Nunca fomos tão jovens

Resultado de imagem para maçã vermelha, desejo

Ela, R., a pele cor de giz, os lábios sempre marcados por
aquele batom vermelho-sangue, o rosto de maçã, os olhos matadores
de se perder uma vida e os cabelos pretos e lisos nos ombros. 
O gênio do cão, para arrematar o conjunto: a frieza capaz de matar
 de frio um esquimó, quando queria
ou o calor em forma de gente, nos dias bons,
alternando-se tudo isso sob a pele da mesma criatura como as várias luas no céu.
Isso, porque ainda não chegara aos 16, mas sua autoconfiança, o corpo já
plenamente formado e a sensação de estar tão à vontade no mundo como 
no quintal de casa, davam a impressão de que tinha mais idade.
Ele, K., já com 17, alto e topetudo, mais magro do que propriamente
forte, andar rápido e vacilante, a carteira quase sempre vazia e a expressão
facial de um ar perdido, aliada a uma inteligência crítica e desafiadora
surgida precocemente, não perdia a hora mais esperada do dia. A hora em
que o coração pulava na garganta, enquanto se desenrolavam aqueles dez
ou quinze minutos de agonia sofredora e radiante, ao redor de uma certa
janela da pequena cidade do interior. A hora em que R. chegava do colégio,
tomava um banho e, depois do lanche, ficava um tempinho de bobeira na
varanda de casa, secando seus cabelos ao vento, enquanto
observava o movimento da rua, colocando a conversa em dia com algumas
amigas e os vizinhos. Estudavam em escolas diferentes e em anos diferentes;
então K. precisou obter informações confidenciais, anteriormente, de
forma a assegurar-se da sua estratégia de abordagem.

A ocasião ideal sempre era sonhada e premeditada por K., desde o dia
anterior, depois da última passada pelo local estratégico. Seu plano de conquista
era infalível: aos poucos, ia se fazendo notar, mostrando que era inteligente
e boa praça, aparecendo no campo de visão da garota e deixando
que sua propagada inteligência e fama de ótimo estudante talvez marcasse
alguns pontos extras no placar da vida. Bom, mas isso era, digamos, o plano
A, e por alguma contingência, K. não tinha ainda noção do quão necessário,
nesta vida, era possuir algum tipo de plano B.

Àquelas alturas, assaltado pela mais forte paixão de adolescente, a inexperiência
e a falta de tato para lidar com os recém-descobertos caminhos
do coração, colocavam muitas dificuldades na realização do que, à primeira
vista, parecia tão simples. Portanto, é necessário confessar que, apesar de
tanta estratégia e do desesperado interesse verdadeiro voltado para o objeto
de seus melhores sentimentos, a realização desta peça de teatro deixava
a desejar quando, no primeiro ato, a fala sumia na voz do protagonista.
Portanto, suas agruras começavam, para o ator apaixonado, bem antes
da “passada” diária em frente àquele que se tornara o palco principal de
sua vida no último ano. 

Eu diria, para ser sincero, mas sem querer ser dedo- duro, 
que as agonias teriam começado bem na noite anterior, nas entrevistas
mentais com o confidente travesseiro. Como tratava-se de assunto
de Estado, obviamente que era sigiloso e não poderia ser compartilhado
ou obtido alguma cumplicidade de quem quer que fosse. Tanto pior: na solidão,
seu amor crescia cada vez mais e sufocava-o antes de poder vir ao
mundo. Assaltavam-no tormentos e dúvidas acerca de seu objetivo e da relativa
capacidade de alcançá-lo. “Será este assunto interessante? Será que
eu estou bem? Será que sou bonito, sou forte ou inteligente o bastante?
Será que não vou gaguejar? E o principal: será que não estarei sendo óbvio
demais e, dessa forma, declarado finalmente meu interesse, eu me tornarei
desprezível e descartável?”.

Sem querer abusar da ironia, digamos que todas essas questões geralmente
eram sintetizadas em uma ou duas frases desastrosas, de passagem
pelo palco: “Ei, tudo bem? Dia quente hoje, não?”. Ou talvez ainda pior,
como se fosse possível: “Como vai sua mãe, Dona F.? Como vai seu pai, Senhor
J.?”. Nessas ocasiões trágicas, geralmente essas sentenças de morte
eram proferidas assim, de passagem, em marcha reta e batida, com direito
a uma virada de cabeça à esquerda, num curto espaço de cinco ou seis
metros, que eram exatamente o tamanho da parte da frente da varanda da
casa de R., onde ela ficava na cadeira ou na rede, nos finais de tarde, espreguiçando-
se como uma onça e alisando suas madeixas  com seus dedos brancos e
aquelas  unhas exoticamente pintadas.

E os resultados cotidianos no campo de batalha não eram exatamente animadores:
“Meu Deus! Hoje foi o pior dia. Como eu sou idiota, e ainda gaguejei para
pronunciar uma simples frase. E, como se não bastasse, ainda tropecei naquela
maldita pedra no caminho no final da minha fala? Nem Drummond me ajudaria
numa hora dessas! Mas pelo  menos foi bom por um lado, que pude vê-la rindo 
e mostrando aquele sorriso, meu Deus, aquele sorriso.

Seguia em suas angústias, teorizando à máxima potência o amor ainda não tocado.
"Como posso ser interessante, sendo tão banal e sem ter qualquer originalidade?
A moto está trancada desde o último tombo, meu pai ainda não me deixa
dirigir o bendito carro, e bicicletas, que eu saiba, nunca derrubaram corações. 
Além de tudo, acho que sou  magro e não tenho a menor graça, melhor dar adeus à
vida de conquista. A única vantagem comparativa é que sou o melhor aluno
da minha classe. Mas desde quando essas meninas se ligam em primeiros
alunos de classe? Nem nos contos de fadas” - Tais vaticínios eram proferidos
mentalmente (às vezes, mesmo, verbalmente, em altos brados, sempre
na ausência de terceiros, é claro), no rigor das autoacusações de uma mente
insegura e excessivamente crítica, uma mente onde a linguagem com o
universo parecia se aprimorar a cada dia, desde que não tivesse gente no meio.
Quanto tinha gente, dificultava. Mas, para não ser tão cruel com o juiz no
proferimento das sentenças, digamos que, se fôssemos apurar uma média,
essas poderiam ser, dependendo do contexto, verdades quase absolutas a
ser trasladadas para uma vida adulta e contemporânea. A insegurança como
material de vida. O questionamento contínuo do mundo ao redor, levado
aos paradoxos.

A contar em tempo real da vida adulta, digamos que se passou quase um
ano nessa dramática e insolúvel situação. A contar em vida de coração adolescente
apaixonado, passaram-se muitas eras, contudo, e o tormento nunca diminuía.
Não diminuiu, com certeza, quando R. começou a namorar, depois de uns
três meses, o filho do dono da venda, nem diminuiu quando um ano depois, R.
mudou-se para outra cidade, longe, no descampado desse mundo sem dono.

Formado com louvor na escola onde estudava há três anos, K. retornava
uma tarde dessas para casa, quando parou para conversar com a antiga vizinha de
R., a sua melhor amiga e confidente, W. Estranho quando a interlocutora era
mulher, mas não objeto da paixão. As conversas fluíam normais, espirituosas,
ricas e descontraídas. Que raio de maldição era espargida sobre as conversas
de amor que a tornavam tão pesadas, difíceis, travadas e muito mais
ricas em não-dizeres do que palavras significantes? W. falava com saudades
da amiga, disse que ela estava indo bem na faculdade que ora iniciava, no
curso de Direito, e puxou K. para um canto, para lhe confidenciar um segredo.

Não criemos ilusões a essas alturas: a vida é muito mais dura, trágica, injusta, 
e mais repleta de confusões, desaventuras e não realizações do que as pessoas
gostariam de admitir na real. Se a sinceridade desse o tom, perceberíamos 
muito mais os significados ausentes em face dos seus objetivos 
e uma infinita rede de vãs justificativas do que o contrário. 
Nossa salvação, talvez a única possível, é que de vez em
quando, por uma deliciosa inexatidão do destino, conjugada com os sabores
do acaso, enquanto o espírito maligno dorme por uns instantes, o vivente se
vinga de alguma forma.  W. confessou, em todas as letras, que segundo 
confidência da amiga R., sua grande paixão na verdade sempre fora mesmo K. 
Ela se preparava todos os dias, depois das aulas, chegava rápido em casa,
tomava seu banho da tarde, depois perfumava-se, pintava suas unhas
e ficava esperando-o passar, na varanda, voltando das aulas. Gostava do 
seu embaraço todo, da sua mudança de cor quando falava com ela
adorava a tentativa em desespero de buscar assunto, ela sabia do esforço dele
em querer ser alguém a seus olhos, e se encantava com a poesia da coisa toda. 
Mas, depois de um tempo, aquilo tudo foi esfriando, ela era do signo ansioso 
que gostava de ação , portanto  julgando que não havia um  interesse maior 
do seu pretendente, aceitou o o pedido de namoro do filho do dono da venda,
que vivia rodeando a cena há tempos.

Digamos que uma pessoa mais sensata, diante da notícia inesperada, e depois
desse tempo todo, poderia , para ser decente, ter  ao menos pulado do décimo andar 
de um prédio, ou ao menos tentado novo contato com sua antiga paixão.

Mas quanto a K., que nada! Nosso amigo ficou, por muito tempo depois,
andando com aquele sorriso besta estampado no rosto.






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Publ in "Manga Verde", Contos, Secult 2015 / Ed Cousa 2016