Pescaria

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Amarrada com linha especial ou simplesmente trespassada pelo metal em dois ou três pontos pelo corpo, ia longe a conversa dos dois em pé sobre as ondas rasas, acerca da melhor forma de se dispor a isca de camarão no anzol. O fundador, junto ao mais novo rebento do clã, argumentando-se em expertises como um pescador-raiz. Uma semana de preparativos, lojas, pesquisas, apetrechos, algo parecido com um mochileiro de aventuras armando seu kit sobrevivência para sair ao mundo, começando pela imensidão agreste da Patagônia. Com a diferença que não havia Patagônia, e o mundo, no caso, era uma ponta de areia e água salgada sob o calor do verão.

O sol de janeiro  marretava tudo o que se podia quase não ver no reflexo dos olhos miúdos diante de tanta claridade. Óculos de sol como acessório indispensável à vida. O dia tem mesmo algo de exagerado, tem hora. Um tapa na nuca. Varas, molinetes, redes, linhas, chumbadas, anzóis de tantos tipos que chega a dar dor de cabeça se for explicar pra um leigo. Curvos, bicurvos, tortos, com dois ganchos, com proteção de metal ou sem contra bocada de peixe maior. Inox de metal claro, ou escuros para confundir o peixe, iscas artificiais e bóias para chumbadas. As mordidas diferentes, as bocas funcionais – cada uma por uma razão específica – combinadas com os tipos de dentes e arcadas dos peixes de praia e de rio e os locais onde frequentemente são pescáveis. Essa era só a primeira parte da história. A segunda tinha a ver com o conforto do pescador, coisa tão ou mais importante do que a própria pesca, principalmente no depois, se a pescaria por alguma razão falhasse no seu objetivo explícito: bonés com nucas de pano modelo expedicionário da Legião Estrangeira, filtro solar setenta ou maior, cadeiras praianas e sombrinhas para a hora do sufoco, furadores de areia para varas de fibra e é claro, água mineral, umas comidinhas e cerveja gelada que ninguém é de ferro.

Loja de artigos esportivos é uma espécie de oásis, vamos combinar. Se bobear, você se convence rápido de que o capitalismo deu certo. Uma beleza aquela hipnótica confluência de cores, formatos, novidades e adrenalina. Inventam todo tipo de coisas, e quando a variedade dos esportes rareia, inventam novas formas de se praticar os mesmos esportes a um preço nem sempre justo. Nos corredores repletos de novidades, os equipamentos têm vida própria e querem saltar pra suas mãos, parecem querer agarrar  seus pés, ganhar vida. Não há como ver um equipamento de rapel sem você se imaginar no topo de alguma montanha difícil, a cena de cinema com você tomando o suco gelado da garrafa térmica  de alumínio anti-choque e limpando o suor da testa com a manga da camisa de fibra sintética anti-derrapante. Tem coisa que você só descobre que existe mesmo depois que passa por lá. É da gente se perder por uns tempos, e uma das paradas obrigatórias quando ainda perdemos tempo de ir aos shoppings, babando setor por setor dentro das modalidades esportivas, mesmo que você nunca tenha praticado aquele esporte, em particular. Ele nunca havia jogado futebol americano nem baseball, mas não deixava de ver as últimas novidades. Proteções, máscaras, as bolas de couro natural ou sintético. O cheiro daquilo tudo, as cores. Dava uma passada rápida no setor futebol, lembrando a felicidade incontida de menino em fazer gols na pelada com a camisa 10 do Zico, gastava um pouco mais de tempo na área de basquete, artes marciais e camping, admirava-se com os sofisticados e caros equipamentos de mergulho e estacionava de vez na tríade de vida atual: tênis, natação ou agarrado no ciclismo.

No ramo da pesca não é diferente dentro dos cada vez mais ramificados e complexos setores da economia mundial. Cada item é um mundo à parte, começando pelas iscas. Há muito não se cortava um bambu no mato pra pescar lambari na beira-rio. O sistema inventa a necessidade, fabrica o produto e induz o sonho, a ponto de se fazer perder diante de tantas opções. O mesmo sistema que acaba com os peixes, no fim. É como no supermercado, quando outro dia a garota parava no setor de cosméticos e rodava pra lá e pra cá, sem se decidir por uma marca de xampú. É de endoidar mesmo. Sem qualquer unanimidade para um mortal, diante de tantas opções. No caso da pesca, nem mesmo camarão. É por isso que não havia certeza a essas alturas se as pequenas sardinhas na sacola ao lado – começando a recender a peixe morto depois de três horas ao sol -- não poderiam exercer melhor esse papel. Certamente iam atrair peixes a quilômetros dali, e ao menos não se despedaçavam tanto no vento na hora do arremesso.

“Peixe gosta é de isca com cheiro forte. Não adianta botar camarão congelado e querer que venha alguma coisa beliscar. É como se fosse um chamariz, um aviso de refeição pra eles”. Dizia o mais velho dos três. E completava : “ Imagina você chegando num restaurante e alguém lhe oferecendo camarões naquela barra em pedra congelada? Você comia? Não tem sabor nem cheiro. Meu tempo, pescávamos de lesma, minhoca de barranco ou larva de marimbondo tirada direto da cachopa. Também servia miúdos de frango”, rematava o  avô ,  no caminho de se fazer pelo conhecimento adquirido e experiência de vida.

O mais novo, neto, cabeçudo como seu ancestral vivo ali na ponta de areia, sem dar muito ouvido à sapiência pesqueira da vida ou da internet e teimando que seu próprio jeito de iscar o anzol era mesmo o mais efetivo, cismava que não tinha vento ou água que tirasse, não tinha peixe pequeno que conseguisse roubá-la da armadilha. Queria fazer do seu jeito.

O do meio, na condição de pai e filho simultaneamente, mas sem vocação pra ser  um espírito santo, calado sorria por dentro depois da terceira cerveja, sem dar muita conversa àquelas miudezas. Conflitos de linguagens entre gerações que não davam em nada. Enquanto isso, ele nutria  uma preguiça em existir maior que o universo, numa tarde de verão qualquer. O consolo à beira do mar é o próprio mar, já se devia saber. E se não tem peixe, tem cerveja, que é quase a mesma coisa, em estados físicos diferentes da matéria.

O fato é que estava tudo bom ali, depois de um certo tempo regado a afastamentos e turbulências, estava bom naquela tarde a ponto das chatices paralelas do mundo sequer alcançarem o centro das insatisfações comuns. Vento fresco na beira de dia quente é sempre melhor que temporal. De vez em quando um mergulho no sal, pra refazer os conceitos. Peixe que era bom mesmo, nada de morder. Os tira-gostos, mais pra almoço que petiscos, rareavam depois desse tempo. Logo ia ter gente reclamando. 

Atavismo sobre atavismo, a fala também pode ser atávica. O que não se falou durante décadas, a comunicação que não se fez por alguma razão num certo tempo, entre os elos primários da cadeia genética, talvez pudesse saltar etapas para reatar-se uma geração depois, através de novos conteúdos? Silêncios deixavam de ser rotundos, e passavam a encenar – de início tortos e meio sem jeito – expressões de esforços existenciais com alguma chance de serem bem sucedidos?

Porra!

Mais cerveja na cachola...

Ele era quem nessa cadeia de afetos? a essas alturas, não se sentia muito bem encaixado como o pai cujo papel um dia assumiu integralmente. Essas crianças  crescem cada vez mais rápido e parecem saber tudo, o que praticamente vai desentranhando o papel do pai do seu pedestal. Ele também não estava na posição assim explícita de ser cem por cento  filho devido a um certo vácuo no andamento do mundo, e com certeza não tinha a menor vocação para espírito santo. O tempo pode ser, no fim, uma espécie de veneno contra qualquer tipo de amadurecimento e a figura de se tornar adulto apenas um retardamento ou desvio da grande arte um dia exercida de ser criança? À luz do dia, ele via o  próprio pai, tão mais envelhecido se tornar criança vacilando nas duas pernas diante do jogar das ondas depois de enfiar a cara nos tarja-preta  na noite anterior. Ele via também o mais novo se empenhar com tanta seriedade na tarefa de preparar o anzol e a máquina de pesca, que mais parecia um pai de família preocupado com o sustento da casa e as contas do mês, enquanto ele próprio  flutuava entre uma coisa e outra sem bem decidir em que porto punha os pés ou se achava outra praia para ancoragem. Render-se à tradição familiar dos tarja-preta não era seu estilo nem alternativa,  muito menos alguma neurose de controle sobre o desenrolar dessa linha da vida. Tinha que haver a meia medida, como gostam de dizer os budistas. Faltava achar o tão sonhado caminho do meio. Logo, os papéis mudariam novamente, com crianças envelhecendo e velhos acriançando.

O sol ameaçava entornar de vez na curva atrás do morro, e ele via aqueles dois cabeçudos que seguiam na tentativa de pescar alguma coisa na beira-praia, cada um à sua maneira, por direções diferentes. Ele, também cabeçudo a maior parte do tempo numa família de cabeçudos por natureza, mas temporariamente cansado de todo tipo de disputas, esvaziava outra lata de cerveja não mais gelada enquanto contemplava a vara alta de fibra fincada alguns metros à frente com a linha esticada ao mar, sem qualquer sinal de vida.  No início, algumas beliscadas e a necessidade de renovar a isca a cada meia hora. As disputas são todas vãs, no fim. Só se compete mesmo, quando vale, é com a gente mesmo, por dentro. Para não deixar tudo virar ruínas, não se perder no amargor, não se dissolver no sal. Competimos com o lado negativo da força, que obviamente também habita dentro, -- como dizia o belo e famoso filme de ficção -- e tentamos nos tornar algum tipo de virtuosos Jedis sem certificado de conclusão de curso nesse caminho.

Os peixes já deviam estar de barriga cheia e sequer se davam ao trabalho de roubar os aperitivos. A cerveja nos últimos gelos “ainda dá pra beber”, pensava resignado,  observando o engajamento das outras duas criaturas em total batalha com a natureza pela glória da atividade pesqueira de fim de semana. Hora de arrumar tudo, partir pra casa lembrando antes de passar na feira e comprar o frango assado da janta. Melhor assim, talvez. Não ia confessar agora, mas nos últimos tempos, depois de tantas tragédias de jornais,  andava com pena dos peixes.