Décimo Round
Para Henry Miller
Jab, jab de direita., respira, respira. esquerda jab,
direita no cruzado. não entrou. desvia, encaixa lateral no rim, encaixa nas
mãos em concha um golpe surdo. um dois, desvia cruzado, salva-se por ora.
afasta-se depois do curto clinch. tenta novo direto de esquerda. um dois,
respira rápido, solta o ar no golpe. um, dois, inspira no braço voltando ao
corpo. giro ligeiro do corpo com gancho de esquerda sobre o fígado. entrou. o
adversário sente e faz uma careta de dor. ele continua pressionando no ataque.
sabe que a potência é inimiga da resistência. são forças contrárias. ou define
logo, na explosão com risco animal, ou afasta e resiste, levando pro último
round. ginga, dança, ganha no preparo. sabia que a segunda hipótese, ao menos
para hoje, não tinha a menor chance. investiu tudo na massa e explosão para
esta luta, sem foco nenhum na duração. esperava matar tudo até o quarto
assalto, e de preferência no nocaute para não ter que aguentar a tortura dos
pontos. uma luta feia, vencida por nocaute no quarto assalto, valia muito mais
do que a aula de estética pugilística na loteria dos pontos, em doze. que
importa a luta feia? aua maior referência no esporte, Ali, também teve seus
momentos de falastrão e enrolador, e soube ganhar como ninguém algumas lutas no
psicológico antes mesmo de entrar no ringue. mas ele não era assim. não gostava
da fala. preferia o silêncio. olho no olho e a força das palavras não ditas.
Tenta novo upper de direita, o braço voa forte mas não entra, perdendo-se num longo espaço e um valioso esforço desperdiçado. queimar energia sem o corpo do adversário para segurar cansa mais do que o golpe resvalando no vazio. tenta outro de esquerda, rápido mas fraco, e não entra. o adversário é ligeiro. não é muito forte. não é um pegador, mas não é fácil acertá-lo. rápido, esquivo. no calor, ele continua gastando energia demais e depois tenta recuperar usando bem o braço esquerdo como apoio contra o corpo do adversário enquanto respira afogueado. encosta nas cordas sem chegar no canto – o medo de não sair de lá-- respira mais fundo, morde com força a proteção da boca, que ameaça sair. empurra, tenta clinch sem sucesso. depois tenta conduzi-lo para o canto à base de golpes seguidos de um dois, jab e cruzado sem permitir novo clinch. o oponente reage, tem braços mais curtos mas tem mais peso. golpeia forte. tem bom condicionamento e encaixa bem a saraivada de golpes. arma a guarda, absorve os socos e sua estratégia óbvia já mostrou que ele quer vê-lo se cansar primeiro. ele vem de lá, ainda forte já no final do terceiro round, tenta duas vezes o cruzado mas erra. sua ousadia o desequilibra por um segundo e o expõe. leva na sequência um bom direto, mas sem potência suficiente para jogá-lo ao chão. soa o gongo. salvo por milagre.
No corner, gelo no rosto, lábios cortados, supercílios ainda preservados, parafina, ainda não sangrou o nariz, seu ponto fraco. revê sua estratégia conforme orientação do treinador e se expõe demais no novo round, mas os golpes passam zunindo em sua maioria, fortes e rápidos a dois centímetros do rosto, na recuada de absurda fração de segundo antes do baque. salvo por pura intuição, como nos velhos tempos de menino na brincadeira de gato-reflexo. soa novamente o gongo para a água gelada e logo se inicia o quarto assalto. brincou de pique no anterior e agora resolveu partir pra cima. não ouve mais nada que o técnico diz, sua cabeça está muito distante. ela novamente agia de forma suspeita, ele sabia que isso não cheirava bem. tinha alguma coisa aí. da outra vez, mesmo diante das negativas, foi o que foi. ele sentia que aquilo ali não teria um bom final, de novo. ela deslizava em suas recaídas, ele se queimava, ficava doído por dentro, mas no final terminava perdoando. esse ciclo vicioso já durava quase três anos, e ele mesmo se pergunta como é que fora inadvertidamente parar ali. ele se dispersa um pouco no ringue, toma sequência de jabs logo no início do novo round e um gancho quase na linha da cintura. caralho! como doem esses golpes na linha do abdômen! pensava nela, é claro. deixava que a dor resvalasse para a simbologia dos sentimentos afetivos. cada porrada, uma desfeita. um dente quebrado um novo amante, mais brigas. o foco da luta dá uma anestesiada, o barulho do público, antes ensurdecedor há cinco minutos, agora parece longe, vindo em ondas lentas e falhas. levanta os braços mecanicamente, faz a defesa, não baixa a guarda nem por um instante, mas sente a força do oponente vencer uma ou outra barreira. um deles, um cruzado imprevisto passa pela defesa falha e atinge em cheio seu queixo, jogando-o no chão pela primeira vez. contagem andando rápida em cinco, quatro, levanta, respira fundo, olha pra cima, meio tonto, o teto tomado por bandeiras e propagandas, e tenta se manter lúcido. tudo roda um pouco, mas ele já caíra outras vezes, sabia o segredo, precisava deixar de lado a imagem dela, limpar a sua mente ao menos por uns minutos como naquela bela filosofia oriental que sempre lhe tentaram ensinar sem muito sucesso, e entrar de vez nessa luta antes que fosse muito tarde. precisava retomar dali mesmo, afinal não era isso a vida? começar do nada, recomeçar de onde parou.
A persistência do descontínuo contra qualquer fé, qualquer otimismo. a vida. a única coisa que enxergava agora, no meio do quarto round, era mesmo o rosto dela. aquele batom vermelho, o sorriso matador com o canto de olho puxado, relatando outras semióticas, e a memória de situações passadas vindo à tona. súbito, aquele rosto infantil e reluzente de tanta inocência se tornava mais malicioso, ela flertava com alguém? a maquiagem pesava, ela fugia na noite? os olhos margeados negros, cara de puta? o batom agora mais forte, borrado com brilho, pagou o boquete em alguém? e o decote generoso em sua jaqueta de couro preto e tachinhas. não era a mesma, ou agora ela era mesma? mas era. uma coisa e outra, ao mesmo tempo. isso é que o endoidava. a inocência do quadro anterior dava lugar à febre do mundo em seus gestos, aquele corpo que era dele mas era de todos. como não doer? upper resvalando bruto no queixo, corte no supercílio direito, deixava-se levar umas porradas e elas doíam com certo prazer no final. ela vinha de novo, em cheiros e imagens, lembrava-se do seu jeito irresistível de pronunciar os acentos de final de frase, a voz se tornava mais rouca e o rosto, antes calmo e contemplativo agora se contorcia um pouco de prazer. alta noite, ele sem aviso de volta a casa, depois de viagem cancelada. ela estava novamente com outro. sabia. e mesmo que esse outro fosse qualquer um, apenas um bosta qualquer, essas criaturas sem nome catadas na próxima balada, no próximo bar onde súbito ela tivesse uma recaída, numa saída de taxi ou num saguão de aeroporto. podia ver o rosto dela, o prazer que recebia e sentia, sua capacidade de se doar ao primeiro macho que a interessasse, sem pudores, sem correntes e sem qualquer arrependimento. imaginava o corpo dos homens que estariam com ela, sabia dos seus gostos, do seu estilo, mas não conseguia ver seus rostos, apenas imaginava a felicidade passageira de cada um deles, aqueles pobres diabos, o esgar do orgasmo, o vazio do depois. os cigarros tragados em silêncio com os olhos no teto. junto a isso, via também o seu contrário, não mais no rosto dela, mas na lembrança da sua essência, memórias de um coração que jamais se doava a não ser a ele próprio. ele vivia esse paradoxo, há quase três anos, de possuir integralmente um coração tão arredio que não se doaria a mais ninguém, e perder semanalmente, diariamente, mensalmente, um corpo que não dominava para o resto do mundo. soa o gongo .
Tenta novo upper de direita, o braço voa forte mas não entra, perdendo-se num longo espaço e um valioso esforço desperdiçado. queimar energia sem o corpo do adversário para segurar cansa mais do que o golpe resvalando no vazio. tenta outro de esquerda, rápido mas fraco, e não entra. o adversário é ligeiro. não é muito forte. não é um pegador, mas não é fácil acertá-lo. rápido, esquivo. no calor, ele continua gastando energia demais e depois tenta recuperar usando bem o braço esquerdo como apoio contra o corpo do adversário enquanto respira afogueado. encosta nas cordas sem chegar no canto – o medo de não sair de lá-- respira mais fundo, morde com força a proteção da boca, que ameaça sair. empurra, tenta clinch sem sucesso. depois tenta conduzi-lo para o canto à base de golpes seguidos de um dois, jab e cruzado sem permitir novo clinch. o oponente reage, tem braços mais curtos mas tem mais peso. golpeia forte. tem bom condicionamento e encaixa bem a saraivada de golpes. arma a guarda, absorve os socos e sua estratégia óbvia já mostrou que ele quer vê-lo se cansar primeiro. ele vem de lá, ainda forte já no final do terceiro round, tenta duas vezes o cruzado mas erra. sua ousadia o desequilibra por um segundo e o expõe. leva na sequência um bom direto, mas sem potência suficiente para jogá-lo ao chão. soa o gongo. salvo por milagre.
No corner, gelo no rosto, lábios cortados, supercílios ainda preservados, parafina, ainda não sangrou o nariz, seu ponto fraco. revê sua estratégia conforme orientação do treinador e se expõe demais no novo round, mas os golpes passam zunindo em sua maioria, fortes e rápidos a dois centímetros do rosto, na recuada de absurda fração de segundo antes do baque. salvo por pura intuição, como nos velhos tempos de menino na brincadeira de gato-reflexo. soa novamente o gongo para a água gelada e logo se inicia o quarto assalto. brincou de pique no anterior e agora resolveu partir pra cima. não ouve mais nada que o técnico diz, sua cabeça está muito distante. ela novamente agia de forma suspeita, ele sabia que isso não cheirava bem. tinha alguma coisa aí. da outra vez, mesmo diante das negativas, foi o que foi. ele sentia que aquilo ali não teria um bom final, de novo. ela deslizava em suas recaídas, ele se queimava, ficava doído por dentro, mas no final terminava perdoando. esse ciclo vicioso já durava quase três anos, e ele mesmo se pergunta como é que fora inadvertidamente parar ali. ele se dispersa um pouco no ringue, toma sequência de jabs logo no início do novo round e um gancho quase na linha da cintura. caralho! como doem esses golpes na linha do abdômen! pensava nela, é claro. deixava que a dor resvalasse para a simbologia dos sentimentos afetivos. cada porrada, uma desfeita. um dente quebrado um novo amante, mais brigas. o foco da luta dá uma anestesiada, o barulho do público, antes ensurdecedor há cinco minutos, agora parece longe, vindo em ondas lentas e falhas. levanta os braços mecanicamente, faz a defesa, não baixa a guarda nem por um instante, mas sente a força do oponente vencer uma ou outra barreira. um deles, um cruzado imprevisto passa pela defesa falha e atinge em cheio seu queixo, jogando-o no chão pela primeira vez. contagem andando rápida em cinco, quatro, levanta, respira fundo, olha pra cima, meio tonto, o teto tomado por bandeiras e propagandas, e tenta se manter lúcido. tudo roda um pouco, mas ele já caíra outras vezes, sabia o segredo, precisava deixar de lado a imagem dela, limpar a sua mente ao menos por uns minutos como naquela bela filosofia oriental que sempre lhe tentaram ensinar sem muito sucesso, e entrar de vez nessa luta antes que fosse muito tarde. precisava retomar dali mesmo, afinal não era isso a vida? começar do nada, recomeçar de onde parou.
A persistência do descontínuo contra qualquer fé, qualquer otimismo. a vida. a única coisa que enxergava agora, no meio do quarto round, era mesmo o rosto dela. aquele batom vermelho, o sorriso matador com o canto de olho puxado, relatando outras semióticas, e a memória de situações passadas vindo à tona. súbito, aquele rosto infantil e reluzente de tanta inocência se tornava mais malicioso, ela flertava com alguém? a maquiagem pesava, ela fugia na noite? os olhos margeados negros, cara de puta? o batom agora mais forte, borrado com brilho, pagou o boquete em alguém? e o decote generoso em sua jaqueta de couro preto e tachinhas. não era a mesma, ou agora ela era mesma? mas era. uma coisa e outra, ao mesmo tempo. isso é que o endoidava. a inocência do quadro anterior dava lugar à febre do mundo em seus gestos, aquele corpo que era dele mas era de todos. como não doer? upper resvalando bruto no queixo, corte no supercílio direito, deixava-se levar umas porradas e elas doíam com certo prazer no final. ela vinha de novo, em cheiros e imagens, lembrava-se do seu jeito irresistível de pronunciar os acentos de final de frase, a voz se tornava mais rouca e o rosto, antes calmo e contemplativo agora se contorcia um pouco de prazer. alta noite, ele sem aviso de volta a casa, depois de viagem cancelada. ela estava novamente com outro. sabia. e mesmo que esse outro fosse qualquer um, apenas um bosta qualquer, essas criaturas sem nome catadas na próxima balada, no próximo bar onde súbito ela tivesse uma recaída, numa saída de taxi ou num saguão de aeroporto. podia ver o rosto dela, o prazer que recebia e sentia, sua capacidade de se doar ao primeiro macho que a interessasse, sem pudores, sem correntes e sem qualquer arrependimento. imaginava o corpo dos homens que estariam com ela, sabia dos seus gostos, do seu estilo, mas não conseguia ver seus rostos, apenas imaginava a felicidade passageira de cada um deles, aqueles pobres diabos, o esgar do orgasmo, o vazio do depois. os cigarros tragados em silêncio com os olhos no teto. junto a isso, via também o seu contrário, não mais no rosto dela, mas na lembrança da sua essência, memórias de um coração que jamais se doava a não ser a ele próprio. ele vivia esse paradoxo, há quase três anos, de possuir integralmente um coração tão arredio que não se doaria a mais ninguém, e perder semanalmente, diariamente, mensalmente, um corpo que não dominava para o resto do mundo. soa o gongo .
Vem o quinto, vem o sexto round, e sem se lembrar como, vem o nono, de uma luta
prevista para dez assaltos. também mandou o oponente à lona duas vezes, mas a
segunda, no oitavo round, foi ajudado por um escorregão besta, o cara apenas
tropeçou nos próprios pés. diferentemente da última luta, há três meses atrás,
onde a estratégia elaborada previa ele mesmo ter que cansar repetidamente seu
inimigo, fazendo-o se mexer e rodar no ringue de um lado para o outro, agora
ele é que estava com dificuldades de se desvencilhar da mesma estratégia
adotada pelo lutador à sua frente. o cara obviamente estudou seu estilo, sabia
da sua luta, conhecia os pontos fracos. ele
cansava-se , depois do quinto round, era visível, e repetidas vezes foi pelo
clinch, para poupar energia, mas isso ficou evidente demais para o árbitro, que
lhe aplicou a advertência, fazendo-o perder um ponto, pela segunda vez. a
contar pelos pontos, não levaria a melhor esta noite. apanhou muito e cometeu
muitas faltas técnicas. só um milagre pra mudar o rumo nos dois últimos
assaltos. se ao menos conseguisse se livrar da imagem dela nos braços de outro,
e em como isso o afligia. sentia vontade de apanhar quando se lembrava disso.
agora deixava escapar a guarda de propósito para levar um jab, um punch, encaixava, sentia a dor
balançar o corpo inteiro, sentia o fígado, inchado, querendo cuspir a bile
desses anos todos, e enquanto naufragava nesse sentimento de perdedor,
algo subitamente muda por dentro. a vontade de perda que o carregava há pouco transforma-se
de repente em um tipo de ódio àquela situação toda. não estava mais ali pra
aguentar aquele jogo masoquista com raízes tão plantadas no seu peito. pediu
água gelada na cabeça no penúltimo intervalo, fechou fundo os olhos, respirou
ritmado por um tempo, puxando todo o oxigênio para o sangue. sem ouvir mais
nada lá na plateia, sentiu as têmporas dilatarem com o novo influxo e cego para
tudo ao redor, quando se pôs de pé para o novo embate. o adversário à sua
frente, já seguro demais pela provável vitória por pontos, de repente se
transformava no último amante a tocar a pele de sua garota. ainda sentia nele a
figuração extremamente realista do cheiro do perfume dela, as marcas do batom
vermelho no pescoço, e os restos de cabelos que ela acabou de acariciar. sentindo
a ameaça iminente e tão real à sua posse, partiu para o embate com tamanha
fúria que o punch de direita no rim
esquerdo quase desabou o oponente, seguindo-se de um cruzado de direita. o
adversário, sentindo a ira assustou-se
e, num gesto de desespero colou-se equivocadamente nas cordas, quando foi empurrado pro corner, puxando ar com
dificuldade e quase cuspindo a proteção de borracha. o nariz quebrou-se no
direto e sangrava por uma das narinas. aquele rosto do do novo amante de sua
mulher respirava por apenas uma narina, e ao levantar o rosto para buscar mais
ar, expôs-se demais, baixando a guarda, levando sequência de um dois, um dois,
jabs e punchs , até cair de joelhos com um cruzado, sem levantar mais. a
contagem se abre até dez, sem resposta.
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Publ in "Reine sobre mim", contos, blog "Centauromaquias", set 2017 reg AVCTORIS, dez 2018