Argamassa

Uma tarde qualquer de inverno
Pessoas embaratadas
Tique-taque  de metrópole
O som ensurdecedor do trânsito
Locutores ao microfone, pastores de rua
sobre seus caixotes de maçã
Os vendedores, a frequência
tornada homogênea
Um único som condensado
Orquestra sem solista
De uma hora pra outra percebo
que o movimento desordenado do mundo
é chato pra caralho fora dos livros
Em algum lugar fora das páginas
eu me perdi
Daí, sinto que me soltaram súbito
no meio desse concreto todo
Um ser assim, feito de papel, garatujas
e inconsequências
dissolvendo-se na chuva de gente
O homem na multidão
E de repente, contra toda sofismação
do verbo
o sol da tarde, bruto
(esse objeto que quase
sempre se oferece quando
eu não estou lá pra ver)
vai ralando nas quinas dos
prédios mais altos
da metade pra cima
Alaranja tudo com a língua
e tudo aqui neste Centro de cidade
cinza, caótico e detestável
vira poesia
Vou com celular na mão
(Glauberiano indefectível)
olhando pro alto
Arriscando ser atropelado
Vou captando mais ou menos
parte dessa cena entre as faixas
de pedestres indiferentes
Gosto especialmente
dos ângulos incongruentes
onde as quinas de um vigésimo andar
sombreiam o décimo mais próximo
Giro a câmera
para a ponta morta do cais
onde cavuca uma luz redobrada nas lápides
laterais dos navios, meio enferrujadas
com aqueles nomes gigantes e pomposos
cujo significado tantas vezes me escapa
-- toneladas de ferro flutuante sendo
abastecidas incessantemente --
Já disse antes, que há
metafísica demais nesse sol da tarde
algo que não existe
no sol da manhã
--A não ser quando é manhãzinha ainda
bem madrugada, onde só tem
passarinho, neblina e grama molhada--
e quase ninguém humano pra ver