Flanando em Jardim da Penha

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Na rua, sombrinha embainhada debaixo do braço depois de uma ligeira pancada de chuva no final da tarde, pisando nas poças no entrecalçadas e foi justamente uma menina, em suas botas cor-de-rosa e a maneira recém-inaugurada de ver a vida,  que da porta do mercadinho chegou-se mais perto e me deu a melhor e inesquecível definição sobre a forma de classificar as pessoas : "...Cê tamém gosta  de pisar na poça ?". Assumindo no caminho para o ponto de ônibus os efeitos da acertada definição de paradigma, percebi que o mundo humano certamente poderia ser partido sem maiores delongas em duas essências: há aqueles humanos que, sem nenhuma razão, brincam de pisar nas poças d’água depois da chuva e aqueles que, por todas ou quaisquer  razões, nunca o fazem. De um modo ou de outro, foi pisando nas poças que retornei à capital Vitória nessa mesma semana, depois de um tempo afastado. Retorno ao bairro de que mais gostava em minha época de estudante, Jardim da Penha, palco de tantos momentos bons vividos no passado, quando o meu trajeto diário , a pé ou de bicicleta, sempre envolvia idas e vindas infinitas no caminho entre a república de estudantes, a universidade federal e a praia sem praia de Camburi.

Depois de tanto tempo fora, a cara do bairro é bem diferente, e a imensidão de lotes vazios que margeava os prédios agora é um verdadeiro  mar de prédios de baixa estatura que abriga uma população três vezes maior. Menor espaço livre disponível, mas o bairro ficou mais bonito. O limite vertical baixo felizmente não sufoca os ares nem prende o coração tenso entre ruas estreitas e monovias como acontece no bairro irmão, Jardim Camburi, por exemplo, porque ainda que por acaso, permite ver o céu. E não bastasse, JP ainda tem árvores!! Essas criaturas quase extintas na capital. Algumas já bem velhinhas com aquele tapete de musgo verde descendo pelo tronco, musgo que sempre se reaviva numa época chuvosa como este dezembro. É tanta chuva e calor que algumas árvores da beira-praia anteciparam suas flores fora de hora, para alegria geral dos passantes. Algumas dessas  que vi brotar, tempos atrás, agora cresceram e povoam as ruas com sombras e muitas daquelas flores amarelas com a corola colorido de pinturas roxas, que eu nem sei o nome mas fiquei feliz quando vi o resultado delas-flores-amassadas em um painel de concreto e contrastando como numa impressão em plotter no calçadão escuro velho do Clube dos Oficiais: uma tela não teria sido melhor pensada.

As praças e ruas, melhor urbanizadas, tentam organizar de forma produtiva o caos cotidiano do nosso trânsito de capitais, mapeando as pracinhas-labirinto que sempre caracterizaram o bairro, e que eventualmente ainda viram motivo de piada quando preciso receber alguma visita de outras terras em minha casa. Já não é de hoje, isso. Numa vista aérea, essas pracinhas cheias de entradas poderiam lembrar perfeitamente as grandes marcas insólitas desenhadas da planície de Nazca, no Peru, onde supostamente os seres espaciais fizeram aqueles imensos desenhos enigmáticos na rocha nua e depois partiram para nunca mais. Pracinhas espalhadas como grandes polvos geométricos, com corpos centrais coloridos e uma dúzia de tentáculos rodáveis, que deixa qualquer um meio doido, e é sempre mais ou menos assim, quando precisava avisar alguém: "Bom, você vem pela UFES, e pega a Rua da Lama à direita, chega na pracinha do Supermercado Carone, daí faz um balão e vai dar na outra Pracinha do Epa. Depois vira para a Flash Vídeo, chega noutra pracinha...", ou o contrário para dizer o mesmo : "Você vem pela norte-sul, via Beira-mar, daí pega á Direita no Clube dos Oficiais, segue até a pracinha do Epa..... ". Um terror para estrangeiros não-capixabas. Até mesmo para capixabas não Jardineiros. Isso porque não falei dos canteiros divisores de ruas que permitem ao pedestre ou ciclista continuarem tranquilamente a via, enquanto obrigam qualquer automóvel a dar um grande ciclo torturante de voltas antes de retomar a direção primitiva. Algo  completamente ininteligível a quem não teve a sorte e a ciência de nascer Jardineiro, o habitante típico de Jardim da Penha.  Confesso que depois de tanto tempo conhecedor do lugar a pé, eu mesmo andei vacilando e rodando voltas e mais voltas de carro em torno de algumas praças pra achar a saída, recentemente, na busca do caminho pra casa. É como diz o ditado: carros sempre entendem menos de praças do que bicicletas ou pedestres. E talvez por isso, registro logo outro ponto marcado pela civilização, e neste caso não é nenhuma praga: seguindo modelo de umas poucas cidades exemplares pelo país afora, aqui também os carros param para as pessoas atravessarem a maior parte das ruas. Quem sabe um dia a moda boa não pega por aí afora?

Os espaços coletivos também mudaram, nesse interregno. E para melhor, devo dizer. Jardim da Penha é lugar que também respira cultura descolada. Escritores, estudantes, artistas em geral, funcionários públicos, pessoas comuns em suas mais diversas formações, misturadas numa dinâmica  simples da "happy hour" de quinta ou sexta-feira, como convém, em botecos pelas suas ruas internas ou na orla. Um shopping pequeno mas simpático com comida boa, livraria caprichosa, o melhor cinema da cidade, bons restaurantes e a proximidade da praia tornam JP uma mescla inconfundível do ar mais calmo da cidade do interior com a pimenta de uma capital praiana temperada de ares civilizados. A igreja local toca todo dia o sino ao meio-dia e às seis da tarde, o que me lembra a infância perdida em meu pequeno mundo "Do Alegre" interior do Espírito Santo. O bairro hoje, evidentemente, tem muito mais lojas do que há vinte anos atrás, e de todo tipo: coisa muito diferente da época de estudantes, quando precisávamos correr ao centro ou outros locais para comprar quase tudo que não se achava nos bairros, sempre com o orçamento apertado, é claro. Agora há dezenas de farmácias, salões de estética, bancas de revistas, bancos, lanchonetes, padarias e restaurantes, além de um tipo de loja que tem sido de fundamental importância para mim no último mês, por conta da recente mudança: essas lojas sem-nome que vendem de tudo que é bugigangas para casa. Já fiquei amigo dos donos das lojas de tem-tudo e contei ao menos meia dúzia dessas no raio de mais ou menos dois quarteirões  de casa. Compra-se de tudo, nesses lugares, e a forma de atendimento misturada à maneira surreal de organizar esteticamente seus produtos dependurados na porta da rua, à vista do consumidor, faz dessas lojas algo digno de um capítulo próprio nas lições pós-modernas sobre o comércio. Melhor assim. Depois do grande reencontro com aqueles pães, baguetes e pastas especiais da fabulosa padaria Monte Líbano e com o churrasquinho de picanha mal passado dos manos na pracinha de sexta à noite, as lojas de bugigangas viraram uma verdadeira paixão pra mim. Em época difícil de mudança, consegui encontrar na mesma loja as mais inusitadas solicitações,  a um preço quase camarada.

O calçadão de Camburi renovado depois de um longo período em obras, é um show à parte. Antes uma imensidão de praia desabitada e repleta daqueles quiosques meia boca e banheiros públicos mal resolvidos, -- aos poucos se tornando um lugar perigoso e inabitável há duas décadas -- hoje um belo quadro tridimensional da melhor ocupação do espaço público. Desafiando a poluição frequente que entope o ar da cidade, e principalmente deste bairro, de toneladas e mais toneladas de pó de minério, são as pessoas que mantêm o calçadão vivo.   Velhos, crianças, famílias e gente de toda idade nos quiosques ou na areia, rolando nos patins, bikes ou fazendo curvas estilosas com seus longboards, entre uma parada para a água de côco e o milho verde. Importante registro nesses tempos de busca por maior acessibilidade das vias públicas são as rampas e soluções de inclusão que foram adotadas já no moderno projeto do calçadão que concluiu as obras, e assim como boa parte dos ônibus que percorrem o bairro, que também possuem o sistema de elevadores que prevê a utilização por cadeirantes e acompanhantes. Nada mais justo e politicamente correto.

As noites neste bairro não são menos coloridas. A proximidade da universidade federal, grande fator de influência sobre a moradia e o perfil humano do bairro, dá o charme ao lugar. Quase tudo que se respira por aqui, ou teve, ou tem ou terá alguma relação com a UFES, em algum momento da vida. Retorno à Rua da Lama, ou ao novo conceito do que poderia ser a Rua da Lama, agora mil vezes maior e mais borbulhante. Mudança de perfil do “underground” alternativo porradeira que havia antes, marcando a cara da juventude do início dos noventa, que vestia-se invariavelmente de preto e aglomerava-se em três ou quatro barzinhos, misturando amor suor e som alto numa mesma cena nem sempre pacífica o grosso naipe dos roqueiros e pops da ilha, com uma minoria punk barulhenta. Apesar da sempre inovadora variação de formas e estilos, não há tanto contraste entre passado e presente no que diz respeito a conteúdo. Jovens são jovens sempre, e estudantes também. Em polvorosa. Energia de mais, consequências de menos. Soa como uma análise de tiozão lendo o movimento e uma juventude arteira. Mudemos o rumo da prosa. O que há  de novo na parte física dessa ponta em frente à universidade são as inúmeras opções de bares e a existência de alternativas gastronômicas ou cervejologísticas para felicidade geral da moçada. Ponto de parada obrigatório da saída da universidade ou happy hour voltando da rua, continua sendo o lugar número um do balanço geral do pós-aulas, galera bonita e arraigada no seio da própria vida.

Jardim da Penha está aí, depois de duas décadas. Melhorado, penso eu. Como aprendiz de bon vivant e um "bom de garfo" incurável, ainda sinto que comer é, sem dúvida, senão a melhor, uma das melhores formas de se provar do bom da vida no lugar onde se está. Morar, andar à toa, ir ao cinema a qualquer hora, entrar em qualquer sessão sem nem saber qual o filme, ou ficar flanando entre as pessoas atarefadas pela rua num dia de semana à tarde de meia estação, só de bobeira para captar ares, também são maneiras ótimas de ser absorvido novamente por esse eterno fluxo urbano e cosmopolita que nunca para. Reencontrar ainda os velhos amigos que não são gente, porque sempre foram mais que isso, talvez algum lugar dentro da gente, e por essa razão nunca deixaram de estar conosco durante todo esse tempo em que fisicamente estivemos distantes.

Estar-de-volta é verbo existencial que sempre se conjuga no presente, e esse presente já nasce pleno de novas significações. A foto do momento acrescenta não só a novidade, que agora é uma forma subjetiva de se aproximar do mundo, mas permite ver e sentir pelas arestas do tempo o espaço daquilo que também um dia já foi história. Não tanto por aquele conhecido e improdutivo naufrágio nas nostalgias imaginativas do que poderia ter sido e por alguma razão não foi, mas  tornando cada minuto vivido mais rico e mais intenso, na tarefa imprescindível de valorizar duplamente o agora.

Jardim da Penha é Vitória melhorada, mesmo com suas imperfeições, tudo estética, sabores, espaço de movimento. Onde a simplicidade está sempre em casa e o luxo cede lugar à realização. O pão aqui é mais gostoso, assim como o vinho e aquele rosbife com pasta de alho-poró da Monte Líbano no pão terroir de vinho e nozes. Essa espécie de “redoma” como se fosse um tipo de jardineira cuidada faz parecer muito mais fácil morar em Vitória, superar ao menos em parte as grandes contradições que é habitar qualquer grande cidade aqui no nosso país e ainda faz Vitória  humanizar-se cotidianamente para além do simples concreto com as cores e o ritmo do lugar.


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publ orig in "Alma de Cortiça", Crônicas - O Aleph , 08-2015 - reg AVCTORIS, jul 2017