O homem que queria ser letra
De tudo que eu um dia quis ser na vida, de tudo quanto é
vocação, tendência, destino ou moda, ser gente é o que mais me entedia. Por
isso, enjoado de ser gente, enjoado da humanidade e de suas possibilidades
mesquinhas, um dia decidi ser letra. Mas não queria ser letra comum, igual,
repetida ou banal. Pra eu me tornar letra tinha que ser assim, Letra mesmo, com
inicial maiúscula, espírito e forma, letra comprida, continuada, com sentido,
abstração e uma imprevisível conexão do tipo que não faz parágrafo para
mudar meus assuntos à medida em que evoluo. Letra do tipo em que não faz ponto
pra respirar entre uma montanha e outra, do tipo que cria títulos que podem ou
não ser lidos por pessoas ou deslidos por não-pessoas, reinventados por
crianças esses eternos criadores (o que importa?) Na missão-nova de ser letra
não quis ser mais uma igual, ainda que exemplos belos não me faltassem, ainda
que não faltasse também admiração por eles, os criadores absolutos de palavras
que salvam a vida de ser menos vida. Faltava-me mesmo era ousadia para
copiá-los ou tenacidade para não ser igual. Na falta disso, o orgulho dominante insistiu
na originalidade de tentar ser outro com voz própria no meio da multidão (Fazer
o quê? A velha ilusão da alteridade). Na busca de ser cada vez mais letra,
arvorei-me em cada vez mais textos, poesia, conto, crônica, teatro, comédia,
romance, falas usurpadoras ou consonantes, filosofias narcóticas, eloquentes ou
insones, dinâmicas ou agarradas ao rés da terra, o que eu queria mesmo era
dissolver-me em estrofes não complementares, díspares, heterogêneas e
incomunicáveis. Sorver no líquor o patinar da vida. Porque ser gente, além de
ser chato, é o exercício banal da mediocridade e do excesso de limitações. Não
ter garras e presas é trágico, não ter escamas e não poder viver solto no mar é
cruel, e finalmente não ter asas não é algo que possa ser jamais perdoado, não
é algo que possa ser admitido ou ao menos imaginado. O
espássaro-superior-do-ar, onde o vento faz morada, alcançado apenas pelas aves
e besouros ousados, é o único lugar que valeria a pena ser habitado. Não sendo
bicho de asas, jamais me contentaria em estar tão próximo das minhocas, aqui
neste lodaçal. Imaginar-me flutuando sobre o chão foi o que fiz a maior parte
da minha vida. (Mas isso tudo foi antes de eu querer me tornar letra). Agora
que sou letra, agora que sou líquido e fluido, e meus braços e pernas se
insinuam em qualquer passagem, eu me derramo por zilhões de páginas em branco,
viajo por todo lado sem precisar carona, desmaterializo-me a qualquer tempo sem
ordem ou máquina, surjo em qualquer lugar e posso testemunhar qualquer coisa que
exista nisso a que todos chamam planeta, em qualquer de suas épocas ou lugar.
Do tédio de ser gente e andar preso à minha roda de sísifo inafastável, fiz um
estilingue metafísico a lançar humanos e a mim mesmo em outra dimensão. Provo,
agora, do mal-estalado gosto ácido e doce do tempo sem ter um corpo sólido e
morrendo de felicidade por isso, e sem necessariamente ter que sentir nada
quando eu não quiser. Agora sou letra, sou texto, sou poemas e cartas de amor.
Sou notícias de jornal, boas ou ruins, sou redação e provas de colégio de quem
está começando a escrever, sou o be-a-bá do mundo com todos os seus defeitos e
qualidades. Sou filosofias de compreensão ou inaceitação da vida e não preciso
razões. Só não sou relatório, estatísticas nem contas porque tornar-se letra é,
voluntaria e decididamente um ato de rebeldia contra qualquer número. Toda
letra é, por definição, um "não-número" e assim deve ser , para
glória das civilizações que nunca existiram mas que como diria Jorge, o
argentino, ainda guardam segredos relevantes. A ciência de ter uma alma e se
tornar letra é exercício de disciplina e método praticado como a arte do
samurai por toda uma vida, e não admite falhas. Ser número é opção de vida a
excluir-se automatica e definitivamente da possibilidade incomensurável e
rendentora de ser letra. Não há perdão nesse campo, e todos os insurgentes
serão decapitados sumariamente. Suas vírgulas serão eliminadas e seu ponto
final também será acrescentado imediatamente, em qualquer período em que
estejam se desenvolvendo , e aos que têm o azar de não serem decapitados, serão
deportados em definitivo para as tabelas, máquinas de calcular e extratos
bancários da vida sem volta. Estamparão anúncios de compra e venda, promoções,
explorações do homem sobre o homem, do homem destruindo a natureza por ganância
financeira e além de tudo, estamparão ações de desapropriação de lares onde há
famílias inteiras morando, declarações fiscais de bancarrotas, pescoços
amarrados em corda e quedas livres de enormes precipícios instalados nas vinte
e quatro horas diárias ininterruptas em que não hiberna o sistema. Sentindo-me
muito mais forte após estabelecer o corolário e os axiomas dessa importante
distinção, percebo que enquanto me aumento na arte vital de me tornar cada vez
mais letra, e assim meus parágrafos crescem, minhas rimas melhoram e os títulos
(esse malditos!!...) finalmente ganham mais sentido no conteúdo do meu texto
corporal, algo estranho começa a atacar meus períodos, uma praga vinda não sei
de onde. Das frases e estrofes que me alimentam a alma a cada página, sinto
cair ora uma rima, ora um ponto, e tantas vezes as vírgulas se tornam mais
apagadas, as conjunções se estranham com as frases e de repente sou tomado de
um espanto inadmissível para a perfeição de qualquer matéria que um dia tenha
se tornado sonho ou amargo pesadelo: percebo, para meu desgosto, surpresa e
desespero que depois de tanto tempo afinando-me no lavor de tornar-me letra, e
constando como seria de bom tom em todos meus registros os sucessos ou fracassos
esporádicos do meu empreendimento surreal também condicionado pela vida, (esses
absurdos pretensiosos e hilários que redescrevo e que me fazem tão bem), eles
começam, radicalmente contra a minha melhor vontade, a acertar estilhaços em
algum lugar na cabeça dos humanos cujos corpos eu fiquei tão feliz em espalhar
pelo caminho. Penso comigo mesmo, em tom repreensivo: devia ter destruído as
cabeças, claro que sim! Nessa hipótese, seus corpos inanimados não reviveriam
jamais. Eu sabia mas fingi que não, por mera preguiça. Agora, tarde, fecho os
olhos e tento voltar no tempo para ver qual o importante e fatídico erro que eu
poderia ter cometido desde que iniciado para minha enorme felicidade o momento
em que decidi finalmente me transformar em letra, e não consigo simplesmente
ver quando foi. Falando em algum lugar sobre crianças, tornei-me também infante
brincando com os resultados e armando meus personagens como bonecos a viver
histórias, e não apenas satisfeito com isso, insuflei vida sobre os bonecos, pensamentos,
insatisfações, riso e desaforo como toda criança. Rabiscando pensamentos
impunes sobre o amor, tornei-me paixão, amei e impunemente fui amado (só agora
sei), variei meus temperamentos, tendências e fortes emoções entre as
fases da lua ou entre as horas que compõem o espaço assustadoramente rápido
entre a noite e o dia. Lançando meus apontamentos intimoratos sobre a velhice,
senti o cansaço sobre minhas pernas, o prazer da dor física a habitar meu corpo
inteiro, a pulsação eclipsada de flertar com a morte todas as noites ao beijar
o travesseiro e vivi as rugas precoces de um momento futuro. Fiquei mais sábio
e mais calado quando velho, mesmo isso (as duas coisas: sabedoria e silêncio)
sendo constatações contra a minha natureza Oswaldianamente antropofágica,
verborrágica. Sendo homem, jovem e decidido também dividi meus versos entre
ódio e incompreensão, fui mais fundo no sentido humano de existir sem ter uma
razão, e espraiando como o sol a generosidade de dividir meus raios e meu calor
com as plantas e bichos, entendi por fim a última arte e talvez a mais difícil:
a virtude do ser-mulher e do ser-mãe, quando vi meus textos darem à luz novas
formas de vida, novas possibilidades originais e intocadas de sentir o mundo de
revés por diversos olhares inauditos. A humanidade insólita que eu havia
cuspido com volúpia agora retornava a mim com tanta violência que tive que
virar o rosto e me reportar imediatamente aos outros seres ignóbeis com quem
antes convivia, e de que há muito tempo não ouvia mais falar. Eu os via
novamente se alimentando e se transformando de alguma forma em partes de minhas
partes que agora eram sorvidas com sofreguidão por suas almas famintas como a
minha antes por conhecimento, por aventuras, por um sentido enfim, ainda que
miserável para suas vidas. Esses seres rastejantes em busca de viver
tornaram-se também letras, e por meio delas, viviam o mesmo fenômeno que
aconteceu comigo, apenas com uma diferença momentânea de "status".
Enquanto eu saía do processo ao final da jornada, desfazendo-me de verbo em
carne, eles faziam o caminho contrário e início da aventura, transformando-se
de ossos em histórias. O fato que eu não conseguia mais controlar e somente
agora começava a entender, para minha perplexidade, era que a minha humanidade
que se perdera de mim agora retornava com força maior depois da transmutação
dos elementos por essa experiência de pura alquimia. Em algum lugar dessa
trajetória tão querida, insidiosamente meu texto, ou fagulhas luminosas dele,
contra minha vontade espargiram-se para fora do seu invólucro e foram
contaminando aqui e ali alguns humanos que restavam à beira do caminho.
Distraído com minha nova vida, e tornando-me letra a cada dia mais um pouco,
não pude ver quando é que esses humanos agora contaminados por partes minhas
que estavam a meio metabolismo entre carne e sonhos, entre gente e letras,
agora também tornavam-se mais letra do que gente, enquanto comigo era o
contrário que ocorria. Depois de tantas eras em segredo, apurando em silêncio
como a arte dos cogumelos em florescer sem nenhuma luz, pude descobrir para meu
terror que as partes que deixei para trás, consolidadas como as melhores letras
que eu poderia ter produzido, agora tornavam-se também gente, e partes do meu
próprio corpo que há poucos segundos eram meus amados paragrafórios, minhas
alinhavadas histórias, minhas respirações virgulatórias e meu sono
pontualístico, agora se transformavam de novo num corpo, e esse corpo tinha
gosto, cheiro, volume e sentia dor quando eu me beliscava novamente. Raios! Lendo
meus textos, lendo meu corpo palavratório, humanos tornaram-se texto como eu, e
eu, que prezava tanto em ser texto, tornei-me mais gente no processo. No
caminho de retornar agora a ser gente, percebo com angústia e contra minha
vontade que meu maior desejo fora apenas uma ilusória cápsula lisérgica escrita
com a melhor das intenções. Eu também havia provado do verde absintho complexo
de não ter razão e sentia pelos poros como a vida também havia me contaminado
desde o início por vias tortas, apesar de minha primeira avaliação ter me dito
exatamente o contrário. Afirmava, quando pensava negar o impulso vital de
viver. Materializava, em comunhão com esses pares perdidos de humanóides,
quando pensava dissolver. Eu também, afinal, no remoinho da grande revelação,
descobrira que era fruto de ter lido antes e de ter experienciado primeiro do
que a vil casta desprezível da mortalidade que eu não levava a sério toda a
riqueza daqueles alfarrábios e pergaminhos que o tempo felizmente ainda não
levara. Desfrutara princesas, construíra castelos, lutara na Gália com os
exércitos de César, navegara com todos os piratas dos sete mares e dormira com
vento e cinzas sem cobertor nas bordas do Vesúvio fumegante por mais de uma
vez, relegado ao ácido sereno. E apesar de tudo isso, eu era também um reles
mortal como tantos outros que até então eu gostaria de ver pelo avesso, apenas
com as vísceras penduradas no meu varal. As vísceras no varal penduradas sempre
foram na verdade as minhas e havia sem querer me tornado mais humano
do que os homens por ter comido um pedaço da humanidade de alguém que veio
antes de mim e plantou seu veneno nos meus olhos e nos meus ouvidos desde tenra
criança, quando ainda não podia ler nem escolher mas já ouvia, sentia e
queria saber de tudo. Compreendia histórias. Ver a beleza e não tocá-la, sentir
seu perfume e não pegá-la para si, contemplar suas lânguidas curvas e seu
temperamento selvagem, chegar perto o rosto ao espaço mínimo de um beijo e
recusar no último momento, no instante exato por não querer ser seu dono, não
desejar mais ter a sua posse, porque agora eu sabia. Sentir o calor frio da
chuva no rosto quente escorrendo como as lágrimas do acidente feliz de ter
nascido e atestar a condição universal e essencial mais amarga para o humano,
contemplar o que não pode ter. Saber da beleza e não ter que pegar nas mãos.
Atitude que no primeiro momento simula fraqueza, mas representa na verdade uma
imensa força que permite a vida, porque vem de um convencimento superior e
difícil que pressupõe a idéia perfeita de que a beleza só existe enquanto não é
tomada, não é materializada. Como presente de Zeus, evanesce no próprio ar se
for materializada para minhas mãos ignóbeis. Mas os gregos estavam certos, e
Sileno estava errado, preso há muito tempo sem vinho na sua floresta macabra. A
falta de vinho, como sempre ocorre, prejudicou seu discernimento e destruiu seu
humor. Portanto, a máxima de entender a condição humana como "não nascer,
ou uma vez nascido , morrer bem depressa" torna-se inadvertidamente,
alçar-se à altura de perceber o que há de belo no terror de estar vivo, e uma
vez eleito para ter essa visão privilegiada sobre a verdadeira teia invisível
que tece o tecido da vida, saber que não possuir essa beleza mas saber que ela
existe é o maior de todos os dons. A vida para me dar uma lição, armadilhou-me
mais uma vez em morte, tampou meus olhos com a mais escura venda para que enfim
eu pudesse enxergar a luz: Na metamorfose insólita de minhas palavras vazarem
sem minha ordem e conhecimento para o mundo , derramando suas dores e alegrias
sobre a terra e deixando assim meu mundo conhecido textual palavrante para
decididamente invadir a vida, tocando aqui e ali o que tinha restado do
conceito incomum de pessoas, a vida me forçou novamente a ser gente,
decididamente contra a mais forte das minhas vontades, usando meu próprio texto
como remédio para todos os meus próprios venenos. Perdendo-me aos poucos no
processo de me espalhar veneno-contra-pessoas, agora inadvertidamente me
reencontro nelas porque carrego humanidades partilhadas em minhas costas no
retorno para minha eterna casa da palavra. Amargamente, contraditoriamente,
desesperadamente, assustadoramente, humanizei-me e humanizo-me inadvertidamente
no tempo presente, novamente deixando de ser letra enquanto o contato com o
mundo se estabelece no terror de uma certeza pelas minhas próprias palavras
traiçoeiras. Tento desfazer-me agora, novamente, do que me retornou de
humanidade, mas vejo que é sem sucesso, porque ao passo que me esforço cada vez
mais a cada segundo pulsante de vida no afã de deixar de ser esse mísero corpo
e me tornar de novo metafísicamente letra, colaboro cada vez mais para que o
processo contrário se instaure, e meus pés são cimentados no chão das gentes
junto com mais outros que de uma forma ou de outra nutrem o mesmo propósito,
mesmo que nunca venham a saber.
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Publ in "Manga Verde", (contos) - Edital Secult/2015/Ed Cousa 2016