Mia Couto (Terra Sonâmbula)
Há muitas maneiras de se gostar de um livro, um autor, um artista, e sobre a obra há incontáveis portas de entrada. Por isso é que existe a arte. Depois de "lançada ao mundo", aquelas histórias, os versos e as vidas agregadas a eles se imensificam, apenas pra mostrar que a matéria é limitada mas nosso jeito de possuí-la ou despossuí-la ronda o infinito.
Pra quem ainda não conhece, um texto denso, às vezes duro em suas revelações porque não pode nem quer falsear raízes, mas extremamente rico em suas alegorias. Pra quem gosta da construção de palavras, pra quem já leu Manoel de Barros ou JGR, há uma bela familiaridade de sons, de jogos e invenções que vão se fazendo na prosa poética de Mia Couto, como a música nas mãos de um grande mestre. Poucas vezes vi essa língua portuguesa dançar tanto. Há influência do estilo iniciado por Saramago quanto à forma, décadas atrás, mas a meu ver a semelhança para por aí, porque o ambiente sob ou sobre o qual se desvela o imaginário do autor é bem mais trágico.
Em Mia (apelido originado do gato, quando criança), há o criador que vem, não exatamente como porta-voz de um único país, Moçambique, mas desse planeta Africa, poderoso mas privado de sua força durante séculos, ora massacrado pela escravidão , ora dizimando-se internamente em longas e sanguinárias guerras civis (muitas vezes com participação ativa ou omissiva das potências ocidentais em busca de ouro, diamantes, escravos, petróleo etc).
Talvez daí um dos aspectos da grande beleza que habita a estética do autor. Tamanha e tão pulsante poesia oriunda de escombros, mas que não se resume ou não se resigna a eles. Mia Couto é biólogo por formação. Um bruxo, de certa forma, um velho Xamã branco respirando os ares do continente mais antigo, mãe e pai de todos os outros. Como cientista e como poeta, tem o dom e a missão de ir direto aos ossos das coisas. Vê a célula túrgida depois da chuva rara na transparência da folha. Lê o tempo de mau agouro no vóo pássaro. Vê o inseto se escondendo debaixo do chão rachado porque pressente a seca. E sobretudo, vê como seria possível a impulsão da beleza original de uma terra tão rica se lhe cessassem as guerras genocidas.
Contudo, não há em momento algum uma tentativa de estetização da dor ou da pobreza, mas de uma forma única e avassaladora, evoca os espíritos da terra-mãe africana, seus deuses, seus mistérios, resgatando falas e rezas, sons, costumes, comidas, ornamentos, para tentar uma compreensão maior do homem no fio bambo da vida e não sucumbir à tristeza endêmica desta contraditória criatura. Toda estrada é um desconhecimento do destino, toda árvore é mãe de vida, todo lago ou rio é um universo já povoado, antes desses olhos que agora o vêem, pelos espíritos dos antepassados. Fora dos textos, ele se tornou um dos grandes visionários e denunciador dos maus tratos e da exploração centenária das superpotências sobre o continente negro.
Há em suas obras tantos e tão fortes personagens, tantas vozes em pedaços, vilas em fumaça de recentes bombardeios, soldados que bem não sabem a direção ou o motivo, uma população civil aterrorizada e em alguns casos expatriada, fragmentos de personalidades humanas que mesmo entre os escombros ainda amam, ainda vivem, ainda se entregam á fugacidade de um tempo bom e tênue no entre-guerras, na celebração rara de uma mesa posta, seres que se encantam mesmo com a efemeridade e a tragédia que constantemente sugere o corpo, inteiro ou despedaçado, num momento pujante de vida, noutro parecendo querer retornar ansioso à Terra. Suas mulheres são fortes e poéticas. Seus homens são ambíguos, transitando entre o oprimido, o resistente, o opressor que se alberga nos menores espaços possíveis, reproduzindo a ordem brutal ao qual também está submetido em última instância. Suas crianças e velhos são pura magia, porque apenas quem tem esse olhar que transcende consegue ainda acreditar na renovação da vida em meio a tantas ruínas.
Mia couto: "Terra Sonâmbula".