Pequena Miss Sunshine (2006)
A importância da valorização das políticas afirmativas de gênero e o enriquecimento da cultura que isso traz. Não se trata de advogar a maior ou menor qualidade deste ou daquele gênero, por si só, porque cada talento é único e afinal é justamente a idéia que se quer combater é a prevalência de um sobre qualquer outro, mas a essencial visão diferenciada que isso proporciona é onde pode residir a beleza no final de tudo.
Os exemplos dessa percepção, quando falamos da necessidade e da bonita colheita de resultados em andamento com mulheres por trás das lentes são inúmeros, e o belíssimo "Pequena Miss Sunshine" (2006) é um deles. Como os olhares sutis de Sofia Coppola, Anna Muylaert, Nadine Labaki, Denize Gamze Ergüven, Agnés Varda, na minha leitura é o toque de uma conhecida diretora de clipes e produções musicais que dá o toque e o andamento do filme, do começo ao fim.
As coisas de Hollywood, onde se produz massivamente de tudo um pouco, onde há do pior ao mais brilhante cinema que se faz no mundo, há tantas décadas servindo como parâmetro tanto no que diz respeito à indústria da sétima arte quando às produções indies, quase artesanais. Ou a bem da verdade, ainda que não necessariamente "em HollyWood", fisicamente, há um tempo fora do eixo de produção real cinematográfica, ainda assim produzidos dentro das terras do Tio Sam, que segue forte sendo o país que mais produz cinema no mundo . E por esses belos paradoxos que surgem por aquelas terras, nesse caso trata-se de mais um filme de baixo orçamento, aparentemente destinado a ocupar o espaço tão inverossímil e desacreditado dos "alternativos", mas trazendo no bojo a escolha minuciosa de elenco e um roteiro dos melhores que já foram escritos .
A começar pela história, a narrativa tem de tudo um pouco: o eixo girando em torno de uma família altamente disfuncional (coisa cada vez mais comum do que se pensa, apesar das aparências tentando convencer do contrário) e que serve de filtro para várias visões de realidade que coabitam simultaneamente em nossa sociedade contemporânea, que traz de um lado a necessidade-máquina de produção em série de autômatos capazes de produzir e suportar a pressão de trabalho e rendimento pessoal e profissional otimizados, por um lado, e por outro, a subjetividade inextinguível de seres individuais e portadores de histórias únicas e idiossincrasias que não comungam com mais ninguém, a ponto de torná-los, em algumas circunstâncias, indivíduos não-adaptáveis ou não-desejáveis à máquina, que não perdoa ninguém. E nunca para.
Ali tem um pai de família semi-empregado, à beira da falência, que vê na promoção do seu livro de auto-ajuda uma possível salvação e faz disso o cavalo de batalha capaz de submeter todos ao seu ritmo; há filho mais velho, adolescente típico com o mau humor e a crise da idade acentuados por conta da obsessão em seguir carreira como piloto de jato das forças armadas e ainda sem saber que não possui , por azar, um dos atributos mais necessários para habilitá-lo para a função; o avô maluco, septuagenário mas oriundo da geração Woodstock, viúvo e apaixonado pelas coisas boas da vida, entre elas um vício recente por heroína; o tio professor universitário homossexual, especialista na literatura de Proust e com problemas de não reconhecimento profissional, recém-saído de uma tentativa fracassada de suicídio por conta de um relacionamento mal sucedido; a menina, aí pelos 12 anos, que dá nome ao filme, e que se vê envolvida na adrenalina de competir , mesmo sem possuir um padrão tradicional de beleza, nos famosos e tenebrosos concursos de beleza infantil tão populares nos Estados Unidos, denominados "Pequenas Misses" que acarretam ano após ano o terror da submissão de crianças, familiares e uma indústria milionária de estética e merchandising por conta de sua alta competitividade. E por fim, o lugar da mãe, talvez a personagem de maior lucidez, da calma, acolhimento e opção pelo diálogo, ao tentar o tempo inteiro, com enorme resiliência e tato, amarrar tudo isso sem deixar que todos simplesmente enlouqueçam com a vida e seus testes contínuos de manter a sanidade.
Cada um tem seu drama pessoal, e há apenas, no fim das contas, duas coisas que os unem , mesmo que inconscientemente:
A primeira, condição não verbalizada, mas capturada por empatia com o espectador, é o fato de todos eles individualmente, serem "mal-resolvidos" ou adaptados às exigências normais da vida. De certa forma, são todos uns fracassados, a se adotar o critério de produtividade e riqueza do capitalismo para avaliação. O pai, porque desempregado em termos formais, não consegue mais renda nem emplacar seu livro, num quase-desespero de não saber mais aonde ir. O filho, porque além das dificuldades da própria idade e o genial insight de adotar o total mutismo até boa parte do filme, colocar esse personagem "mudo", sem diálogos verbalizados como forma de promessa e auto-disciplina que julga necessárias até atingir a etapa final do seu concurso para piloto. O tio, porque além de ser emocionalmente instável e recém-saído de um relacionamento conturbado, e mesmo sendo um grande conhecedor da literatura, sua especialização em Proust é como se desse a entender o quanto de perdido dentro do atual mundo está qualquer tipo de arte ou talento clássico que um dia já foram muito valorizados, mesmo os mais difíceis ou tão duramente conquistados durante uma vida de esforços. É como se o sistema dissesse: olha, preciso mais de um empacotador de supermercados ou um cortador de carne no açougue do que um professor PHD em Proust. O avô, porque cansado dessa "realidade cão" do mundo, tendo experimentado de tudo e percebendo o quanto de enganação tem toda essa luta americana pelo sonho de liberdade consumista é uma piada de mau gosto, nem tenta mais confrontar as realidades, mas parte para o escapismo através das drogas. A garotinha, porque sente a pulsão de, pela primeira vez, se sentir incluída em alguma coisa, sente a pulsão de ser reconhecida como bonita e valorizada, em um ambiente que possa redimir os tradicionais e renitentes bullyings na escola para todo mundo que, como no seu caso, estão um pouquinho fora dos padrões de beleza, e a mãe, por fim, porque é o antípoda da mãe americana de propaganda, não trabalha fora para dar conta da complexidade de administrar a família, e por não ter renda, sem querer acaba não ajudando suficientemente o grupo a passar pelo difícil momento financeiro.
A outra coisa que os une, e que surge no caminho, para forçar uma superação de suas naturais esquisitices e fazer com que superem, ao menos temporariamente, suas brigas particulares para tentarem uma espécie de paz por um motivo maior, é a união em torno de apoiar a filha mais nova em sua empreitada por um concurso de pequenas misses a se desenrolar lá do outro lado do país.
Em status financeiro muito ruim, eles precisam improvisar e buscar as últimas forças para , individualmente quanto a suas limitações, e coletivamente ao se apoiarem no momento difícil, conseguir dar conta do recado e evitar que ao menos essa frustração da filha menor não a torne mais infeliz num mundo que gera tantas infelicidades.
Há um pouco de tudo nesse filme, com atores e atuações antológicas, uma direção anti-acadêmica e dinâmica bem afeita a uma diretora que a maior parte da vida dirigiu clipes e trabalhos musicais, e um roteiro dos melhores que já foram escritos para o cinema. Suas falas, seus diálogos, o substrato onde o cinema autoral tantas vezes traz suas maiores pérolas, são simplesmente fantásticos.
Há o tema filosófico, do silêncio e da força de vontade para o garoto leitor de Nietzsche que quer superar todos os obstáculos no objetivo de se tornar o piloto, essa espécie de super-homem capaz de disciplinar-se a si mesmo em busca de um objetivo, há o tema proustiano que subjaz ao próprio professor universitário, fragmentado por razões afetivas e após uma tentativa de suicídio, que se propõe "ir andando" em frente, enquanto a vida não se refaz, e para isso, precisa recuperar "o tempo perdido", estabelecendo uma nova relação com as coisas e as pessoas à sua volta, há o avô, que de certa forma tem um comportamento suicida, embora aparentemente seja um bom-vivant. O avô também é o personagem de maior profundidade e conselheiro extra-oficial em que a neta mais confia. É ele que faz o "treinamento" físico e mental da garota para se apresentar no desfile e lhe dá conselhos gerais sobre a vida, para não se importar demais com o olhar dos outros, para ela se achar bonita e tão capaz como qualquer uma ,e não ter medo de competir porque no fundo não havia nada a perder.
O veículo que os levará ao destino é uma Vw Kombi velha, amarela e branca, que a essas alturas já virou ícone na história do cinema. Essa kombi é a metáfora da própria vida: ora não pega, não quer ligar ,e precisa de um tranco morro abaixo; normalmente quando liga, já sai engrenada de terceira marcha, de modo que não espera ninguém entrar, as pessoas têm que entrar na corrida pra não perder o bonde; solta peças pelo caminho e de vez em quando parece querer conduzir sozinha sem aceitar a direção de quem a dirige;
Outro pano de fundo mostra a pressão exercida pelo "sistema" contra todos os indivíduos ou grupos que são dissonantes dentro de uma mesma órbita. Como deseja a homogeneidade de corpos e pensamentos, possui uma certa idéia de saúde, de rotina, de hábito ,de previsibilidade como num grande sistema de máquinas onde as peças são constantemente lubrificadas e repostas quando danificadas, a mecânica toda não quer variações que possam lhe causar perigo. Por isso, as diferenças, encampadas por toda a família aqui, não conseguem ser processadas ou assimiliadas pelo modo americano de vida.
Reflexo individual dessa negatividade é a depressão que , em vários pontos , une como um grande negativo, as expectativas não verbalizadas de cada um em particular: o tio, literato, porque tem sensibilidade demais no texto e na vida para aceitar a imposição de ser um ninguém, um desconhecido e não conseguir sequer manter um relacionamento; o pai, porque ao não conseguir o sustento da família, entra num looping depreciativo, mesmo quando exerce seus mais eloquentes discursos de auto-ajuda, cultivando o livro do seu mentor, um vendedor de autoajuda famoso, até descobrir que o cara era uma farsa, o avô porque não acredita mais na vida real, a garotinha porque não consegue entrar no padrão, ela está acima do peso para a idade e se sente triste, a mãe porque ao se deparar com essa família problemática anula qualquer sonho individual por amor e solidariedade a eles. Temperamentos e variações que em outros tempos ou lugares talvez não tivessem maiores preocupações , são transformados dentro da panela de pressão da maior sociedade de consumo do planeta em combustíveis perigosos para a auto-imolação, seja física ou mental. É um grande desafio prosseguir sem se deixar mastigar pela grande boca.
O contraponto do filme é colocado a todo instante,, como forma bonita e contagiante de resiliência, quando uma vez tomada a difícil decisão de apoiar a garota no desfile e todos juntos comparecerem à ocasião, cada vez vai se estreitando mais enquanto possibilidade. As inadequações de personalidade e a pungente crise financeira que atravessam não facilita as coisas. São inúmeras barreiras que a família toda tem que atravessar até poder chegar, á última hora, para a apresentação no desfile, onde por uma inusitada apresentação fora da sintonia do tema "pequenas misses", a garota está na iminência de não apenas ser desclassificada pela caretice burocrática dos jurados do evento, e eles ao mesmo tempo são tratados com total frieza e descortesia pelos organizadores, que de pronto identificam no grupo algo "fora do padrão" a que estão acostumados.
Isso se intensifica quando resolvem todos encampar a visão e o sentimento da pequena, apoiando-a contra o mundo, no momento em que o próprio mundo, representado ali por toda a ótica dominante e impositiva da lógica funcional de corpos e pensamentos ameaçava sufocá-la com valores antinaturais, valores capitalistas de puro merchandising que atentam contra toda a liberdade da infância, atentam contra uma compreensão mais aberta dos corpos ou dos gestos, o grupo difuncional. À exceção do avô, falecido na véspera por overdose de heroína, todos se unem contra o sistema que , na superfície, parece ser maior e muito mais forte que eles, mas isso até que eles decidiram não se deixar amedrontar. É de uma beleza e de uma graça contagiante uma das cenas finais, onde na apresentação se toca a música "super freak", do pop-dance americano dos anos 80 com a letra provocativa de uma garota rebelde enquanto a menina se exibe, feliz, no palco com a família maluca, mesmo sabendo que não ganharia o concurso, mas consegue se fazer ouvir e mostrar seus movimentos tão bem treinados com o avô, movimentos aliás, alegres e livres, sem qualquer sintonia com o que se esperava de uma miss.
Um dos filmes mais bonitos da década 2000.