Leituras 2019 (parte 2)
Trilogia "Cenas da vida na província"
- Infância
- Juventude
- Verão
(J.M. Coetzee, Cia das Letras)
A coragem e a eterna dinâmica realidade x autoficção das autobiografias. Os finos limites. O que somos para nós mesmos, que possa não ter passado pelos outros e que de alguma forma respire
sem ter sido inventado, remendado, surgido entre escombros, enfim? O que somos, coletiva ou individualmente, que não tenha passado já por uma "releitura" de uma certa exterioridade, a ponto de se confrontar mesmo o que é "o real", e o que é "o imaginário", na efetividade da arte. A beleza de uma certa universalidade da arte, embora possa ter nascido nos rincões do planeta, um quadro, uma
escultura, um texto que expressa uma pulsão surgida pontualmente, mas de forma inevitável de alguma forma narra por tabela estruturas tão semelhantes à nossa própria história embora o autor se enverede cada vez mais nas profundidades de sua própria existência?
Fantástica trilogia desse grande autor ainda pouco conhecido por aqui. Coetzee se estende por
03 volumes (e poderia haver mais, se quisesse, porque a sensação é de que o que não
faltaria eram elementos para a continuação) uma história de vida que, ao mesmo tempo tão
comum, o garoto do interior que se muda para uma metrópole para aprimorar os estudos, e
vai ganhando e perdendo no caminho, como é da vida. Nem sempre é a previsibilidade do
roteiro tantas vezes cinzento de uma vida humana o que lhe dá seu calor, seu tempero. É
a forma como isso acontece, por sua subjetividade de evento para o vivido de uma vida singular,
e no caso dessa história virar livro, é também a intensidade capaz de poder ser legada pelo escritor para os futuros leitores, a possibilidade única disso ser narrado dessa forma em especial, enquanto experiência passível de ser vivida por outra, é isso o que realmente faz a diferença.
O início de tudo, um descendente de colonos europeus numa terra estranha , uma das
últimas colônias da era imperialista secular ainda, e vergonhosamente, sob total domínio dos invasores, como é que alguém , ciente do grande erro, e ao mesmo tempo fazendo parte em algum momento dessa história -- do lado errado -- toma consciência do problema, como se posicionar contra esse grande erro, como não ser cooptado por valores racistas e pela violência legitimadora intensa ao redor, desde criança? A capacidade do pensamento, da arte, do questionamento existencial que vai furando a pele pra chegar aos ossos e daí revoltar-se contra a própria condição, não apenas de si, mas de uma sociedade que vingou por sangue e dor contínuas de negros numa terra distante?
O início de tudo, o volume "Infância", (uma das mais belas autobiografias que já li) trata disso, a fazenda, o descampado, a força da natureza bruta de um país estranho tão visitado pelas secas, cortado por veios magníficos de pedras preciosas e rodeado pelo violento mar inamistoso. A herança de valores do apartheid, regra imposta a ferro e fogo para manter um determinado tipo de ordem favorável ao dominador. A descoberta do isolamento do europeu diante do negro, mesmo estando a alguns metros de suas residências, mesmo participando , suas vidas, com tamanha proximidade no dia-a-dia, mesmo havendo tamanha curiosidade do menino para entender os jogos e brincadeiras e as razões de ser dos seus amigos clandestinos (porque proibidos) negros ?
"Juventude", na sequência, destacado aluno na escola, apontando-se o caminho de vida que implica mudança drástica de país e costumes, saindo da África do Sul para a antiga matriz do mundo moderno ocidental, Londres, os conflitos, a sensação curiosa de , agora ser um pária numa terra já dominada por forças maiores. AS lembranças de casa, as descobertas e altos e baixos do amor, os conflitos de área e vocação, formado e torneado nas exatas, a paixão súbita pelas humanidades, a instilação do gosto pela literatura, e a capacidade do texto de ser tudo isso de desabafo, comunhão silenciosa com a humanidade, afirmação de um ponto divergente de vista com relação a tantas mazelas que o mundo continuamente impõe.
A finalização de um ciclo, em "Verão", onde Coetzee dá à biografia não apenas um caráter especulativo-literário, mas prospecta fundo em busca do homem , antes do escritor, no que potencialmente pode ter deixado para trás na constituição de sua história. O retorno à África do Sul, depois de formado, as incertezas da vida de escritor como nova carreira iminente, ao abandonar os estudos e empregos promissores nas exatas e em grandes companhias do incipiente ramo dos computadores, as dores e os amores da volta pra casa. A estética, a busca do prazer, a corporalidade preencheriam os espaços do mundo? A ansiedade da resposta, a vivência em uma sociedade explodindo em tensão no auge do apartheid, a reiteração da posição firme , humanista, anti-racial, a busca de uma voz que possa, sem deixar de lado suas impressões particulares sobre as sujas políticas do mundo, ser um potente vetor contra as atrocidades testemunhadas na porta de casa, um país que se atrasa enquanto permanece eternamente essa colônia de exploração rica e ao mesmo tempo miserável, enquanto o resto do mundo parece fazer um discurso inteiramente voltado em outra direção.
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A descoberta feliz de leitor, de um autor como este, Coetzee, já apontando, ainda num momento de total anonimato, em uma história fortemente autobiográfica, os rumos futuros do escritor com sua voz única, como testemunha e ao mesmo tempo combatente contra os valores indefensáveis de um mundo em ruínas. Não usarei o termo sangrento "civilização" de propósito, pelas implicações históricas e ideológicas infinitas que incidem sobre ele, a suspeita que o termo evoca com razão e a quantidade de corpos que já arrastou pelo caminho, desde o início da nossa história. Contudo, a história de vida do autor é uma aposta no sentido maior de uma certa humanidade contra a barbárie.