Amor (Michael Haneke)



"O Aleph" retornando à análise de filmes esta semana, depois de um tempo em off.
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Filme: "Amor" (2012), do  austríaco Michael Haneke, onde o diretor traz o habitual olho crítico existencial no questionamento da idéia equivocada de amor romântico.

A dificuldade de falar sobre o cinema de Haneke. Não tanto pela existência de algum hermetismo na linguagem de seus filmes,  --que apesar de possuírem uma simbologia e recorrência de temas característicos e no delinear da sua carreira eles apresentarem entonações e apropriações muito particulares como na arte de qualquer artista para os temas que julga importantes, não são signos inexpugnáveis  --,  mas sim por uma outra razão: a forma como Haneke vê o mundo, ou ao menos a forma como nos quer mostrar sua visão de mundo, seja doando suas metáforas ou chamando à provocação, às vezes é  simplesmente aterradora. Seus filmes raramente têm final feliz.

Mais que um polemista dedicado  a confrontar por esporte os temas picantes do momento, sua trajetória é bem outra, como o naipe de diretores considerados seminais, a exemplos de Bergman, Antonioni, Truffaut, Fellini, a grande questão é que Haneke parece também encontrar na crítica aos pilares da cultura ocidental os ossos dos seus embates. Seus temas correntes são a morte, o erótico, a idéia contraditória de "civilização" que remete a um suposto aperfeiçoamento do homem que é inteiramente negado pela sua existência mundo afora. Familiarizado por formação aos temas psicológicos e filosóficos, ele transita com desenvoltura nesse ambiente. Avesso aos "debates da moda",  vai logo na essência, e nesse trajeto, com frequência esboça uma imagem nada louvável para o que nomeamos (ou apelidamos) comumente de humanidade.. Com uma visão em geral melancólica e desacreditada sobre as potencialidades desta raça com tendência para a negatividade no mundo dito real, alguém poderia sugerir desse pessimismo, ora latente, ora explícito , uma certa semelhança com o dinamarquês Lars Von Trier, em termos conceituais.

É ´possível, lembrando que não falamos sobre "técnica cinematográfica" aqui, mas intenção e obra. Eu mesmo, no quesito "acidez" e "visão crítica e melancólica" da presença humana no planeta, já fiz leitura análoga com as abordagens de Trier em "Europa," "Dogville" "O Anticristo" ou até mesmo na melancólica (e um tanto superficial) noção de sexualidade em "Ninfomaníaca", onde ser humano é o pior defeito que se pode alcançar. Mas apesar desse traço em comum, a acidez de Trier não alcança a poesia de Haneke. Sem mencionar as diferenças marcantes na forma de se lidar com enquadramentos e posição de câmera, movimentos de atores, som, o "olhar" da fotografia e sobretudo o tempo da ação, há ainda um outro ponto forte de diferenciação: é como se o mundo decaído e sem saídas do Dinamarquês fosse uma sentença de morte sumaríssima, sem apelação, e as cutucadas de Haneke, pela provocação ao espectador, e pelos novelos narrativos que desenvolve em algum momento gerassem a noção de que, se houvesse uma força motriz e intencional forte, em sentido contrário, a história poderia ser outra.

Mesmo neste filme "Amor", onde o maior inimigo é o inevitável tempo a dissolver as carnes e eventualmente a forma de expressão dos afetos, há uma proposição não no sentido de se alterar a força natural do passar do tempo, que é invencível, mas de se agir de forma a acolher o impulso de vida ou deixar vibrar a pulsão de morte. Essa escolha é individual, e sem regras. Nesse processo, enquanto conduz a narrativa, ele se preocupa com a beleza, e enquanto tal, gera poiesis, e isso é força bastante para picar o espectador com o veneno da possível transformação,  seja em si próprio, seja no trajeto dos enredos onde ele é parte indissociável por sua ação ou omissão, suas instigantes tramas deflagram sempre o processo de pensar saídas, para criar ou recriar o mundo à imagem daquele que cria e resolve ou não com isso ao menos parte de seus conflitos. Na outra ponta, o cinema cáustico de Trier já teria decidido isso desde o início, dissolvendo tudo numa panela de ácido no meio do nada.

É assim que Haneke  fala sobre a gênese e os efeitos da brutalidade em nosso meio social, no filme "Violência Gratuita (1997) , provocando o espectador sobre a possível inércia do indivíduo como conivente e co-gestora da  violência, seja individual ou coletiva. Se existe o mal no mundo, em grande parte é também pela omissão de uma maioria silenciosa, não apenas pela ação decidida das "forças malignas". Fala sobre os efeitos da repressão burguesa e do ciclo doentio de dependências afetivas e funcionais afetando  o comportamento individual e os amargos efeitos colaterais ao lidar com o desejo no erótico "A professora de piano - (2001"), repetindo ainda esse tema da repressão e dos excessos da rigidez moral , agora em outro nível, sob o ponto de vista político e coletivo ao associá-los à genese do fascismo controlador de corpos , em "A Fita Branca (2009)", depois questiona a veracidade dos laços afetivos familiares em ""Happy End (2017)" assim como uns anos antes tinha destruído completamente a noção mais entronizada de amor romântico, imagem tão comum em nossa cultura afetiva, com o filme  "Amor (2012).

Os signos do filme "Amor" são intencionalmente díspares e provocadores desde o início. Os protagonistas são velhos, em vez de jovens. A locação explora o retiro e o isolamento, em vez de conjunções sociais e eventos agregadores, a fotografia  é sóbria e escurecida em vez de luzes e cores, e a extremamente explorada relação anti-ciência, tema tão caro à filosofia alemã, é muito bem delineada ao fundo, no confrontamento da frieza da medicina para lidar com as humanidades.. No plano geral, é como se não houvesse uma positividade intrínseca na vida, ou no próprio ato de amar, confrontando a visão muito comum na literatura de época que se imortalizou também no cinema clássico. A vida dos protagonistas se estabelece ao redor da arte, pela dedicação à música, à leitura, à contemplação, até que uma situação de doença altera o quadro. Como no livro "A Ilha", de Huxley, que contrapõe uma sociedade dita alternativa que encarna a crítica à sociedade de consumo mas aos poucos vai se desfazendo quando surgem os primeiros problemas para lidar com a falta de conforto e dos recursos da tecnologia e da modernidade, o filme de Hanecke se põe com toda força ao questionar até que ponto o "amor" tão cantado nas artes e nos romances permanece de pé quando verdadeiramente confrontado pela vida.

 Perguntassem a alguém, se possível, antes de nascer, se desejaria fazê-lo,  exibindo numa grande tela em 3-d, tudo aquilo por que ele passaria durante uma vida humana, riscos e medos entre belezas e dores, e saber  se esse ente, antes de estrear a vida, pudesse responder à pergunta: ainda quer viver depois disso? não há como saber a resposta, nem há manual de acerto. Alguns certamente prefeririam nem sequer nascer, quando vissem os terrores que há no mundo, de fato. Outros, com olhos e focos em outras realidades, se submeteriam ainda assim às dores comuns, sabendo que os raros momentos de plena beleza ou da intensidade intercalada dos prazeres ainda faria valer a pena pela parte dura. É como se a vida, em si como contraposição da morte ou a própria morte, como tragédia ou fado, ambas tivessem poesia demais para simplesmente serem submetidas ao desígnio da racionalidade. Àquele que ama, se perguntaria, por analogia: ora, na vida há muitas outras forças, outras razões, outras experiências de validade, mas ainda queres se meter com o amor, mesmo sabendo tudo que ele impõe? Haneke propõe ir ao final disso, então, pra ver onde vai dar... Nesse aspecto, o diretor  poderia  ser "acusado"de ser um Schopenhauer com uma câmera nas mãos? sim, com certeza..

O andamento do filme segue a mesma linha. Lento, não-emotivo num sentido comum, mas intenso sob um outro olhar nos pequenos detalhes, (característica tão intensa no diretor que às vezes lembra alguma coisa de Tarkovsky tanto no escalonamento do tempo quanto no uso fotografia), a filmagem intencionalmente não incandescente como a usual abordagem dos filmes que tratam de temas romãnticos. Numa leitura, a intenção do autor passa por quebrar logo sem maiores cerimônias a superficialidade e inconsequências do gesto supostamente livre e colorido do amor juventude e seus superlativos desdobramentos. Ora, quem em são juízo pensa em morte, doença ou qualquer tragédia quando assiste ou sente uma cena romãntica qualquer? os instintos governados pelos hormônios, a busca real ou metafórica da força da vida, o desejo da posse,a vontade da partilha, a busca de uma linguagem comum do par, coisa tão comum nos artifícios literários. Não há necessariamente uma recriminação da superficialidade do amor-paixão, ou se há ,isso não está claro nem nos diálogos nem no roteiro. É como se a pergunta nem sequer fosse feita, para dar a entender subliminarmente que, caso tenham uma noção mais apurada da vida, que os jovens aproveitem o tempo que lhes cabe, o tempo que lhes resta, e que se entreguem com vitalidade àquilo que denominam essa intensidade psíquica-corporal a que denominam amor, mas há um outro sentido para a palavra, denso e mais real, que eles ainda não conhecem, e nesse talvez resida uma verdade dura e posterior. De forma estóica, talvez credite a essa outra "verdade", por todas as provações a que se submetem os parceiros, o sentido mais amplo e realista do termo.

De um lado, na estética clássica limita o amor, comumente expresso na forma romance, cujo conceito advém da literatura desde o final do séc XVIII para XIX, estabelecendo a forma madura em Flaubert  mostra com frequência esse sentimento em sua constante figuração na juventude, como ritual de passagem e correspondente explosão dos hormônios no início da vida adulta, amor como "coisa de jovens", fórmula repetida à exaustão. Nesse sentido,  é como se o diretor apresentasse um desafio ao espectador-cúmplice ,e, à queima-roupa, no velho estilo já conhecido: ora, pensas tanto saber do amor, saber amar ou se propor nessa esfera de sensações e afetividades, mas estarias disposto a ir às últimas consequências e assumir o peso do sentimento numa ótica realista, completamente fora do "ideal romantizado" do amor? num paralelo de épocas e leituras, é como se ressuscitássemos um clássico dos anos setenta, "O império dos sentidos" (1976), onde essa mesma pergunta é colocada pelo filme japonês, mas a intenção ali é mostrar do ponto de vista eminentemente erótico quais seriam os limites possíveis e suportáveis: até onde amor pode se configurar ou não em êxtase, e a´te onde o êxtase é pulsão antes de se tornar o nada? Em Haneke, há também a dúvida sobre os limites físicos, mas não do ponto de vista erótico, uma vez que a energia agora em ação é a da sobrevivência aos amargos anos da velhice. Daí o frio na espinha visível e palpável à medida em que os temas da decomposição do que é humano por seus atributos físicos, em primeiro plano, e atributos psicológicos caminhando conjuntamente, vão mostrando como podem ir longe intenções e realização à medida em que a vida caminha, mas não sem pagar um preço.

A doença degenerativa da mulher é o que faz com que o casal resolva se retirar do convívio social, destinando-se a um isolamento voluntário pela simples falta de paciência para lidar com o mundo, coisa que gradativamente foi sendo alçada pela vida, e intensamente aumentada após o diagnóstico, dá o tom das reações previsíveis de mau-humor do casal de velhos ao lidar com o cotidiano, contas, médicos, hospitais, remédios  e tratamentos debilitantes, e o cansaço previsível ao final do percurso, que poderia levar a um conflito de deschavo: uma série de desdobramentos do ponto de vista da percepção do que os levou até ali, como inerente condição humana e por isso, praticamente irresolúvel.

Há uma transposição do problema do "amor aventura", do "amor desfrute" e do "amor puramente sexual" , temas bastante explorados pelo cinema, que com frequência usam a idéia da beleza, corpos jovens, contextos imagéticos de flores e paisagens exuberantes ou temas de "action movie" para criar a empatia e fortalecer a trama com vitaminas emprestadas do contexto. Daí, mesmo que o desenvolvimento seja trágico, com morte violenta ou acidental no percurso, imolações em nome do desejo ou do fracasso, o que ficou mais forte na mente e no espírito do espectador foi mesmo a confluência vibrante das metáforas de amor "força vital", a adrenalina ou as forças combinadas da não-realização, o poder do sexo, da vida, da beleza e da paixão arrebatadora, transmutados em coração a amalgamar desejo e realização, agora substituídos por Haneke por outros sentimentos que, uma vez mantido o vínculo,  criarão a necessidade de uma outra linguagem à medida em que os corpos (lembrando que a estética é criada em cima do amor de um casal de idosos) flertam o tempo todo com as próprias ruínas. Surgem as dores, as carências, as impaciências, as dependências e faltas, em geral como lacunas, e certamente se houver alguma saída, ela não cairá de paraquedas como um milagre de redenção. Afinal, a vida não volta atrás, mas no entanto, tem que continuar de onde está. Ou isso, ou abandonar qualquer movimento de continuidade, adotando-se  perspectiva trágica de imaginar a antecipação do desenlace sob sua próprias mãos, ao tomar para si a vontade de terminar de uma vez com tudo.

Mudando o eixo da trama para um momento tardio em histórias de vida que se cruzaram há muito tempo atrás e por uma razão ou outra, decidiram permanecer em união, tudo demanda paciência e uma infinita espera até o momento final desse forte vínculo, imaginando-se que uma solução para o mundo real dos problemas deixa de ser monopólio de uma saída exercitada apenas por motivação hormonal, sexual, romantizada, sob as quais tudo valeria a pena, como na tradicional visão otimista dos filmes românticos, cambiando para uma outra visão, onde agora outras forças da vida, não menos poderosas, mas que atuam mais tardiamente no tempo, entram em campo para fazer praticamente esquecer aquelas primeiras e obrigar o casal a lançar o olhar para o que ainda existe em termos corporais ou afetivos, pois afinal a soma disso tudo trata-se mais de convivência, companheirismo, tolerância, acolhimento e o afeto que talvez faça isso tudo valer a pena, ou quem sabe seus possíveis antípodas, quando por cansaço ou total ruína física pela doença, pelo medo, pelo pessimismo das perspectivas futuras inexistentes, o indivíduo em total e honesta introspecção da sua vida mais por necessidade de sobrevivência que por gosto, em idade avançada, precisa eventualmente escolher se realmente ainda quer se doar a alguém mais além de si mesmo dali por diante, uma vez que até a força de se sustentar sobre o chão pode vir a falhar.

Não é difícil compreender a polarização das pulsões, nesses termos. É porque diferentemente dessa idéia de amor, onde há não apenas o entendimento e a aceitação do outro, em suas particularidades e negatividades, -- espaço em que o filme explora muito bem a perda da paciência, a irritação pelas dores, pelo cansaço, pela doença, tudo a que o outro está submetido e de alguma forma precisa ser aceito -- a pulsão colorida e leve do envolvimento romântico se coloca como a visão projetada de um par sobre o outro, impedindo que a alteridade possa se manifestar. Nesse caso, seria impossível qualquer convivência ou ampliação dos afetos, como sabem tão bem os psicanalistas da linha freudiana, porque o que se ama em um amor romântico, é a si mesmo, refletido sobre um outro sem alteridade.

O questionamento-armadilha que Hanecke põe, espeta como  lança a uma visão particular do filme e se mistura com o fim numa possível leitura que deverá responder à questão: descartadas de uma vez as nuances superficiais das paixões românticas,  o amor é o que resta? porque quando se trata do puro romantismo, as projeções que se fazem de lado a lado de qualquer relação facilmente seriam destruídas no primeiro momento, de forma compreensível até, para que as outras forças de realização envolvidas no processo possam se metabolizar em novas asas e direcionar-se a outros campos onde possam lograr mais sorte. De outra mão, ultrapassada a superfície, o que parece ser a definição mais próxima do conceito do filme é perceber  o que  se encontra debaixo das ruínas, aquilo que persiste sob outras formas menos enfeitadas de afeto, a força derradeira que, desafiando a própria vida a partir de um certo momento, pode incluir até mesmo a possibilidade de induzir a abreviação trágica de todo sofrimento pelas próprias mãos para fazer valer a memória do vivido.