Cine Trianon
http://salasdecinemadoes.blogspot.com/2013/04/cine-trianon-alegre.html
Meses, até anos, tentando falar sobre o cinema da minha terra natal, e sempre adiando, por inúmeros motivos. No peito, inesquecida a necessidade de falar disso uma hora, não apenas pela importância do cinema para minha vida, mas daquele cinema, em particular, como deflagrador de vidas e descobertas, e o vínculo inextinguível com tudo aquilo que representa pra mim a sempre saudosa terra “do Alegre”. Cinema que, depois de estar parado há alguns anos, teve o que sobrou de sua estrutura recentemente demolida.
No
mais, sempre tenho dificuldade para escrever sobre minha terra. Quem, sem
aviso, ainda insiste em se enveredar pelo inconstante território das letras,
deve esbarrar com essa questão, hora ou
outra: quando o traço se torna emotivo demais, a coisa toda desanda. Tirando os
excessos líricos de uma ou outra linha poética, que conseguem lidar melhor com
isso, na prosa costuma ser desastroso. Muitos falaram sobre isso, já, e o mais
famoso é Pessoa, na definição ontológica do poeta e sua lida com a ambivalência
do sentir-expressar. Porque a emoção, a comoção, a derrubada de muros ou sua
construção por um motivo ou outro é coisa sempre presente em quem lida com a
arte, sua ponte eleita para o mundo. A questão aqui é mais da esfera de que,
consentir em ser derrubado nas linhas nem sempre é um bom prato para o possível
leitor. Não há resposta certa nesse território clássico entre a objetividade e
subjetividade. Ora, tudo é subjetividade, -- bora adiantar a pauta -- ninguém perderia mais tempo com a
outra opção nos tempos de hoje. O ponto e´saber em que grau ela se torna
hermeticamente inacessível como absoluta viagem individual de autoconhecimento e
formação de signos impenetráveis em um mundo que só viceja sob a casca, ou ela busca, de alguma
forma, mesmo por vias tortas, mesmo com um grão de desespero, alguma expressividade, busca um contato com o exterior,
independente de época, política ou gosto. Mesmo que a verdade seja bem outra,
para o autor, o artista, o criador, a busca dessa conectividade possível não
deve ser relegada, sob pena de se enterrar de vez o maior pressuposto de toda
arte, que é sua possibilidade de se comunicar. Mesmo que a caneta, feito lâmina
afiada adentrando o corpo ainda não bem frio sobre a mesa, esconda atrás de sua
precisão, seu desapego e a suposta indiferença ao sangue uma sequência de eventos avassaladores,
do ponto de vista de quem escreve.
O fato é que alguma impessoalidade há de
convir a uma melhor fluência de idéias, memórias, à inteligibilidade para a transição
dialógica. Nada disso diz respeito a qualquer objetividade, cujos defensores
idiotas, já dizia Nelson, devem estar todos mortos. Pois no fundo, todos nós
rabisqueiros em algum momento vamos concordar, mesmo sem querer: a escrita é um
exercício mesmo de navegar como um Titanic sobre águas minadas de duros e frios
icebergs. E pior: já sabendo, de antemão, que todo Titanic afunda em algum
momento. Escrever é não desistir, sabendo das incertezas certas de todo resultado, mas não se importando tanto com isso, porque a justificativa
está mesmo é no processo.
No
que me cabe nessa história, como me ocorre com tanta frequência quando vou
escrever, falar ou pensar sobre "algo em andamento", seja leitura
recente, fato político, notícia de jornal ou sentido do mundo, eu me embolo
demais nas palavras, não tenho noção clara do objeto, os sentimentos e as emoções
se misturam demais jogando tudo que é cerebral ou articulado, estético ou elaborado,
pra escanteio, deixando reverberar apenas as outras forças que ficam lá dentro,
afiando as garras ao bote sem pedir permissão. Portanto ,não sou bom exemplo na
compreensão e no exercício daquilo que eu mesmo acabei de afirmar ali em cima. Estou sempre num aprendizado.
Em
outros tempos, isso me deixou em enormes dificuldades com a vida acadêmica, por
conta da famigerada "data limite" pra entrega de trabalhos, a
total incapacidade de fazer uma revisão honesta dos calhamaços de papel sem
antes deixá-los decantar como um bom vinho por um certo tempo, e ainda por eu
ser um eterno empolgado com tudo que me vem à mente para a escrita. São muitos mundos para a tentativa de serem conciliados no traço. E sempre
acho que a intuição vai cavar mais fundo no osso do que desejo, mesmo tendo em algum lugar um
cérebro, que é tantas vezes posto de escanteio nessas horas. Apesar disso tudo não posso
reclamar, porque por outro lado é ainda essa força, essa pulsão de vida
que se derrete em palavras que me mantém ligado ao desejo da escrita e à interminável
busca da poesia.
Graças aos deuses, termino sempre me convencendo que a poesia nunca precisou de nada disso para fluir. Ela vem naturalmente de "outro lugar" que não dos arquivos da razão. Querer acertar o prumo na busca de uma possível harmonia é ser um pouco "grego", no sentido nietzscheano, quando o filósofo afirma que o resultado do mais rico processo artístico já surgido foi quando a pulsão Dionisíaca, destrutiva em si, informe, pautada pela ebriedade, o perdimento do sentido lógico, a cultura do exagero e do sugar a medula até que não sobre nada encontra sua antepara no Apolíneo, a contenção, a forma, a busca de um sentido, o equilíbrio aliado a uma certa idéia de beleza que, embora não-sólida e varie conforme gosto, época e história, mantém sempre uma tendência enquanto lugar. Dionísio, o deus estrangeiro, egípcio, brutal em sua pulsão de vida, o instinto, o primal, potencialmente destrutivo se não fosse contido por Apolo, um deus originalmente ático, uma divindade de luz, da justa medida, da busca pela expressão e efetivação da forma antes que ela se espoje em pura animalidade. Se é no dionísiaco que nasce a pulsão, é no apolíneo que a arte se configura em matéria. Não está em nenhum dos dois a possível verdade, mas na tensão entre as duas forças, que precisam existir para que surja a centelha que permite o artístico.
Graças aos deuses, termino sempre me convencendo que a poesia nunca precisou de nada disso para fluir. Ela vem naturalmente de "outro lugar" que não dos arquivos da razão. Querer acertar o prumo na busca de uma possível harmonia é ser um pouco "grego", no sentido nietzscheano, quando o filósofo afirma que o resultado do mais rico processo artístico já surgido foi quando a pulsão Dionisíaca, destrutiva em si, informe, pautada pela ebriedade, o perdimento do sentido lógico, a cultura do exagero e do sugar a medula até que não sobre nada encontra sua antepara no Apolíneo, a contenção, a forma, a busca de um sentido, o equilíbrio aliado a uma certa idéia de beleza que, embora não-sólida e varie conforme gosto, época e história, mantém sempre uma tendência enquanto lugar. Dionísio, o deus estrangeiro, egípcio, brutal em sua pulsão de vida, o instinto, o primal, potencialmente destrutivo se não fosse contido por Apolo, um deus originalmente ático, uma divindade de luz, da justa medida, da busca pela expressão e efetivação da forma antes que ela se espoje em pura animalidade. Se é no dionísiaco que nasce a pulsão, é no apolíneo que a arte se configura em matéria. Não está em nenhum dos dois a possível verdade, mas na tensão entre as duas forças, que precisam existir para que surja a centelha que permite o artístico.
Como
dentro de nós não há divisões tão claras quanto gostariam os cartesianos, mas
sim caminhos que se intercomunicam em sua dinâmica própria, essa interminável
procura pela poesia é a mesma força que em mim alimenta o gosto pelo cinema.
E guarda também uma outra fonte, desde criança. De uma natureza física,
se posso assim chamar. Se fosse situar em um local e um tempo, a primeira memória
vem mesmo desse nosso "Cine Trianon", na cidade-jardim do interior do
Espírito Santo, e era na verdade um prédio pequeno de arquitetura histórica, construído
na era de ouro dessa região, coisa de quase cem anos atrás, em 1924, quando ser
uma cidade de interior tinha lá seu orgulho e independência muito justificados,
e ainda não possuía essa aura psicológica de desqualificação e um certo descaso
arrogante perante o "mundo grande" e economicamente poderoso das
capitais espalhadas pelo nosso país, como infelizmente hoje se vê em contínua
expansão.
Por
definição, cinemas e teatros são entidades que simplesmente não deveriam ser
destruídas. Caso viessem a ser desativados por alguma razão, em sua
funcionalidade, ainda assim os prédios deveriam ser conservados para sempre,
pelos serviços prestados à Humanidade (assim, com H maiúsculo, em tempo de
tantas minúsculas a nos rodear). Pelas mesmas razões notórias que hoje se
preservam os anfiteatros gregos criados há 3000 anos atrás, em homenagem a Zeus e Dionísio (também o deus referencial do teatro, da máscara, da música e da não figuração pelo indistinto das formas da natureza que agem sobre o homem, enquanto Apolo referencia as artes visuais, figurativas) onde foram encenadas as primeiras tragédias que fundaram o ocidente,
deveriam ser preservados e cultuados pela sua mágica memória. As peças e filmes
que ali foram exibidos, a capacidade do
ator em comover, o sangue do artista criador, a beleza dos cenários, das telas,
a dor, a alegria, a reflexão necessária e fortemente instigada sobre os temas
encenados que tantas vezes mudam nosso olhar sobre a vida e que no fundo
revelam e incandescem a presença humana na Terra, tudo isso faz com que esses
locais transcendam sua designação como apenas mais um espaço urbano
qualquer, de natureza física. Seus locais de encenação, de exibição, depois de
inaugurados, não são mais locais tipicamente materiais, de tijolos, tintas, madeiras e coberturas. Eles
revestem-se na verdade da vida e das histórias de todas as pessoas que passaram
por ali e deixaram impregnados nessa matéria bruta a energia de suas vivências,
suas experiências e emoções que só foram possíveis em tamanha magnitude e
beleza pelo fato de estarem ali, naquele local, nesse espaço-tempo, e não em
outro qualquer.
Arrisco
dizer que, se em qualquer processo de escrita e nas primeiríssimas aulas de qualquer
oficina, a dica principal do professor será invariavelmente "Evitem
o lugar-comum, minha gente, se vocês querem ser escritores", hoje eu tô me
lascando pra isso. Lugar-comum existe porque há arquetípicos espaços a que nós
acorremos em grupo quando buscamos referências e a ótica do indivíduo não parece suficiente para sustentar valores ou propostas. Lugar-comum é
também a vida, a busca de contato com as
multidões, a busca da saída necessária do casulo, ainda que não necessariamente
tenha que se tornar a essência de qualquer arte. Lugar-comum e bordões como memória
inconsciente tribal, em nossas veias ancestrais ás vezes são a revalidação de
processos coletivos que depois serão filtrados e assimilados individualmente
através de uma força muito poderosa que transcende e se instila. Ora, e por
acaso isso não é o retrato do amor em suas fórmulas tão
pouco originais a bem dizer, o maior lugar-comum de todos? Padrão de grupo, arquétipo e inconsciente coletivo em seus deslocamentos. Assimilação individual pelo olhar diferenciado e experimentação da vida aumentada pela sua potência. O que foge à previsibilidade aqui não sáo as batidas formas, e sim o olhar de quem ama e cujo toque tudo transmuta. É só observar o que acontece ao redor. Nós nos sentimos as criaturas mais originais do mundo quando somos tocados pelo sentimento. Mas há muito de ritual, muito de não-particular, de coletivo nessa espécie de teatro. E não é menos intenso ou belo por conta disso.
O cinema e seu
direito a exercer também lugar-comum enquanto metáfora da luz e movimento que
se acende sobre nossas cabeças no silêncio aveludado da sala com cheiro de
pipoca fabricando uma infância com maior sentido; o escurinho refrigerado, a pegada nas mãos do primeiro amor ainda na deslavada timidez; a chance do primeiro
beijo, quiçá das primeiras ousadias não narráveis neste horário para
adolescentes em fúria hormonal que depois, la´fora, não se lembrarão qual o filme
que estava em cartaz. Lugar-comum na forma coletiva de se movimentar e experiência existencial única no sentimento do vivido.
Chamarei
o querido "Cine Trianon", como era o nome oficial, de "Cine
Paradiso", pela memória afetiva em analogia com um grande filme italiano
(1988) do qual gosto muito, e que também fala de amor à sétima arte. O
"Cine Paradiso" de Alegre tinha tudo isso, e muito mais. Situado na pracinha
mais movimentada da cidade, alimentou por diversas gerações todo tipo de adorável
lugar-comum que ainda será celebrado em ritual por milênios após essa singela
fala, o mesmo sentimento que preencherá de sentidos tácteis ou oníricos infinitas
realidades que ainda ocuparão outras salas mundo afora. Uma pena que isso não
mais poderá ocorrer naquele cinema, naquela cidade.
"Silêncio,
meninos, porque não estão na casa de vocês!", dizia o projetista "Gigante",
apelido de um saudoso cidadão alegrense que além de projetar os filmes, ainda
cuidava da disciplina da moçada em polvorosa antes das sessões. Ainda me lembro
da vez em que parou tudo no meio, acendeu as luzes e desceu da sua cabine de
comando para passar o maior esporro que já tomei na vida, quando fomos
lembrados não aos gritos ou ameaças, mas com a luz acesa, ele sem alterar a
voz, Gigante duas vezes com sua presença intimidadora pela altura, --e mais intimidadora
ainda por sua gentileza e natural delicadeza, um gigante que também era exímio
musicista tocador de contrabaixo e se recusava a usar a força e ainda falava
com autoridade poética era muito mais poderoso que um ogro brandindo uma clava
-- nos lembrou de uma poderosa frase de Rui Barbosa que eu não me lembro mais
qual é , mas era sobre algo relacionado ao destino de uma nação em retórica
sobre o que nós, jovens, escolheríamos fazer dela. O cinema sendo uma casa
ou algo como uma nave espacial a caminho do fabuloso desconhecido na imensidão de
glórias e sonhos e a atitude grosseira que desempenhávamos naquele momento, na
zoeira infinita do cinema sendo algo realmente reprovável. Vergonhas coletivas devidamente
nomeadas, luzes apagadas, sessão continuada na paz dos deuses e uma lição pro
resto da vida a respeito de cultura e habitação de lugares públicos.
Sessões
de matinée de domingo com os Trapalhões e sua interminável infância em
quarteto; Tubarão, de um iniciante tal de Spielberg e a música de suspense mais
poderosa da sétima arte; o Superman do incomparável Christopher Reeve ; os
primeiros StarWars, as primeiras explorações incríveis da sinestesia das salas
de cinema ao entrarmos a bordo das famosas naves de Luke Skywalker & cia. A
vontade de voar pelo espaço profundo radiado de estrelas e a primeira vez que
vi um Cavaleiro Jedi bramindo o belíssimo sabre de luz foram mágicas
sessões de mundos e sonhos sentado a poucos metros do telão. Mundos que jamais
se apagam. Passando o tempo, a idade crescendo e a mudança para as sessões
noturnas, de sextas ou sábados , onde foram entrando as exibições de
Blade Runner, (assistido quantas vezes, meu deus, que eu até perdi a conta), a
beleza inacreditável de Brooke Shields em Lagoa Azul e Endless Love pra levar
as "namoradas ou quase" dependendo do resultado pragmático da sessão,
logo em seguida iniciados os rituais de passagem com as aventuras politicamente
nada corretas das comédias universitárias americanas e por último, mas não menos
nobres, os primeiros filmes pornodidáticos a que tive acesso, ainda na surdina,
enganando o vigia de portaria com a lorota de que nós aqueles garotos de 15-17
anos todos já éramos maiores de idade, mas isso ninguém precisará saber nunca porque
com certeza jamais vou contar.
Quando
deixei minha cidade, o cinema já estava fechando as portas, a construção histórica
apresentava os sinais da idade, e as más políticas em todas as esferas de poder
jamais se dignaram cuidados e interesses patrimoniais nessa questão, como
ocorre reiterada e imensamente neste solo brasilis por toda parte, e a coisa
toda veio mesmo abaixo recentemente, para tristeza de todos que passavam pelo
local e viam, naquela nova boca banguela de terreno baldio sem destino certo e
nas mãos de especuladores em local valorizado -- não mais o cinema em
funcionamento, coisa que não acontecia há tempos -- mas ao menos a presença
consoladora e bonita de sua fachada histórica, que se tornou um dos retratos
mais característicos da pequena e saudosa cidade. Quem sabe o que virá no lugar, daqui a uns
tempos? Segundo me informam os amigos de lá, hoje é apenas mais um lote abrigando
ratos e mato próximo às margens do rio que corta ao meio a cidade. Objeto de disputa de herdeiros. Algum Eike Batista
da vida certamente surgirá daí a uns tempos pra reivindicar de alguma maneira
sua posse, seja comprando barato o que não tem preço para revender ao mercado
inóspito, seja propondo mais um "milagre" de urbanismo para nossas
tristes misérias urbanas, enfim, o espaço imaginário, espiritual, artístico,
humano que aquele cinema ocupou, pelo visto jamais poderá ser ocupado por
qualquer outra coisa nos nossos tristes dias contemporâneos, que , -- acudam os
deuses – cada vez menos reserva espaço para o imaginário, espiritual, artístico
e humano.
No
filme famoso do cinema, o clássico "Cinema Paradiso", mesmo depois de
um trágico incêndio que põe tudo abaixo, surge um herói benfeitor – um garoto
crescido na cidade e influenciado em sua vida pela beleza dos filmes -- que por sua conta e risco resolve retornar a
arte ao que era antes, dando novamente uma chance à felicidade. Gostaria de
acreditar nisso, mas algo me diz que vivemos por aqui uma vida sem heróis...
publ orig in "Alma de Cortiça", Crônicas - O Aleph , 08-2015 - reg AVCTORIS, jul 2017
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