Sobre meninos e facas





Desde pequeno adorava facas, em suas mais variadas formas. As facas “Facas”, propriamente ditas, incluindo as mais comuns, de mesa: aço inox sem ponta e geralmente sem corte, as únicas autorizadas pela mãe, para seu desespero; as facas de ponta de ferro; maiores, mais afiadas, triangulares e de cabo de madeira, roubadas, escondidas da gaveta da cozinha e malocadas dentro da bermuda e perto da barriga, disparando numa perigosa fuga em velocidade quintal afora, para contemplar mais tarde, isolado e sossegado, o objeto sagrado do pequeno ato furtivo; havia também os enormes facões de mato, desbravadores, cujo acesso era raro, destinado a poucos, e que ficavam hermeticamente trancados na sala de montarias no andar de baixo da casa de Chácara.

Nas ocasiões secretas em que se aproximava da velha sala sem ventilação, abria com um esforço sobre-humano uma fresta na janela de madeira e podia contemplar aqueles objetos sagrados, como um “Indiana Jones” menino, abrindo as tumbas intactas de Tutancâmon, enquanto sentia o cheiro da sala recém-descoberta a impregnar-lhe a alma: o melhor perfume feito pela própria natureza, com uma pitada do descaso humano. Uma mistura equilibrada de couro velho das selas penduradas, com restos de sacos de adubo químico vazando pelo chão e, é claro, com um pequeno toque generoso de óleo de motor de serra elétrica, no final. Mas todo o esforço terminava geralmente num ritual contemplativo: o maior consolo era observar, dali em segredo onde estava, os facões gigantescos e afiados pendendo do teto. Suspirava pelo dia em que teria idade suficiente para usar aquelas “espadas” medievais amarradas à cintura. Então sairia montado em seu garanhão malhado pelo mundo afora, imitando algum filme sobre as cruzadas que provavelmente assistira nas imperdíveis sessões da tarde, e iria saborear, como um cavaleiro cruzado, o que cada manhã pudesse trazer de novo. Enquanto assim não podia, treinava com espadas de madeira e facas de cozinha mesmo, lançadas à distância, sem mira certa, sobre os arquirrivais saladinos e mouros de toda a natureza, representados pelas surradas bananeiras, mangueiras e goiabeiras do velho pomar.

Os filmes de que mais gostava, quase invariavelmente eram permeados de guerreiros e heróis que sempre usavam as suas próprias armas personalizadas como marca de sua virilidade, afirmação, força e destreza. Objeto reluzente, troféu-recompensa do espaço conquistado no bravo mundo novo. Os heróis constituem um capítulo à parte na vida de qualquer criança: neste caso, havia uma plêiade de nomes e perfis variados, que obviamente eram por ele “escolhidos” e “desescolhidos” sem qualquer critério racional ou explicativo; apenas por empatia de menino pesando o tamanho da aventura a seguir (talvez a melhor forma de julgamento, ainda penso em falar disso um dia). Variavam desde o clássico e inconfundível Tarzan, o herói preferido, a lenda viva e ocidental do homem branco onipotente, capaz de subjugar até mesmo as forças da natureza, lutar com leões, deixar as mulheres apaixonadas sem precisar muita conversa, matar uma cobra gigante a trinta metros de distância com uma faca voadora na cabeça, conversar com macacos, transportar-se pelo ar com cipós e não contar com nada mais além de suas próprias habilidades; como se não bastassem todas essas qualidades ao herói, ele ainda sempre andava sem camisa no frio e nunca ficava doente. Incrível o personagem expressivo criado por Edgar Rice Burroughs para pintar o quadro das forças políticas da época do imperialismo colonial.

Em segundo estava Robin Hood e as proezas dos cruzados, praticando com seu destro arco uma espécie de justiça social primitiva na Inglaterra numa época inaudita, em que hierarquia, honra, laços de sangue e valor na guerra eram os diferenciais para classes e indivíduos, sempre em busca de uma justa, enquanto os cavaleiros cruzados impunham uma determinada ordem ao oriente médio. Uma ordem imposta à força e que no futuro ainda iria trazer muitos dissabores, isso é certo. Cada civilização, a seu tempo, sempre em busca do seu Graal perdido.

Não nos esqueçamos, ainda, da França de Dumas e os Mosqueteiros, que, por um gosto destacado das grandes produções de Hollywood, costumavam povoar as tardes das semanas. Heróis da sofisticada França que usavam toda sua técnica e malícia para, entre uma guerra ou outra pela defesa do rei, ou entre duelo e outro pela defesa da honra, conquistar as donzelas. Certamente ainda era muito novo, nessa época, para saber sobre um outro herói, o grego Aquiles, e a mais bela passagem da Ilíada, onde Hefestos forja seu escudo e suas novas armas de guerra. Uma guerra que duraria dez anos e destruiria para sempre a mítica cidade de Troia.

E, por fim, como não falar das “facas para crianças”, por definição? Os tais canivetes, uma faca prática, portátil, e que não incitava os mais velhos a quererem tomá-la imediatamente das mãos dos pequenos sob o pretexto de que seria perigoso demais para uma criança (frase temível para toda criança). O que seria sua infância sem os canivetes? De todos os tipos, de todas as cores: de cabos, os mais variados: de chifre de boi, de cabos pretos-queimados, de plástico moderno; coloridos, de cabo de madrepérola, brilho sobre brilho, refletindo cega-retinas na sua prata branca-cinzenta, o mais desejado e mais caro sendo aquele de chifre de boi, que nunca se destruía e durava décadas. De fato, poucos o possuíam e era objeto de cobiça da meninada toda da região. Conversa de meninos, que este ou aquele canivete fora herdado do seu avô, ou um tio falecido há muito. Assuntos míticos. Isso, para não falar no famigerado canivete suíço, espécie de objeto evanescente onde o atributo precede o ser. Este, noticiado pela tv e pelas revistas, vivenciado somente de passagem, quando em visita de um primo metido da capital, pôde apenas vislumbrar, e por uns segundos de humana compaixão conseguir a dádiva de testar essa espécie de oficina portátil em suas próprias mãos. Cabo vermelho com uma cruz dourada no bojo, como era possível dobrar tantos atributos numa só matéria? O ser então é múltiplo e se revela em suas várias lâminas-facetas, sendo no fundo um só, com mil espelhos laminados? Perguntas! Com um desses suíços nas mãos, a mente viajava junto. Era possível imaginar uma propaganda no estilo americano, com um astronauta perdido em uma galáxia distante, de repente se dando conta de que esqueceu um importante equipamento, e toda a missão estaria perdida, não fosse um canivete suíço perdido em um dos muitos bolsos do traje aeroespacial, sacado com precisão no último minuto para consertar um dos motores da nave.

Espadas de príncipes, lâminas de todo metal. Folha fina, folhas largas, lâminas pontiagudas, lâminas obtusas; reflexo do rosto na folha de aço, aço corneta, de lei, caro, escuro e de corte perfeito, aço inox brilhoso, não-enferrujável, ferro preto sem carbono, estes os piores: não bastava pegar uma aguazinha ou um pequeno uso em frutas ou ensaios de entalhamento na madeira, e já estavam enferrujados, para desalento do seu jovem proprietário. Nem uma goiaba cortavam mais.

Sua entrada na verdadeira infância foi marcada por um canivete. Não que não houvesse outros brinquedos; havia, e muitos. Entretanto, com o perdão aos rolimãs, estilingues, pipas e piões, o canivete era um verdadeiro rito de passagem; marcava a diferença entre a primeira criança e a que viria depois, para sempre. Nenhum menino esqueceria esse tipo de presente. E veio assim, num dia como outro, sem maiores avisos, ganhado da mais querida tia (é claro que os pais não o dariam, com aquele medo típico), aquela que contava histórias, ensinava a molecada a xingar palavrões inofensivos e incitava-os a ocupar seu verdadeiro “ser” e não deixar de lado uma boa arte. Então foi num dia perdido desses, de uma infância perdida... um canivete próprio! Paixão à primeira vista e o gosto da liberdade. Aquele pequeno objeto-graal conseguido depois de tantas lutas. Seu passe para o mundo real, sua defesa e seu passaporte, sua maneira de estar no mundo a partir do momento zero. Ninguém mais com ele podia, seu cabo de madrepérola era brilhante, tons de vermelho acobreado, largo, sólido, e a lâmina, é claro, de folha larga e sem corte, porque a Tia que o presenteara com aquela joia devia saber de cor que seu futuro proprietário ainda não tinha idade para usar lâmina de corte pontiaguda. Não importa, o que vale é o contexto, enriquecido pela infinitude de significados e leituras possíveis através da chave-canivete sobre os portões do mundo novo, que agora se abriam.


A partir desse dia, o mundo ficou pequeno, e tudo mais cabia no descascar de uma laranja.



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publ in "Manga Verde", contos - Secult 2015 - Ed Cousa 2016