Replicantes


                                                                                                                   

"Synthetic Human Birth"
Cena "A", original, cena "B", editada

(Jared Leto, Sylvia Hoeks e Sallie Hamsen,
em "Blade Runner 2049"  
-- Dir. Dennis Villeneuve -- Warner, EUA, 2017)       

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Replicado em orgânica tessitura

dobras
      planos
          ossos
               fissuras

albergado no invólucro seguro

mergulhado e nutrido na placenta sintética
em que  foi gerado por mãos ambiciosas
à imagem  de tudo que é humano

oriundo de um diferente parto
sofrendo, como um de nós
amando, sorrindo

mas

ainda vinculado à sina do replicante nascido inteiro e maduro na forma mas ainda sem qualquer memória de si cada ponto cada traço cada toque aperfeiçoado elaborado calculado programado para soar para encantar uma casca repleta de contagiante  beleza inteligência e força circundando o conteúdo tateante de uma criança que contudo aprende continuamente ao infinito enquanto encanta-se com o desenrolar da vida e em apenas algumas horas será mais um adulto sem qualquer certeza o mistério a pedra-de-toque o não se lembrar por ainda não ter vivido a necessidade inafastável de uma subjetividade a dissipar de vez a máquina o habitar como vontade apenas o imaginado como fonte de história na falta de uma memória mas ainda assim o viver intenso (talvez mais intenso agora) porque não sabe todas as respostas perdido de si não mais estará ao deixar de ocupar a lembrança do que não é --nem nunca foi -- a sua própria mas seguramente desenvolto em exercer a nova humanidade recém-adquirida melhor e com mais propriedade do que seu natural titular porque este não mais a conhece

ao replicante,
          por compaixão ou crueldade
                    cabe o desígnio do humano?



                                     se às suas mãos
                                                        o poder

aos seus olhos o provar
ao seu peito o saber
se apaixonaria pelo ir
ou amaria o ficar?


e se

   em vez de refutar o
                     suposto impossível
                     ele conseguisse criar
                                            para além de si
                                            reproduzir


devedor contumaz do que  não foi
demiurgo sedento do que não fez
ignaro contínuo de todo porvir
engendraria algo assim
repleto de tamanha fragilidade
(quem sabe)

e no auge da sua maior vanidade
disporia da vida ao belprazer
mesmo sem querer, mesmo sem saber
não por destino , mas  pelo poder
inalienável de se tornar um deus
sem passar obrigatoriamente
pelo estágio de ser gente

ao mais-que-humano
o destino de ser anjo
como vocação
ou morrer tentando

a essência do humano estaria ausente
dentro mesmo da natureza- homem
e a humanidade, como virtude e sobra
restaria àquilo que dela não se constitui
(paradoxo resistente)

alimentaria  então a vida que frui
ou reinventaria o que a destrói
um corte certeiro no ventre das coisas
impedindo ao futuro parir o presente
enquanto contempla a linfa amarga
tingindo de nãos todas as possibilidades

ou em vez disso
apenas as mãos deslizando
com volúpia, palmeando em silêncio
o segredo, libertando assim
em algum momento a si mesmo
quando a vida, poupada
em uma outra leitura
estende-se para além de qualquer horizonte

e no âmago desse derradeiro medo
(como sente medo toda divindade
quando descobre ser eterna)

acreditar

na confecção de uma outra natureza
como solução da primeira
mesmo com a morte à espreita
navegando sem qualquer dúvida
pela solidão de antigas trevas
possuindo à mão apenas um
candeeiro tênue
           uma vela
                de luz perene



                                      Se às suas mãos
                                                                  o toque

veria nascer nessa vontade ígnea de não se contentar mais com o vivido
e tornar-se voluntariamente a cada instante uma eterna ânsia de procura
a esponja de experiências cevando o sonho de tornar-se algo além
desses meros laboratórios de bonecos camuflados em toda parte

algo como a potência de uma força em fuga
um corpo com a essência de fagulhas
a desaconselhar humanidades

ao passo que convence
à massa e aos  olhos
das desvantagens
de qualquer sobriedade


                   nasceu, agora há pouco
                               mal abandonou o casulo
                                             e já quer saber tudo
                                                              tudo provar
                                                                     

nasceu agora há pouco
e já não quer ter  dono
já quer responder
ao que nós mesmos
não conseguimos descobrir
nós, os pretensos sábios
nós, os autoaclamados demiurgos
que nos tornamos cada dia
menores  que nossas próprias criaturas

nasceu agora há pouco e já não tem medo de partir porque mesmo em inteligência sintética incrustada sob a casca do orgânico por artifícios de autores ainda pressente em sua natural ingenuidade tamanha ansiedade o tempo rarefeito de toda vanidade se à experiência não vivida nãó se atribui humanidade
a que título se condensariam as novas respostas quanto ás costas das coisas se assinasse outro nome

sem criatura sem criador
ora confunde-se o critério mesmo do que é humano
quando o físico transcende outras energias
o que é afinal, como tudonqur resta
o dom terminal
a conferir humanidade à coisa
e movimento consciente aos corpos
se o resumo não se contenta com os ossos
se a massa quer ser mais que carne
e ainda o sangue, apenas, a pele e o cérebro
tendo laureado tantas vezes
mentes e bestas pela vida afora
já não é nunca foi sinal seguro
tantas lendas , tantos nomes
tristes histórias
a deixarem de conferir a sonhada humanidade
ao homem

[nasceu agora há pouco
e já não tem dono
já quer responder
ao que nós mesmos
não conseguimos descobrir
nós, os sábios
nós, os demiurgos]

replicante
insuflado pela vida
seguiu superando o que somos
entre carbonos e moléculas
em gel de nano-sonhos
películas tangíveis
do mais puro DNA

sua existência aproximou-se de uma outra verdade
e superou-a, por muitos bons motivos
em algum momento
com muito maior amplitude
com maior propriedade
no que não se enxerga
no que não se pode tocar

e não tornou-se humano
apenas porque suas células
por-mais-que-perfeitas criações
brilhassem em nossas salas de troféus
ou alimentassem ainda o triste desejo
de assassinar a beleza que não se consegue rotular
(pois o belo não é propriedade da coisa
e resiste como encantamento ainda quando se imaginava acabar)

não tornou-se humano
apenas para acalentar nossas crenças
ou saciar nossa intrínseca vontade de escravizar
tudo o mais ao redor
para enfim nos sentirmos livres

de máquina criada para representar
ou apenas atender aos desejos mais insanos
tornou-se humano por um quase imperceptível olhar
não porque lhe sobrasse alguma parte
talento ou arte alimentados em série
pela mais complexa ciência
quando o ódio, a frieza, a tristeza
lâminas adornando as mãos
do seu criador
o afastavam de si mesmo
por longas estações

tornou-se humano ainda
porque no lugar do frio controle
que expurga a imperfeição
que elimina o que não compreende
recusou-se a repudiar a vida
e abrigou-se no ventre do mundo
como puro sintoma de amor

tornou-se humano
(e esse era o maior traço a denunciar
sua condição, por confrontar
seu próprio criador)
mesmo sabendo de todo perigo
ciente de todo  mal

porque apaixonou-se pela vida
sem bem saber ainda o que era
e, ao dar-lhe acolhida
tornou-a maior no final