Prelúdio ao "Fausto', de Alexander Sokurov
I.
O pacto: a carne
a massa ainda não disforme
extensa
abandonada pela vida há apenas duas horas
sobre a plataforma de metal
[ou esse abandono
era talvez um tipo
de miopia ancestral
adquirida após séculos de doutrinação? ]
A morte: ela existe, afinal?
Restariam certos os rabinos
os sacerdotes mumificados
com suas sólidas verdades
em púlpitos de cadafalso
sobre o mundo que não se vê?
A morte, ela existe afinal?
ou se imiscui a vida
agora de outros trajes vestida
adepta -- em essência -- de uma
outra permanência
dissolvendo-se em novas formas
distorcendo as antigas normas
até que não se contenha mais a matéria
Bactérias, fungos e vírus, insetos
os afetos de solidez em pouco
serão gases, liquidos, poeira
como éramos antes
A contemplação
que enche os olhos
O nu que nos restabelece o humano
quando por todos os outros modos
ele já se perdeu há tantos anos
Silencioso,
desliza afiado o gume
sem espalhar mais sangue
A ansiedade da descoberta
em mãos adestradas adentrando a derme
camada por camada a pele do abdômen
limpa e raspada, aos poucos afastada
A fina distinção entre o fora e o dentro
jazendo sobre a tábua apenas
a densa carne sem qualquer movimento
Surgimos assim, sem aviso
à vista de poucos milímetros
da superfície
rasgada com cuidado
pela afiada lâmina
O bisturi preleciona a vida
enquanto secciona o músculo
silente e calmo sem alvoroço
Primeiro, a camada de gordura
depois, os nervos, a musculatura
desliza-se até chegar ao osso
Vasos se afastam à presença
do metal invasivo
Já sem nenhuma linfa
agora sem nenhum sangue
tubos e ramificações, finas
capilares
engrossando aos poucos
quanto mais se aproxima do centro
Abandonam-se os membros às suas
próprias dissensões
Memórias de quando
eram o mais puro movimento
Abandona-se os pelos porque
já não há mais vento
abandona-se os sumos
pois já não há razões
A busca, a ânsia: donde se
encontra a alma, afinal?
Procura-se, cava-se
estende-se , chanfra-se
a carne, recupera-se os órgãos
retirados um a um
com habilidosas mãos
Um por um colocados
na grande bacia ao lado
O fígado, meio cinza pelo álcool
Um pequeno coração sugerindo miséria
O rim esquerdo distendido, o direito compactado
Os pulmões já enegrecidos de tanto tabaco
Os testículos encolhidos, o pênis inerte
pendendo humilhado
Apenas um tubo exangue e ajuizado
Os intestinos, inchados de restos e vento
Seu fedor destituindo
O anjo pretensioso que até a há pouco nos orgulhava
A escalada final, na aguardada pineal
resgata-se, corta-se, segue ilesa a autópsia
Observa-se, embrenha-se
pelos mistérios do cérebro
em suas circunvoluções
que semelham um emaranhado de tripas
sólidas . Tripas pensantes (dizem)
mas não se encontra os traços de uma alma
a saciar o âmago do médico
Onde está?
O profundo liame preconizado pelos sábios
predito pelos profetas de tantas estirpes
Onde está, pergunta, aflito, depois
de tanta procura
Onde reside, no fundo de todo desengano
a única passagem a nos lembrar o anjo
a nos apontar o além-do-humano
A costura sutil entre a solidez e a evanescência
na abstração do corpo presente
na concretude de uma alma ausente
a aposta passional de toda ciência
Queda-se , exausto, depois de tamanha
exploração
Alguma coisa antes havia
que a tudo movimentava
e em torpor e graça seduzia
Nas mãos, a destreza dos livros
nos olhos, o vazio da decepção
Sobrevindo a impaciência
tão comum aos vivos
oriunda da desilusão:
o pacto!
II.
"Tudo isso te darei..."
[ecoando na memória]
Renegando o animal
abraçado ao fio das razões
Em busca de uma única beleza
rejeitando toda natureza
a absorver novamente a velha aposta
Refutando as explicações
cavando fundo para achar o lugar
onde as perguntas trouxessem respostas
e as verdades algo além de opiniões
Batendo mais de uma vez
com o rosto nas costas no mundo
e procurando mesmo cansado
quando o sentido, equivocado
fechava, uma por uma
todas as outras portas
Falhaste, em tua promessa
ó criatura de artimanhas e muitas caras!
em elucidar sobre as antigas dúvidas
em diminuir nossas escaras
Depois de tanto tempo ao amargo
da lógica, ao áspero do número
não encontrada a saída prometida
ainda depois de cavar tão fundo
Aonde está, que não se vê
pois não mora nas maneiras
não reside dentre os ossos
nem no espaço entre os órgãos
Qual é a ponte
onde está
a verdade certeira
a razão da crença
daquele que crê
Pois se não há carne
não posso tocar
se não há vento
não posso sentir
se não há cheiro
não posso sonhar
se não há gosto
não posso lamber
se não há pus
não posso sofrer
se não há sêmen
não posso gozar
se não há destino
não se tem aonde ir
Onde está,
triste criatura
a desonrar a própria palavra dada
como surrupiada de alguma escritura
Qual é a ponte
a razão da crença
daquele que crê?
Como falhaste em tua promessa
renego-te a ti também
sem consultar outras permissões
pois para valer qualquer pacto
é mister manter intacto
a nobreza das intenções
III.
Amargurado pela ruptura
das crenças
Naufragando em amargura
pelas ciências
abdiquei do mundo
para vir ter contigo
Repugnando motivos
para sentir-me vivo
novamente
E esquecendo-me da existência
de um mundo inquisitório
descobri assim no susto
Teu corpo- laboratório
sob meu corpo-semente
a atenção desperta
por esse algo-aqui que
manifesta-se de repente
A presença por bisturi
feito língua exploradora
Mãos curiosas
sobre as dobras em que eu
me prendi
[passageira, minha boca
dos desejos que trago em mim]
a língua deslizando solta
sobre a pele e os pelos mordidos
A venda sobre teus olhos
Amarras sobre teu corpo
à minha frente teu ventre estendido
Tua autópsia em vida, inicio
na vivissecção dos teus sentidos
Ao mergulho da língua
uma contração do músculo
um grito, um sussurro breve:
a imensidão
À negativa da consumação
ao adiar do fruir
transformar o ato
em total devoção
Ao amaciar das mãos em
teus cabelos o suspiro
a entrega silenciosa
de toda paz
Súbito da planta lisa dos pés
arranhandas com o áspero da língua
na expectativa dos bicos túrgidos destes seios
em gotículas na base dos finos pelos
(A magia da intumescência)
No plexo das coxas quentes em seu volume
o acre e o sal que se insinuam
doce, no colo, nuca ou na boca
ácido, na fenda entre as pernas e sob os braços
a língua se liquidifica em linguagem
incorporando tuas essências na viagem
as mãos apalpam e apertam
e se soltam novamente
como moldes a procurar
nos seios
a forma exata que as preenchessem de vida
O súbito tambor soando ao fundo,
o peito pressionado com leveza
O ouvido auscultando um outro mundo : ali estava ela, com certeza
em lugar nenhum afixada, permanente ou inerte
dentro e fora, e sobre e através, vinculada
àquela presença em sofreguidão, à vontade
às contrações e à volúpia ainda antes
do choque perpassar todo o corpo
A base da nuca, na junção com o pescoço,
a parte de trás dos joelhos, onde
se juntam os ossos
o topo liso da barriga
a musculatura firme das ancas
a mordida na bunda com vontade
o arrancar teus pelos sem permissão
e sem aviso
A cada estímulo
uma nova resposta
Um grito, um choro, um gesto
teu corpo por laboratório
meu ser como semente
minha presença por bisturi
abrindo teu ser para expor-lhe
as vísceras ao mundo
A cada passeio das mãos
sobre a pele, um anseio
uma súplica, uma vontade
extinguindo a razão de tamanhas buscas
a velha angústia que se perde
ao não forcejar outros insólitos pactos
Ela de fato
não era de se pegar, embora
a morada de suas pulsões abrisse
suas portas entre suores e pelos
e revestisse a si mesmo de desejo e de cheiros
como maneira de resistir
A resposta, sim havia: a coisa estava ali
e mesmo não tendo nome
e não fazendo morada
estava pulsante, cheia de si
Uma substância de constância leve
a dizer enfim os motivos da vida
e esteve todo esse tempo
possuindo este corpo inteiro
tão bem perto-aqui