Da necessária reinvenção do mundo pela palavra




"Que importa à árvore
 se não lhes apreciam os frutos ?" 

(Nietzsche in "prefácio à Genealogia da Moral")

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A natureza de ser
Dois mil anos em sofrimentos metafísicos
Para abandonar-se qualquer projeto vão

A evidência em perceber
em como o Ser é mesmo uma atitude
e nunca uma essência dada

Ser como uma busca
Ser como uma angústia
Ser como caminho, tarefa:
                       Aresta e não reta

Nunca resultado: todo resultado é a morte do ser
e como tal, ponto de passagem apenas
para a impermanência
que nos configura
somos eternamente tangentes

A obra, tão incensada pela cultura
--porque todo olhar que é externo a nós
só acompanha aquilo que consegue rotular--
é nada além do ciclo mais comum
O fruto, para a árvore, é processo
e resultado orgânico, não a finalidade em si

Pois o que importa é frutificar
e não se empoderar do que se produz
Há uma naturalidade no processo
e um artificialismo tolo
em se envaidecer pelo excesso

É isso o que eu quero
Pra isso é que vim ao mundo
Para ser o resumo fragmentado
de minhas próprias tentativas
Não conheço sucesso, nem me interessa
O fluxo incontrolado dos acidentes
Que usufrua quem conseguir viver com isso

Jamais um resultado, um consolidado
um aglomerado de coisas que se designam
apenas por suas aparências
Que importa isso à árvore?

Se o processo de se descobrir
-- mais que isso ,até, de se construir,
porque este é um verbo mais atento
aos momentos e transições da vida--
por esses caminhos
é contínuo, rico e ilimitado em suas possibilidades
Extremamente arriscado em seus fracassos

Que perda haveria se a safra não for o bastante?
Que desperdício incidiria no excesso?
Que tipo de desgosto se os frutos
Não são doces o bastante?
A única perda possível
É não haver colheita

[porque não há consolo para a ilusão
de que ser humano é se contentar
com um destino quando a humanização
é justo acolher o indeterminado ]

E nessa lida, por alegria, alegria, alegria
a literatura me recompõe as rupturas
faz com que eu consiga chegar ao final do dia
permitindo que ainda viva em cada fala
traços rarefeitos de uma identidade que não cala
um ente a quem se  possa chamar eu
Se leio ainda tantos livros ,e mais que isso
a cada capa, corpo ou parágrafo
são eles que mais me lêem

É porque vale, é porque valerá, é porque valeu

Gratidão às palavras, amor incondicional
ao verbo, gratidão à vírgula,
respeito pelo ponto final
e um eterno aprendizado da elipse
porque se existimos é na linguagem
Por ela, nela, através dela
é que não somos peixe, cavalo
ou lagartas de coqueiro

Homenagem a todo parágrafo ou estrofe que transcendam as expectativas
Ruminações sóbrias ou risadas ébrias sobre o verso que ainda não se erigiu
Mas faz cócegas por dentro do peito, na pele, nos olhos porque quer ser

Nem que isso seja um gozo solitário, como é solitária a árvore
que no meio dos temporais, enfrentando seca, contendo-se no granizo
apegando-se ao solo para sugar no fundo sua necessária seiva
permanece árvore, independentemente das estações, das agruras
e produz frutos, e desses frutos sempre soam sementes
pelos caminhos do vento

Uma solidão de árvore, agora, saber assim com generosidade
que não importa muito o fruto, em si, posto que isso é da sua
natureza de ser árvore, e não poderia cobrar a ninguém mais
--não poderia culpar a ninguém mais -- por ser como é

O que doa por doar, em reiterar assim
a cada dia sua prática-essência
o tempo passa e ela nem sente

Porque ser árvore
e produzir, e doar, e continuar:
                                esta é a sua única ciência