O Funeral


Resultado de imagem para enterro de passarinho

Caído na rua como um simples objeto sem vida, um pedaço de pau
ou de plástico, não sei. Mas havia algo de heresia e excessiva falta
de cerimônia naquilo tudo, na forma como um passarim expunha
seus esqueletos inanimados assim ao mundo. Aquele bicho morto merecia
algo mais que ser simplesmente esmagado pelas rodas dos carros e solas de
sapato anônimas. De vez em quando, ainda se submetia à provação de ser
farejado de perto por algum cão de rua, que, após uma ligeira constatação
olfativa, logo perdia o interesse e se varria de volta ao seu destino incerto.

Da varanda alta de casa, antes de sair pra escola, logo cedo eu via aquele
ser se desfazendo cada dia mais um pouco, e enquanto eu contemplava
no chão o formato de suas asas pretas e brancas aos poucos tornando-se o
cinzento terroso, ia percebendo a novidade da decomposição ir tomando
forma enquanto simultaneamente desconstruía-se o objeto mágico e voador
que a própria vida um dia tinha botado no alto do mais alto ar.

Não soube dizer qual foi a causa mortis. Era pássaro adulto, e só se vira
adulto, quando se é pássaro, se for muito esperto, se passar de primeira no
vestibular da vida. A natureza é cruel em sua sabedoria. Não havia marcas
de ferimento de pedra ou tiro de carabina de pressão, nem mesmo marca ou
traços de corda ou visgo preso nas pernas ou asa cortada. Morrera de doença-
dos-pássaros? Ou de velhice? Por que tudo que é vivo precisa morrer?

E por que tantas vezes quando se morre não há nenhum pré-requisito ou
justificativa válida para representar para quem ainda está vivo-em-volta a
razão da morte daquele ser amado? Então viver era isso, e um dia estamos
com asas, fortes e dominando o vento, e no outro somos arrebentados na
reles calçada ao sabor da chuva e do sol inclemente sobre nossos esqueletos,
esquecidos de há muito de alguma sombra de espírito que por alguma
razão ou possibilidade haveria de tê-los habitado um dia?

No início, era apenas um montinho de penas brilhosas, cabeça inerte,
língua de lado e garras tridimensionais com volume, cor e falta de vida.
No outro dia, depois de uma passada de carros, restara só uma plataforma
inerte, entre cores de vermelho-coágulo, ossos esbranquiçados e papéis de
rascunho reciclados, uma esmagada de chapas de ossos e resto de corpo
em nível horizontal. Daí logo chegaram as formigas para tomar posse.

Elas sempre chegam, não tem jeito. Saídas sabe-se lá de onde, surgiam devagarinho
e insistentemente por entre as frestas de granitos do calçamento,
colonizando o nível acima da superfície. Um dia de trabalhos formigueiros
e a autópsia havia começado: dava pra ver as estruturas musculares do
pescoço, a forte ligação entre as asas e os músculos peitorais, tudo muito
leve, compacto, mágico. Ossos ocos e finos, junções quase imperceptíveis
entre membros, penas em tamanhos e formatos exatos para garantir aerodinâmica
perfeita, leveza e impermeabilidade. Logo dava pra ver o sistema
digestivo também, pelo menos uma parte, antes de tudo se tornar
terra.

Durante a noite, quando não chovia, elas estabeleciam seu reinado,
criavam montinhos de terra fina em volta, como pequenas chaminés ou escotilhas.
Escondiam o corpo e drenavam o resto de sucos ainda presentes.
De dia, a passada reiterada de carros, caminhões e pessoas exterminava
formigas e suas esperanças novamente, numa paçoca indiscernível de objetos
em fuga. Enquanto isso, as cores se perdiam, desbotando devagar. O
corpo anônimo se desfazia cada vez mais, juntando-se aos entrelaços dos
paralelepípedos antigos do calçamento.

Em que momento na vida ou depois dela o ser deixa de ser o que é, deixa
de ser o que representa seu nome, e passa a se tornar apenas partículas,
aquilo que não se define? Contrariando toda física quântica, algumas
pessoas deixam de ser o que são para si mesmas e para os outros ainda
durante a vida, e dessa forma sequer existem, apenas representam o tempo
inteiro. Representam papéis, conscientes ou não, programados ainda na
tenra infância, ou apenas chutam pra frente uma bola sob seus pés, que
não se sabe de onde veio, não se sabe a quantas anda o jogo nem sequer o
placar a essas alturas. Jamais se libertam em mente ou espírito. Morre-se,
portanto, antes de se morrer? Um pássaro só é pássaro quando voa, e dessa
forma é o voar que os caracteriza pássaros, ou na verdade são mesmo o que
são, pássaros vivos ou mortos, e voar é apenas um ato que superflui, uma
espécie de bônus ou acessório dispensável, e dessa forma uma carcaça-pássaro
ainda é tão pássaro quanto outro esqueleto com plumas em pleno vôo?

Não sabia filosofia, mas já sabia a resposta pra essa pergunta, desde
muito cedo. Aquilo que estava ali podia ser qualquer outra coisa, levar
qualquer outro nome, designação científica ou literária, enfim, mas certamente
pássaro não era mais. Estava em outro nível de existência. Sim,
porque pássaros são o resumo de uma existência superior e não podem
nem devem nunca ser vilipendiados. Resolvido a terminar com essa falta
de cerimônia daquele-um, peguei com cuidado o resto de objeto-pássaro
enquanto era possível nomeá-lo por seus fragmentos e os depositei alguns
palmos abaixo da terra vermelha roxa do quintal. Um minuto de silêncio
ou mais. Liturgia do momento. Na dúvida sobre o status vivente de um pássaro
morto, ao menos sentia que um enterro decente poderia devolver-lhe
alguma subjetividade.

Silêncio na consciência calma. Às asas, o céu que lhe é de direito. Retornara
de alguma forma aquele animal ao seu céu de antes, seus azuis e seus
ventos quentes ascendentes. Sua mira particular de cima sobre o mundo,
seu cair feito raio sobre os insetos-aperitivos e o gostar muito de tudo isso.
Mas durou apenas uma semana. Depois disso, a imagem definitiva daquele
ser impregnou-se de uma vez na minha mente, e não tinha nada que fizesse
para conseguir esquecê-lo. Lá do fundo da terra do quintal sua essência me
chamava novamente e a curiosidade cada vez crescia mais. Já não dormia
direito, e uma obsessão me cutucava diariamente. Ressuscitara? Desintegrara-
se por completo? Extinguira-se na sua essência de criatura alada e
agora sua poeira de estrelas metabolizava-se rapidamente para retornar
ao grande ciclo perfeito de energia da vida na forma de flores, besouros,
camelos ou tigres?

Pá na mão, exumação de pássaros semi-recém-enterrados, porque
curiosidade é bicho que vai construindo morada. Cava-se com medo e admiração,
e em dois minutos o mau cheiro toma conta do lugar. Surpresa.
O que restara do passarim eram agora só um punhado de penas secas, ossos
limpos, parte do bico amarelo e uma expressão terrível cristalizada no
olhar vazado nas órbitas vazias fitando o nada. Aquela criatura me agradecia
toda a solenidade dispensada, ou afinal, me cobrava explicações pela
inusitada invasão sobre seu último território? No espaço de poucos dias, as
garras da terra vieram sorrateiramente por baixo reclamar o que é seu. Absorveram
quase por inteiro aquele pássaro, e o torvelinho de criaturas moles
e esbranquiçadas que agora se remexiam ao contato brusco com a luz
solar e o oxigênio da atmosfera expunha seus dedos e garras vivas em uma
outra estética, muito mais agressiva aos sentidos incrédulos. Surpreendi a
terra em seus afazeres sagrados.

Então não tinham me contado a história
toda. Entre o estar-vivo e o passar-além havia uma fase intermediária, tocada
pelas nuvens de criaturas inomináveis que garantiam a passagem de
um estado a outro, sem pedir recompensas. A Terra sabia tudo.
Estarrecido com a descoberta sobre o mundo, punido até o fundo da
alma pela ânsia do conhecimento desmedido e pelo excesso de curiosidade,
desinquietava-me agora novamente pela sensação recém-tocada de que
existia uma outra beleza, não mais presa aos grilhões dos juízos de estética.
Uma outra beleza silenciosa, que agora dava um sentido muito mais
profundo a tudo. Feio e bonito se entrelaçavam, então, em algum lugar no
universo, para que tudo encontrasse sua harmonia universal.
Depois de um tempo, enfim, consegui dormir melhor, porque entendi
que o último olhar do objeto-pássaro era mesmo de agradecimento.


-------------------

Publ in "Manga Verde", Contos, Secult 2015 / Ed Cousa 2016