Enterro

O passamento de nosso avô
(que era bisavô mas nós o chamávamos assim,
quando não o chamávamos simplesmente
de padim)
Não me deixavam ir, de pequeno
Insisti, queria ver de perto a cara da morte

O avô não parecia diferente, usava um terno azul claro
deitado naquele féretro de rosas brancas
mas seu rosto jovial permanecia igual, um
certo sorriso meio matreiro em expressão
de rala barba branca
que até escamoteava um pouco a dureza
dos últimos tempos

Todo mundo suava, estava muito quente
muitos com abanadores, leques, disputando sombras
Mas o avô que era bisavô
permanecia bem, sem suar a fronte,
a tez pálida e elegante
a expressão de quem guarda algum segredo
e tem alguma coisa a dizer

A dizer a verdade
me decepcionei um pouco com a morte
porque a esperava cheia de garatujas e ventanias
pensava que surgiria ornada de barulhos
a levantar os terreiros, dobrar os topos das árvores
e nada!

Espreitando bem os olhos ainda cautelosos
via apenas umas senhoras com lenços pretos nas cabeças brancas
seguravam um terço de cada cor em suas mãos
(calor imenso sobre o grande terreiro de chão varrido por minha tia)

Umas crianças meio perdidas no quintal, fazendo algazarra
e sendo admoestadas a cada cinco minutos
A morte não me parecia, àquelas alturas
a entidade poderosa de quem somente se ouvia
nos cochichos a meia boca
A visita no quarto escuro a que não se permitia acesso
mas ainda assim escapava daquele outro mundo até nós
pelas frestas

Ela ainda não era aquilo tudo que poderia significar mais tarde
[não sei se pela naturalidade da morte de um idoso]

Alguns tentavam dedilhar um acordeón, coisa que o velho gostava
mas minha avó que era bisavó desde antes proibiu, tocando-os pra fora
do terreiro -- meu avô nem se importava, continuava tranquilo
e eu sem ter muito o que dizer a ele - conhecia-o tão pouco
mas me decepcionava mesmo era com a morte
porque imaginara uma espécie de encontro marcado
nessa tarde, nesse lugar, uma primeira entrevista

Esperava que ela  atrovoasse suas razões
já de longe, como fazem os anúncios de tempestade
e fizesse como nos causos tão recontados
cachorro murchar o rabo
cavalo romper no pasto
passarinho voar de lado
fizesse extinguir a safra de mangas do pomar antes da hora
riscasse o céu feito corisco na tarde branca
aparecesse feito miragem brilhando na beira do caixão
pra fazer discurso e levar seu passageiro pra sempre
Alguma solenidade, ao menos

Tinha o tal  punhado de terra pra jogar
senão dava pesadelo à noite
Não joguei, não quis, achava estranho aquilo
de jogar torrão de terra sobre um caixão
Semelhava alguma falta de respeito
com a morte, com o morto

Minha prima mais velha, a mesma que
me aterrorizava com a história da Coresma
--a tal assombração que pegava crianças --
no mês de abril e da paixão de Cristo
[e como o sinal da sua presença eram sempre
aquelas flores roxas das árvores perto da estrada,
o que me impedia por meses de passar no trecho
povoado por pequenos arbustos roxos sinistros ]

A prima me inculcou no espírito sobre não apenas
o pesadelo a me varrer a vida doravante por conta
do esquecimento do torrão não jogado sobre o féretro
mas também sobre a maldição do espírito
do meu avô, que era bisavô , daí em diante
passar a povoar as árvores do nosso sítio
chamando meu nome pelas tardezinhas de brisa
na ameaça do sol se por

E não enfeitiçaria somente a árvore de Coresma,
--assegurava-me a prima preferida e mais terrível--
pois a essas alturas ela tinha já,  por donos,
outros espíritos que desencarnavam na Páscoa
a povoá-la agora, além das  semanas santas ,
os Halloweens pelo resto do mundo

Mas seu espírito ressabiado comigo
assombraria as árvores em abundância no quintal grande:
Mangueiras, abileiros, pitangueiras, coqueiros
(meus conhecidos e habituais esconderijos)

Achei depois que todos tiravam era onda comigo
E não tive bem um pesadelo, mas um sonho pesado veio depois
Pesadelo não, mas um sonho: o avô num grande cavalo branco
[com suas barbas brancas ainda por fazer, olhos meio fundos, escuros
sombreados como os vilões dos filmes de terror do cinema mudo
ou como as pinturas antigas do império, aqueles generais
sobre seus alazões e fardas coloridas]
e ralhando comigo e com todos por não mais o deixarmos em paz

Súbito mudava a tez contraída e preocupada num largo sorriso
--sorriso de velhinho quando é bom --

e distribuía mais flores brancas, como aquele monte de flores
que adornava seu caixão no dia do enterro