Anarquista

O homem do sindicato falava do alto do caminhão
manejava seu megafone com calor e eloquência
falando de um Estado pai-de-todos
como o homem da batina, no púlpito
aclamando a Deus, pai-de-todos
O homem dos dinheiros, por sua vez
mais cerebral e sagaz que ambos
celebrava um outro pai-de-todos
em contratos de sangue
e falava na sua cátedra de vidro
(sorrateira e silenciosamente)
respingando em todo mundo com seu discurso pegajoso

Nutria enorme respeito  pelo homem dos sindicatos
Tinha muitas reservas quanto ao homem da batina
Nascera com total desprezo pelo homem dos dinheiros

O que vicejava nele buscava outras falas
e não queria , ou antes, não sentia que as verdades
daqueles homens fossem exatamente as suas
--nenhum dos três

Achava ingênua a história de que as coletividades
utopizadas no Leviatã moderno
pudessem trazer a qualquer indivíduo algo de valor maior em si
algo que um alguém, em algum momento
não tivesse tentado cavar primeiro só com sua coragem
no meio desse mundo ermo e duro

Não se convencia de que um mundo miserável
tantas vezes naufragando em sofrimento
fosse boa razão para acreditar em outro além
tão perfeitinho, tão imutável, apenas para os bons
uma fala redentora de cordeiros

E foi, por fim, virando as costas decididamente
para o homem dos cifrões
que resolveu tocar sua vida, ainda bem cedo
antes que a pior das três razões
lhe tomasse a dianteira

Era preciso mais
precisava transcender
essas experiências
e sua materialidade grosseira

Tinha que relegar algo do humano
para tornar-se mais humano
acalentar silêncios para saber a voz
aumentar a audácia para alimentar palavras

em suma


                             precisava ser poeta

o arauto de uma nova ordem

precisava anunciar o  novo corpo

insubmisso

       selvagem

                eloquente


um corpo sujeito a vomitar máquinas
repudiar tictacs em espírito
retribuir o gozo, absorver carinhos
tropeçar em tênues desatinos

precisava anunciar

                           um  corpo anárquico