Reine sobre mim
Cinco e meia da manhã, ruas escuras lastreadas apenas pelo fio das luzes
de âmbar da avenida principal. corre, aperta o passo, resfolega, não pode se
atrasar. sol ameaçando não nascer. formação ríspida em tropa, início dos
trabalhos. a mão direita levada à diagonal da fronte, em ângulo agudo de 45 graus.
fardas verdes, barulho de movimentos sincronizados. marcha lenta, marcha
rápida, marcha. olhar fixo na bandeira verdeamarela com os três dedos margeando
a pala do quepe. vai hasteando o pavilhão e segue o soldado encarando as vestes da sua pátria que
tremulam ao vento fino. “Sim Senhor!” , “Não Senhor”, “Um, dois, um
dois”. cantigas tristes na sequência com fuzil na mão, uma bala para cada sentimento
no cartucho, simulando uma alegria artificial pra espantar o frio da fria manhã
de julho neblinando.
Quando o cansaço apertava, o sem-sentido da coisa toda invadia sem aviso
com tamanha força a ponto de tontear qualquer razão. Vontade de largar tudo e
sair correndo, pagar de louco, vontade de cair de joelhos chorando no meio daquilo
tudo, em plena rua, no meio de outros cinquenta quase-homens de dezoito anos
vestidos de verde e simulando ser soldados. vontade de apertar o gatilho com
força, sem olhar pro lado, atirando pra cima, pra baixo, para qualquer direção
sem precisar explicação. se não caía, se não chorava, se fingia ser forte, era
porque tua lembrança me contaminava mais forte, mais ácida e mais densa do que
as névoas do mundo.
Enquanto eu vivendo com tamanho esforço me encontrava cada vez mais
longe, inauguraste em mim a tentativa
dissoluta de não mais fugir à vida. eu que pensava saber tudo, compunha-me nos
conhecidos frangalhos com meus cigarros, minha farda verde, o ceticismo latente
quanto à crença de “um dia ser alguém” e o desígnio obrigatório de passar as
manhãs marchando e atirando com fuzis em barrancos vazios para demonstrar amor
à pátria, mas foi apenas em ti que descobri meu território, aquilo pelo qual
valeria a pena viver e morrer. eu que pensava saber tudo, desde aquelas
brincadeiras de menino a partir de certa idade --mexe daqui, mexe de lá, testa,
retesta, pesquisa, acha buraco, descobre protuberância, vai de boca, vai de mão,
ensaia fluidos e descobre-se presença no mundo--, foi apenas em tua pele que descobri
o verdadeiro sabor das águas, em teu cheiro foi que aprendi a nadar, e nas tranças
inaugurais de teus cabelos é que me pendurei para sobreviver ao mundo-chão.
“Vem!” disseste. e eu aguardava o passar aterrorizante das horas
intermináveis, agonizando em suor, para ir até onde estavas, lá o fim do mundo.
“Lambe”, disseste, e eu lambia, sôfrego.
“Morde”, eu mordia, e aguardava o desenrolar de suas reações.
“Agora me abraça forte”, e eu
partia teus ossos com meus kamikazes, com a certeza de que não haveria amanhã.
No calmo parênteses do depois, eu pensava por fração de segundo em outro
homem não tão distante, outro lar abandonado, substituído por mim. inusitado
senhor da tua sede pela eternidade de uma noite, eu imaginava outro matrimônio equivocado,
frustrado pelas razões certas, outra casa levantada e mantida pelas razões erradas,
e eu aguardando teu retorno enquanto me devoravas com tua fome de vida, e tudo
isso sendo demais para meu coração assustado e ainda tão pequeno. vieste mesmo
assim, no susto-do sem-aviso e me dissuadiste de todo não com a boca úmida, o
gosto de chiclete de morango na saliva, a fala curta em ondas lascivas, a voz rouca
possuindo unicamente tua respiração como linguagem e o tecido do mundo cão feito
aragem em mim ao menos uma vez. não vi frutos, não espreitei futuros, mas pela
primeira vez me desvirginei do passado
para emprenhar o presente, e não apenas teu corpo me batizando naquele instante
ao acolher minha semente, mas tua memória que não me abandonaria jamais dali
por diante, e foi nesse aprendizado de ti que abracei minha vida porque antes
não sabia o que era ela ou se sequer existia. pouco adiantavam as ordens unidas
no pátio do quartel, pouco importava receber mandamentos sem sentido o dia inteiro
ou a gritaria hierárquica de verde oliva desbotado sobre minhas orelhas por todo um ano infindável que durava dez
vezes trezentos e sessenta e cinco dias. nada me atingia, minha pele endureceu,
meu peito resistia dando risadas, tornei-me invulnerável pela expectativa de
ti. acordava cedo e sorrindo na virada da noite perdida sobre as púrpuras alvoradas,
e o perfume das flores noturnas é que me mantinham vivo ao lembrar do cheiro do
teu pescoço suado em fragrâncias. que importavam aqueles negros coturnos lustrados
à exaustão, um fuzil frio oleado a tiracolo, horas de tiro-ao-alvo e muita perda
de tempo e munição por amor a uma pátria ausente, roubada de mim, roubada de
todos nós desde tão cedo. tudo naufragado no conceito errado de um país que
sobrevive aos trancos, tudo nublado para metaforizar o instinto de vida ao me
fazer sobreviver pelas noites em cachaças, cigarros, conversas vãs e muita
putaria fora de hora, mas tu me inauguraste como meu único território válido. com
teu grande coração inquieto e tuas coxas quentes, vi que a vida era mais.
Me desejavas forte, e forte me tornei para te acolher em meus braços, me
querias inteiro, e providenciei uma juntada inédita de todos os meus pedaços para
ser algo coeso à tua disposição, me querias alegre e aprendi de súbito a arte
que até então não me contaminara, me quis solícito e me tornei teu
escravo. o rosto ainda imberbe de menino,
inauguraste em mim uma nação. eu não morreria jamais por uma pátria usurpada em
que nunca acreditei, regrada por mercenários, mas por ti colonizaria planetas, não
mataria nem morreria por eles, mas por ti voaria mesmo sem asas até os confins
do universo, nadaria de costas entre os crepúsculos chamando-os de minha casa.
No depois de tudo disseste beija, e eu cumpria tuas ordens, disseste
ainda não e eu aprendi a apertar o laço
mais um pouco, disseste segura mais e eu estacaria por milênios aguardando
feliz o teu sim, posto que silenciaste no fim e eu enveredei sorrateiro pela
janela da tua alma por ao menos alguns segundos. nunca morreria pela pátria, repetia
comigo porque já sabia disso desde sempre, eu fugia mesmo instintivamente dessa
coisa estúpida em que os pequenos equivocados repetidamente se matam uns aos
outros em guerras compradas para garantir o conforto dos grandes, esses mesmos que
nunca se expõem, nunca dividem, nunca amam nada nem ninguém de verdade, exceto
seus tostões. eu não morreria pela pátria infectada por eles, mas viveria ou morreria
por ti. eu mataria por ti, sem piscar os
olhos duas vezes.
“Vais me ver a dançar”? Sem demoras eu lá estava, e sem qualquer pudor já
me apaixonava pelos teus pequenos pés em movimento e toda a mistura que tua
presença me evocava. os pés do japão,
olhos da Síria, corpo de odalisca, cabelos de Iemanjá. a pequena tatuagem de hibisco
sobre o pé direito, nunca vira uma mulher dançando descalço. conhecia o sexo
naquela idade, mas não a paixão, que me veio com o movimento leve de uma dança.
teus passos sobre o tablado, eu com ciúmes da madeira lisa, fria, confiante, a
te acolher por extensão quando rolavas de costas em suas livres evoluções. entendi
o segredo que os gregos velavam às vestais, os poderes incontidos do movimento.
depois de tudo, estúdio fechado, público embora, meia-luz e eu me esfregava feito
cão no cio naquele assoalho que embebera minutos antes teu suor, buscava teu
cheiro de tâmaras e desertos infiltrados pelas frestas do mundo
Deveres questionáveis, guardas intermináveis pelas perdidas noites, fuzil
bruto e oleado em mãos, monta-desmonta, monta-desmonta, um-dois, relógio de
ossos tremendo de frio pra proteger Deus-sabe-o-quê
que monstro habitava venenoso os fundos daquele maldito quartel. amor à pátria,
amor à pátria, amor à pátria, um-dois, um-dois, tic-tac de sangue e eu tentando
entender vinte e quatro horas por dia aonde é que morava essa abstração tamanha
que jamais me seduzia, aonde estaria a grandeza hipotética de pertencer a essa
nação quinhentista tão rica, mágica, gigante, não obstante gestada por
miseráveis para miseráveis, eu que por sobrevivência transformava toda
abstração e toda desilusão na minha única pátria conhecida: teus pelos, tua
púbis, teu sexo. a lembrança do teu gosto é que matava a minha sede durante as
altas ordens, sol a pino na cabeça, doze horas sem comer nem beber. ou quando preso
por insurgência na caserna, rotina de insubmissão em que inevitavelmente me acometiam
e me salvavam do suplício os prazeres solitários de ter você apenas para mim na
memória de minhas mãos.
Abandonas novamente teu homem por hoje, tu o abandonarias para sempre? a
pergunta que não se quer calar. a pergunta que não se deve fazer. eu não era
dos que poderiam fazer perguntas. menino moleque, sem rumo nessa vida. abandonas
teu homem apenas hoje, eu sei, porque te encantaste de mim, eu que tive medo de
saber e nem perguntei direito o que vias, mas teus olhos de pura magia me descobriram
no escuro do mundo. mais, me reinventaram para além do pouco que eu era, e o
acaso de um simples convite entornado destino bom e breve no esbarrão que me batizou,
marcando-te a ferro e brasa em minha alma, a bênção do teu sexo sobre minha boca,
tuas coxas no abraço rouco sobre meu corpo, o frêmito do teu coração enlouquecido
batendo cabeça nessa jaula inepta que planejaram para ti todos os entes
queridos, teus pais, teus tios, teus avós, esquecendo teus verdadeiros gemidos
e computando outro casamento de conveniência como na época dos antepassados.
Acuada por móveis, imóveis, carros, bichos, jóias, gente e quinquilharias, nada disso obrigou teus
cuidados, pois eras contra tudo e contra todos desde o início, nessa alma de
pura seda, colo e ventania, a senda bravia, sangue e brilho em olhos negros de
se perder uma vida. nada disso conteve teu verdadeiro espírito, pois no imo continuavas
a selvagem doce incontida, a coisa inominável
que campeava madrugadas insones. inauguraste em mim a vontade de ti, e através
dela a vontade de um novo mundo, um acreditar na vida pela primeira vez e imaginar
que viver podia ser bom. teu gozo me doou
um sentido para o mundo, a arte dos seus tendões em alongadas poses, a tez
suave da tua barriga quando minha língua áspera a traduzia, a maquiagem exagerada
dos dias de apresentação, a performance de uma constante danação tornada
encanto habitando em mim, a despedida de tudo que era antigo e que agora não morava
mais acima, ao lado, ao fora do mundo, mas dentro de nós, valorando todo
presente como único possível. eu já tinha idade, mas não tinha conhecimento e
nem de longe qualquer juízo. minhas
ingênuas experiências pretéritas foram reduzidas a nada depois de ti, sendo apenas
tudo um tipo de preparo e aguardo até que tu chegasses avassaladora e certeira
como uma flecha que mesmo atirada a esmo
não perde sua força.
“Um, dois”, “Um, dois”, marchando dia e noite sobre os tristes pátios do mundo,
as ruas soando nosso tarol, nossos talabares, nossos bumbos e fuzis
embarulhando as vias pra provar ao universo nossa triste existência marcial, a
imposição de uma ordem antinatural, porque vem de fora. “Um, dois”, “Um, dois”
“Sim senhor”, “Não, senhor”, e teu corpo sendo o único mestre que eu ainda
admitia nessa total alforria das coisas do mundo apenas para me libertar em ti.
suportaria tudo, torturas, bombas, guerrilhas, humilhações. servir à pátria cegamente
é abdicar de si. nunca aceitei, porque minha pátria estava apenas em ti. e abandonando
meu pálido e aniquilado ser para te ter, tornei-me um dínamo movido à mera
sugestão da tua luz rasando na estrada
em crepúsculo, uma expectativa angustiada pelos teus sonhos, uma existência
justificada pelos teus motivos, só assim é que passei a acreditar na vida.
porque aguardar de novo o toque de permissividade é o que me fez persistir. a
expectativa dos teus pelos eriçando como canavial atiçado pelo vento ao meu toque
de mão a única razão de me fazer sorrir. vivendo o roteiro aparente de tudo por
pacto e conformidade, mas sentindo ao fundo como única razão os motivos de tua
existência. e da forma como surgistes raio e clarão e chuva rara e generosa sobre
mim, abstraíste tuas falas sem um senão, no repente de quando tudo era e deixou
de ser. a lua cheia tão esperada que não aparece na noite limpa. a flor que não
brota depois das primeiras chuvas da primavera. o sol, depois de um ano
aguardado nos países frios e não retorna ao mundo para derreter o gelo das
neves, foi quando teu automóvel não surgiu mais no depois da meia-noite no
lugar combinado. a luz perdida dos meus olhos no meio do canavial noturno em
planícies desérticas de gente. a cana-de-açúcar, metáfora não planejada de tudo
que é doce, de todo álcool que preleciona o universo vivo aos instintos, apenas
o vento da noite continuaria cortando meu corpo e acariciando o mato verde de
lua cheia a quilômetros de longe da cidade, os gritos lancinantes testemunhados
antes em época de felicidade por uma lua acanhada, berros e gemidos antes sentidos
agora perdidos sem eco para sempre no calado da noite gigante, sem saber de
nós. um outro ocuparia meu lugar, e isso eu já sabia e imaginava breve nos
momentos de maior dor, enquanto mirava um inimigo imaginário a me seguir no
raiar dos dias com o fuzil armado atirando estrondo ensurdecedor pelas minhas
costas, meu corpo amarrado como fosse a imagem de um Jesus sem tantos méritos
sendo perfurado com balas ordinárias de fuzil em vez daquelas tantas flechas contra
o belo corpo de São Sebastião nos quadros espalhados pelas salas da minha
infância. atirava durante todo o ano interminável em meus exercícios
compulsivamente quartelados num barranco todo furado dia após dia por todos
esses filhos da pátria, meus amigos de infortúnio. mas eu tinha mais sorte, e
ria de todos eles em silêncio. tinha você em meu corpo, a memória ativa dos
teus cheiros ainda em meus dedos, minha boca, meu peito, no banho não tomado de
ontem à noite para garantir em presença de corpo o êxito desta alvorada
infernal com tanta explosão no ouvido, tudo isso misturado ao gosto da terra e
do barro na minha boca, meu rosto rastando o chão em posição de atirador
deitado, o óleo do fuzil dentro do meu nariz e a pólvora me queimando os olhos
no treino de tiro, tudo isso e eu ainda de pau duro enquanto o tiroteio surdeava ao meu redor e eu imaginando
um inimigo poderoso do lado de lá daquele barranco pra destroncar meu ombro
direito nos coices reiterados da máquina de matar homens repetidamente
carregada e continuar a desperdiçar assim tanta munição de graça sem enxergar
outro alvo que não fosse a pena de mim mesmo.
Nada disso importa. eu te adivinharia
pelo seu gosto inato da aventura, essa força incontida que te fazia ser a
potência de vida sem merecer de mim qualquer julgamento moral pelas tortas vias
sociais e que ainda assim não me tornava mais precavido ou consolado quando o
sol voltava a mim, batendo no rosto, secando a garganta, nu e perdido no
canavial, em melancólicos prazeres solitários no ritual de tua ausência e a
noite já ia longe sem saber de ti. se ontem ou semana passada eu mesmo não me lembrava, mas certamente não seria
mais o feliz outro-a-ocupar o espaço que tive uma sorte-em-vida de saber que existia.
semana que vem ou na próxima festa da cidade, seria um terceiro, um quarto, quantos
mais? não me cabia te julgar, se foi justo por seus excessos que eu passei a
existir , mas de que vale toda lógica se falamos de amor, e assim também por
excesso me abandonaste sem barulho, como era o suave do teu ser, da tua fala
apaziguadora mesmo a me dizer terremotos terríveis, quem criatura ousada de magnífica
sorte, esses outros que ganhariam teus suores daí por diante? eu seguia
sofrendo duas dores, alheio a tudo isso. uma, por saber de ti, e outra e por
não querer saber mais do mundo. usei e abusei de substâncias, a partir daí, abusei
de outros corpos querendo achar sempre o teu, exagerei no álcool descobrindo
nesse passo a total não-vocação de me tornar alcoólatra por simples cansaço.
descansei as angústias freudianas da ausência na volúpia de um cigarro, porque
aprendi a fumar logo em seguida à minha irreparável perda. a fumaça que me
agredia por dentro, matando cancerosamente meus órgãos a cada tragada e ao
mesmo tempo me dava aquela completa sensação de prazer permissivo e cúmplice
culminando com alguma calma era a memória de sua voz no meu ouvido, sussurrada
depois do cansaço bom da noite passada em claro sobre canaviais e sob luas, o
baseado tragado leve aprendido contigo na doma do espírito, você soprando o
vapor reverso-doce de incenso na minha boca e a fumaça em todas aquelas curvas loucas
que eram em teus traços a mesma minha bailarina girando no vento, o corpo
sinuoso e volátil que tantas danças expusera nos côvados ingratos da cidade
morta lá embaixo jazendo aos teus pés de bocas e queixos caídos e barbas abertas,
encantados pela tua presença magnífica e dominadora em seus silêncios.
Não me
tornei alcoólatra não por falta de querer ou de gosto pela ebriedade, mas por falta de vocação
mesmo, posto que meus órgãos decididamente repudiavam a partir de certa altura aquilo
tudo que envolvia álcool, mas tornei-me sim fumante sim porque sim sempre te
tragava sim junto com umas nesgas de passado para dentro de mim, fumaça etérea,
perfumada, rolando em curvas nas pontas dos meus dedos, leve e convincente,
como eu sempre amei mais-que-tudo nessa vida. tua natureza era essa, assim
bonita e luminosa, de deitar todos os homens aos pés de ti. que sabia eu? que
podia eu? amar-te como sabia que seguiria amando até o findar dos dias, que
mais? lembrar de ti a cada alcova penetrada com vigor e atitude, lambuzar-me de
ti a cada fortaleza perfumada derretida por meus artifícios, enquanto eu em língua-e-dedos
causava delírios sem fim pela arte que me ensinastes? me abandonastes porque
seria infeliz comigo, teu imaginário rico e multicor necessitava a presença do
que não te pode prender como fonte de prazer. como tantas outras de tua
geração, obedecestes demais na vida, e tua alma não queria mais ser subjugada,
fostes artista por excesso em tua essência, e a conflagração múltipla de cores,
formas, carnes e desejos equipadas com esses cabelos, esses olhos, essa pele era
manifestação exagerada de um deus artista para que soçobrasse assim, como barco
sem rumo pelo mundo a incendiar destinos. necessitavas mais, mesmo que a vida
não te pudesses dar. e essa coragem de criar vida aonde não havia segue ainda
em mim, com seguia, o rumo de uma outra nação afetiva que ainda eu não sei
achar, mas me lembro sempre do seu sentido possível quando vejo, ora meninas
brincando de corda ao pular no jardim, moças em idade-flor descobrindo os segredos
bons da vida, mulheres, já experimentadas que redescobrem por trás de
aparências fúteis de convenções e vidas voláteis sem sentido o segredo tantas
vezes banido das boas rodas, e que no fundo é o segredo-mor de toda existência
que se diz uma ida maior do que qualquer promessa de volta: teu espírito matreiro
e a criança universal que habitaram em ti não se contêm apenas em terem sido o que
foram, elas ultrapassam sempre qualquer barreira a elas imposta, e contagiam,
contaminam, arrastam com teu viés de cabelos longos e olhos em longos cílios, metamorfose
continuada de tâmaras em tomaras e da vida em vivência através de ti, pelo
relegar do mundo sóbrio e insosso que soçobra na superfície dos não-quereres.
tu mostraste à luz do dia como é que o próprio dia poderia existir.
Eu te perdi,
no fim, mas não lamento. primeiro porque eu fui e ainda sou teu, em algum sentido,
mas tu mesma nunca foste como essência algo a que eu pudesse me apegar, e desde
cedo me avisaste em tua suprema transparência que eu nunca mais vi nesta terra
de infelicidades, eu nem posso reclamar, para evidenciar tua natureza cristalina
e honesta mais que a pérola que eu possa uma vez mergulhador do descuido não
ter percebido. eu é que, teimoso e indeciso, mesmo através de tantos avisos,
ainda insistia em cativá-la inteira para mim. fui soldado ainda que por pouco
tempo, essa maldição que nunca se tornou minha vocação, tentaram me cativar, tentaram
me doutrinar, tentaram fazer com que eu acreditasse uma vez mais na abstração
ridícula chamada pátria, e não teve jeito. não tinha hino que me comovesse, não
tinha marcha , tiro ou juramento que me convencesse, porque eu então, mesmo
ainda tão novo já´ renascia contra todos os potestados do mundo, todos
maniqueístas e impiedosos contra a natureza, contra uma superior concepção de
humanidade, me insurgia ainda tão novo em espírito anárquico indomável contra
toda a beligerante arrogância tornada nação , apenas teu corpo era o território
de minha fantasia, a única verdade
possível e no mais pouco importa, no fim, tu me abandonaste porque necessitavas
causar o bem e chamar à vida a outras sortes perdidas e ainda não sabidas pelo
mundo. é preciso saber perder, se um quer viver esta vida. meu peito guarda o
que guarda de ti, e é sempre a coisa boa, o calor, teu cheiro em minhas narinas
nunca me abandonou, e teu legado não se vai quando eu me vou e farejo daqui e
de lá, procurando sempre o mesmo teu cheiro entre outras pernas, no suorzinho
de trás das orelhas, no rastão da pele quando esfrega na outra, fazendo vincos,
procuro a mesma textura quando mordo outras coxas, quando estapeio outras
bundas, quando aperto em conchas de mãos suadas o cristalino do desejo, quando
estreito os dedos perdidos entre os caracóis e mechas ou quando aconchego penugens
melodiosas no depois. teu grito era o som primal que eu procurava sempre no escuro
que antecede o êxtase, tuas tranças em corda, eu teu cavaleiro menino segurando
forte as rédeas por instantes enquanto galopava
sedento as ancas de um novo mundo. foste muito mais em mim do que apenas a passagem,
foste a origem mesmo depois de inaugurada a pedra, e tua existência o que fez em mim eu querer um dia saber de
mim.
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Publ in livro "Reine sobre mim", Contos reg AVCTORIS dez /2018