua --
mas apenas porque é da tua natureza
essa tal espécie estranha de certeza
animal que o tempo inteiro quer transformar
instintos em boas razões
Esse dom que, mais do que as outras criaturas
desenvolveste com afinco por tantas eras de amarguras
que os homens  travaram injustamente contra ti

Choras,
e tuas lágrimas agora, (eu sei) 
são assim meio fingidinhas
apenas de cenas de contrariedade infantil
por conta desta ou outra coisa pueril
que sequer mereceriam maiores prantos

Teu choro é sobretudo um pouco
da herdada lembrança inconsciente de outras eras
é a marca do chicote não aparente nas costas lisas
mas também choro de criança mimada
que embirra com uma coisa qualquer
e fica ali, dando voltas sobre uma mágoa
que é muito mais teatro do que real
até beirar o puro esquecimento

Choras, 
borrando a maquiagem
amassando teu vestido
trancada no quarto há horas

E no fundo, todo choro
é sempre coisa meio sem sentido
que a rigor, não resolve nada
mas redistribui nossa energia
sobre a vida, reprocessa o pulso
sobre um corpo tremido
e nos toma, no final, apenas porque
somos humanos
e também choramos quando nos sentimos perdidos

(diferentes até nisso do resto
da natureza que não expressa dor
se não for por um motivo maior)

Choras
e chorar o que é senão
nossa única maneira
de reclamar com os deuses da solidão inexpugnável
de sermos gente, meio que obrigatoriamente
uma vez que não nos restou outra saída
a não ser partirmos ao mundo como os colonizadores
de todos os espaços abertos ou dos que abrimos  à força
É resmungar acerca de nossa existência frágil
diante do universo impassível a qualquer subjetividade

E eu sei,
como poucos
o quanto de teatro e infantilidade
tem nisso tudo
já por tantas vezes experimentado
nessas coisas da vida

Mas mesmo assim
(e como sei que hoje não há nada
real e maior te angustiando ou
tramando contra ti algo ruim)
eu fico aqui, do lado de fora,
e ouço seus soluços exagerados
atrás desta fina porta revestida
de tinta branca ainda fresca,
ora tentando me lembrar o gatilho
ora de fato me arrependendo
por tudo que eu certamente
não disse, ou se disse,
foi sem querer
  
Choras, 
e no cerne de um planeta
onde dia e noite surgem tantas razões
para choros e gritos e cabelos
arrancados e vísceras expostas
de arrastão em poças de sangue e lama
sem que para isso fosse necessário
qualquer motivo

Fico feliz quando ouço teu choro fingido
e no fundo
ainda acho a coisa mais linda
deste mundo
ver você em estratégias
(ainda que alquebradas)
dessa exótica linguagem

Porque sabes como ninguém
que isso te dará uma nova chance
uma vantagem comparativa
um crédito para usar mais tarde
quando for abraçada
e me perdoar
depois de eu apresentar
as minhas mais sinceras desculpas


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extraído do livro de poemas "Os dias", (2010-2015)