Meu anjo franzino




para Bernardo Boldrini (Be)



Entre fotos e notícias
depois de tanto tempo
De início, nos burburinhos
(todo mundo sabia, restava provar)
Os rastros de uma infância abandonada
algo por dentro apontava o mapa
do destino mortal

De pé, depositado na curta cova vertical
que te destinaram em tua última viagem
à beira de um comovido riacho
Menino  franzino, com frio e sozinho
como em tantos outros momentos
do teu curto caminho
por este vale de lágrimas

O vale por onde seguidamente
(e sem  saber a razão)
estiveste mendigando afeto
mendigando comida
mendigando um teto
aos próprios pais
mesmo tendo nascido
em berço de ouro

Não adiantou a homenagem
do dia das mães
Não adiantou o teatrinho
do dia dos pais
Pois o monstro da ganância quando vige
quer sempre mais, sempre mais

A mãe de verdade,  tua única proteção
também ceifada assim, de súbito
entre tantas dúvidas
Meu menino franzino
essa tua incomensurável força interior
espalhada por dezenas de fotos
onde sempre apareces sorrindo
Tua breve vida, um roteiro de terror
que amedrontaria muitos fortes

Uma casa, um arremedo de lar
a difamar, a dissolver como
o sopro cáustico da morte
todas as outras casas
todas as felicidades ainda espalhadas
sobre os lares do mundo
por infinita  infâmia

Vem ,
me dá tua mão
que eu volto a ser menino agora
e serei teu melhor amigo
viveremos sobre as bicicletas
soltos,  o dia inteiro,
depois das aulas
Vou te mostrar os melhores lugares
as cachoeiras, soltaremos pipa
no vento forte de agosto
vamos jogar bola no terreirão
até gastar a sola do pé
Subiremos  no pé de goiaba
e escreveremos bilhetes e poemas
(às escondidas,  é claro)
para as meninas da turma
colocando-os em suas carteiras
quando elas nao estão vendo

Tua dor que também é minha
dor que desola e contorce a espinha
Que tesouros eu gostaria de  imaginar para ti
como rica reparação em outra vida
se dentro dessa minha aberta ferida
não revirassem continuamente
os estilhaços da  mesma granada

Fragmentos de miséria humana
revolta
que -- somente eles--
explicariam a mim
explicariam aos seus
o quanto distante estamos de
qualquer idéia aceitável de Deus

E o quanto é necessário para viver a coerência
abrir mão de qualquer compaixão
abrir mão do que sustenta as crenças
para que o resto da humanidade
que tanto sofreu nas vias
inexplicavelmente trágicas da vida
se sinta, ao menos uma vez,
consolada, redimida, acolhida

Todos os inocentes mortos por poderosos
todos os judeus mortos pelos nazistas
todas as crianças assassinadas
quando não em guerra, na lavra
calma de um pacato lar
albergado pela máscara fria
tudo isso seguindo ao largo
de qualquer compaixão dos astros

Teu sorriso extinto na poesia
dos teus onze anos incompletos
O rosto delicado no contato da lama suja
a macular  teus lindos olhos de criança
A esperança a se tornar palavra vã
O profundo desgosto da gente se imaginar
por meio segundo a viver neste mundo
pertencendo à mesma raça ignóbil
dos teus algozes: eu me recuso!

Ser planta, ser bicho, ser pedra
qualquer outra coisa no lugar
sob a qual ainda reste um mínimo
de amor no mais profundo do peito
amor como arremedo de resistência
como brilho a lustrar até as pedras

Melhor seria retornar ao paiol dos animais
que mesmo nos momentos de
maior embriaguez
por altivez jamais desceriam tão baixo
tão torpes, tão cruéis
na escala de valores absolutos da vida

Disseram,  já,
que essa nossa decepção é mera ilusão
posto que a vileza ao homem faz par
com sua própria existência
Mas bastaria observar um instante
para constatar que há mais proximidade
entre um macaco e um humano
do que entre alguns humanos entre si

Ah, como no fundo eu invejo os que realmente acreditam
Invejo mas não sou como eles, não poderia ser
sem que matasse involuntariamente  em mim 
o germe de uma outra coisa
--essa coisa, sim, sem nome, sem destino, sem medo
que me define --  a revolta! contra Deus, contra o homem
contra tudo. 

Revolta contra  a vida, se preciso
porque nela não se instaurou ainda uma noção
maior de justiça, uma noção maior de bem
uma amplitude em que caiba o amor
uma palavra que justifique a dor
Pois a contragosto aprendemos
a suportar o fado

Jamais aceitarei a tragédia humana
como algo natural e inevitável

Invejo os que vêem mesmo na total desordem
uma outra ordem , mas não sou como eles
porque em mim, a ferida original não cicatrizou
e o fragmento do humano que é agredido
Cada esperança ,cada desmedida punição
que grassa do Egito à Sibéria
dos polos gelados aos ermos desertos
torna-se uma farpa contra Deus
por solidariedade maior à vida

Como o repúdio ao homem vil
a recusa em se reconhecer na raça
que gera em seu ventre tamanha iniquidade
é um abraço ao germe de uma outra humanidade
Não há lição nisso tudo, não há qualquer sabedoria tardia
a não ser nosso triste testemunho sobre a miserável raça
Se nem mesmo toda a graça desse teu sorriso,
desses teus olhos de menino
não puderam cultivar a paternidade em um pai,
ou a bondade necessária de uma mãe

Tua energia de ser criança não alimentou
qualquer esperança de um pai feliz e orgulhoso
a te espreitar dormindo,
cansado depois de jogar bola, jogar videogame
assistir os desenhos preferidos na tv
um pai que nunca teve o prazer
de te botar na cama depois de desmaiado
de sono diante do prato de comida
ainda pouco mexido
e aproveitando o momento do filho distraído
mexer em teus cabelos para velar teu sono

Que prantos seriam ouvidos por uma falsa mãe
que te deixou tantas vezes trancado pra fora de casa,
na chuva gélida das noites seguidas
em que também não te alimentava com comida ou carinho
uma falsa mãe a sujar o nome de todas as outras mães
que habitaram este triste planeta
Uma Górgona de mil cabeças, a trucidar
um filho por dia, apenas por vaidade
a exibir suas vísceras em aquários
enquanto dá risadas em praça pública

O que resta é a revolta diante dos mistérios
Como poderíamos suportar
que todo escândalo contra a vida
--como foi esta tua morte --
pudesse ser tolerado assim, como mais um
no meio de tantos outros
e achar no fundo, uma explicação
seja sociológica, seja filosófica,
ou mitigada por qualquer outra razão estatística
Como podem ainda, acreditar na razão
quando tudo o mais cai em ruínas
diante dos teus pequenos pés
soterrados

Meu pequeno
Minha renitente descrença
 não é um ato de agressão a Deus
É, antes, um ato de agregar em mim ainda o
pedaço que sobrou da humanidade desvalida
depois que nos descobrimos sós
com nossas próprias escaras

Minha recusa a aceitar o colo divino
é a coerência em ver com olhos tão despertos
quantos outros como tu, meu menino
são dizimados como moscas a cada dia
a cada mês
sem que do firmamento caia uma lágrima
sequer

Queria, nem que fosse apenas por um instante
partilhar dessas certezas metafísicas que
alguns levam dentro de si pelos caminhos
A confiança inabalável que os leva adiante
quando buscam serenidade num outro sentido
para tudo que ocorre ao redor
a nos ensejar tamanho desespero
Queria, mas não consigo
Fingir seria estar em desacordo comigo

Mas enquanto isso não chega, penso mesmo
(abrindo mão de qualquer tentativa de engodo)
que eu , não compreendendo muito bem
os motivos que os levam a persistir
nem  a nobreza exagerada e passiva do Cristo
A frieza do Buda, o otimismo do Hindu
O sangue quente de Maomé
Eu pudesse , em vez disso, tornar ao antigo Deus do testamento
que sem dúvida fala melhor a minha língua

Ah, Pudesse eu arregimentar em legiões tantos anjos
arcanjos, entidades guerreiras e vingadoras
para dizimar essas covardias , exterminar as crueldades
e, se necessário, varrer da face da Terra
a criatura humana sem qualquer arrependimento
sem restar qualquer saudade
quando chegasse ao ponto de se haver assassinado
com tamanha perfídia ao menos um pequeno ser indefeso

Ah, Pudesse eu ter a força
para conjurar toda aquela ira divina novamente
A ira  potente em sua majestade, a castigar assassinos
de crianças e outras iniquidades pelo planeta
com resquícios de crueldade requintada
Um Deus antigo que permitia suplícios
que punia com tamanho rigor
porque sem dúvida conhecia melhor o homem

Mas no fundo eu sei, sempre soube
que além de gerar uma espiral infinita de terror
nada disso seria o bastante para vingar a ti, pequena criatura
que sofreste tamanho suplício ali, bem aos olhos de todos
que reclamaste de tudo, botaste tantas vezes a boca no mundo
sem qualquer resultado além do silêncio
e enquanto isso, afiavam as garras
bem próximos de ti , os teus carrascos
urdiam na calada noite
o travo amargo do teu veneno
agiam habilmente para torná-lo mudo
enquanto todos continuávamos surdos
em nossas pequenezas cotidianas

Nada pudemos fazer por ti

                 Nada pudemos fazer por ti

                             Nada!

                                      Meu anjo franzino
                                             
                                                        desse  par de olhos tristes

Descanse em paz
         
                 Se a paz for algo que existe